Atenção com inadimplência deve ser permanente
Valor Econômico
O governo deve evitar a tentação de criar
novos planos voltados à indução de um consumo desenfreado
A campanha eleitoral começava a pegar
tração na noite de 25 de agosto de 2022, quando Luiz Inácio Lula da Silva,
novamente na condição de candidato do PT à Presidência da República, prometeu
renegociar as dívidas de pessoas físicas negativadas. “Aliás, uma coisa
importante: nós temos quase que 70% das famílias brasileiras endividadas, e a
grande maioria delas é mulher, 22% endividadas, porque não podem pagar a conta
de água, a conta de luz, a conta do gás. Nós vamos negociar essa dívida”,
assegurou Lula, nos minutos finais de sua entrevista ao “Jornal Nacional”, da
TV Globo. “Pode ficar certo que nós vamos negociar com o setor privado e com o
sistema financeiro, porque nós precisamos fazer com que o povo brasileiro volte
a viver com dignidade”, acrescentou.
O tema tinha apelo. Também era objeto dos
discursos de seus adversários, desde que o agravamento da conjuntura econômica
após a pandemia de covid-19 deixou milhões de pessoas em delicada situação
financeira. Nas contas do governo, os números são diferentes daqueles citados
por Lula em agosto passado. Mas também são alarmantes: em maio, 70 milhões de
brasileiros eram considerados inadimplentes, o que representava aproximadamente
42% da população adulta brasileira. São pessoas que não têm conseguido quitar
suas dívidas.
Nesse triste quadro, de acordo com estimava feita pelo Executivo quando enfim foi publicada a medida provisória que instituiu o programa de renegociação de dívidas, posteriormente batizado de Desenrola Brasil, quatro em cada dez famílias estavam com dívidas em atraso acima de três meses - principalmente de cartão de crédito, contas básicas (água, luz, gás e telefonia) e no varejo.
Para piorar o quadro, como consequência
essas pessoas tendem a perder acesso a novos créditos ou ter dificuldades na
aquisição de um cartão de crédito, na compra de itens essenciais à sobrevivência
e no financiamento de bens que podem melhorar a qualidade de vida de seus
familiares. A recuperação financeira dessas pessoas torna-se mais difícil a
cada dia, o que tem também um impacto danoso à economia.
Mas muito tempo se passou desde a declaração
feita por Lula ao Jornal Nacional. Ele saiu vitorioso do disputado pleito
realizado em outubro. No período da transição, o tema manteve-se na pauta. Mas
o programa permaneceu no campo das ideias.
Recém-empossado presidente da República,
Lula discursou em janeiro no Congresso Nacional e prometeu recolocar o “consumo
popular” em um papel central na sua estratégia de fazer a roda da economia
“voltar a girar”. Desde então, por diversas vezes cobrou celeridade da equipe
econômica para lançar o Desenrola. E a medida provisória que instituiu o
Desenrola Brasil foi enfim publicada no “Diário Oficial da União” no início de
junho.
O programa, contudo, começa agora na
prática. Nesta segunda-feira (17), os bancos passam a renegociar R$ 50 bilhões
em dívidas de até 30 milhões de pessoas. Além disso, entre 1,5 milhão e 1,7
milhão de pessoas negativadas com dívidas bancárias de até R$ 100 terão seus
débitos cancelados pelas instituições financeiras, uma das pré-condições
impostas pelo Executivo para que os bancos participassem do programa.
Em outra frente, endividados com renda
mensal de até
R$ 20 mil poderão negociar suas dívidas. Os
bancos irão oferecer prazo de pagamento de no mínimo 12 parcelas, em uma
modalidade do programa em que não há limite de dívida a ser renegociada nem
teto para cobrança de juros. Tudo isso só valerá para quem foi negativado até
31 de dezembro de 2022.
Em setembro, a expectativa é que entre em
funcionamento a plataforma para a negociação de dívidas de até R$ 5 mil,
voltada para até 40 milhões pessoas de menor renda. Além de dívidas com os
bancos, débitos não bancários também poderão ser negociados, como as contas de
luz, água e telefone citadas também por Lula durante a campanha eleitoral.
Recursos do Fundo de Garantia de Operações (FGO) serão disponibilizados, para
que não haja frustração de receitas para as empresas, em caso de
inadimplemento.
O Desenrola é bem-vindo. Se bem-sucedido,
deve dar um necessário alívio financeiro a milhões de famílias. Mas pode acabar
gerando outros tipos de riscos à economia.
O governo deve evitar, por exemplo, a
tentação de aproveitar uma eventual diminuição dos cadastros de endividados
para criar novos planos voltados à indução de um consumo desenfreado. Em
governos anteriores do PT, o programa de subsídio à aquisição de
eletrodomésticos enfrentou problemas de inadimplência: os erros do passado não
devem ser esquecidos.
Outro ponto de atenção é a urgente
necessidade de ampliação dos esforços de educação financeira da população. Uma
iniciativa nesse sentido pode tirar milhões de famílias de situação semelhante
no futuro.
Ampliação do Brics não é interessante para
o Brasil
O Globo
Projeto chinês de aumentar número de
participantes visa a criar bloco com viés antiocidental
O Bric, ainda sem o “s” de África do Sul em
inglês, nasceu em 2001 como acrônimo criado pelo economista-chefe do banco
Goldman Sachs, Jim O’Neill, para designar Brasil, Rússia, Índia e China, vistos
por ele como países que aumentariam seu peso na economia global. O’Neill estava
certo, e hoje há no Brics quem considere a necessidade de ampliar o bloco, na
verdade um projeto chinês para construir uma barreira aos interesses do
Ocidente, liderado pelos Estados Unidos.
Cria-se assim uma encruzilhada para o Brasil,
que precisa manter sua postura aberta nas instituições multilaterais, mas sem
se afastar dos valores ocidentais que fundamentam sua política
externa. Analista político e professor da Escola de Relações Internacionais
da Fundação Getulio Vargas (FGV) em São Paulo, Oliver Stuenkel lembra que a
China foi quem promoveu a entrada da África do Sul no bloco, que para os
chineses deve ser algo mais amplo e centrado em Pequim. “Não é uma estratégia
secreta”, disse em entrevista ao GLOBO. É natural uma grande potência
ascendente ter a ambição de construir um sistema de governança global que, de
alguma forma, reflita esse poder.
Para o Brasil, o Brics é uma forma de o
país construir sua postura não alinhada, em um mundo multipolar. Contanto que o
não alinhamento não se confunda com o velho terceiro-mundismo, o delírio de uma
grande aliança de países pobres e remediados para se contrapor a Washington.
Isso nunca funcionou, mas ecos aparecem aqui e ali vez que outra. Antes de
assumir o poder em janeiro, Luiz Inácio Lula da Silva cometeu o equívoco de dar
o mesmo peso à Rússia agressora e à Ucrânia invadida — posição posteriormente
revista.
O Brasil possui laços importantes com
instituições lideradas por potências ocidentais, como o FMI e o Banco Mundial.
Nos últimos anos, estreitou a aproximação com a Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE). O Brics compõe essa malha de relacionamentos,
que precisa ter um equilíbrio coerente.
O projeto chinês de expandir o Brics não
contava inicialmente com a possibilidade de apoio da Rússia, que também rejeita
a ampliação do Conselho de Segurança da ONU, contra os interesses do Brasil.
“Só que agora, com a guerra na Ucrânia e a pressão ocidental, a expansão do
Brics faz mais sentido para a Rússia”, opina Stuenkel. Afinal, distante do
Ocidente, Moscou passou a ser mais dependente de Pequim, e o que Xi Jinping
propuser, Vladimir Putin tenderá a apoiar.
A maior aproximação da Rússia com a China
cria no bloco um eixo francamente antiocidental. Entre os diversos argumentos
contra a expansão do grupo há o do tamanho: se o número de países participantes
fosse decisivo para o Brics, o G77, coalizão de países em desenvolvimento na
ONU, seria poderoso, mas não é. Ex-embaixador em Pequim, Luiz Augusto de Castro
Neves também não vê sentido na ampliação, que, para ele, se tornaria “um G20 do
B” . O centenário Itamaraty tem experiência suficiente para ajudar o governo a
não cair numa armadilha diplomática.
Saneamento precisa de investimento privado
para atingir universalização
O Globo
Governo deveria preservar o Marco Legal, em
vez de fazer mudanças por decretos que enfraquecem legislação
Depois de um acordo no Senado, onde se
desenhava mais uma derrota incômoda para o Planalto, o governo do presidente
Luiz Inácio Lula da
Silva recuou na proposta estapafúrdia de desfigurar alguns dos pontos
principais do Marco Legal do Saneamento Básico, aprovado há três anos. Na
quinta-feira, foram publicados decretos anulando decisões equivocadas tomadas
em abril. Entre elas, a permissão para que empresas estaduais deficitárias
continuassem prestando o serviço sem licitação e a autorização para que
concessionárias usassem contratos precários para atestar capacidade de
investimento que não têm. Melhor assim.
Embora de modo geral o recuo tenha agradado
às empresas de saneamento — os decretos anteriores eram absurdos —, a nova
regulamentação ainda mantém pontos polêmicos. Um deles é o prazo até 31 de
dezembro deste ano para que as companhias comprovem capacidade
econômico-financeira para realizar os investimentos, de modo a cumprir as metas
fixadas: levar água a 99% e coleta de esgoto a 90% dos brasileiros até 2033.
Originalmente, o prazo ia até março de 2022. Foi mantida também autorização
para que empresas incapazes de comprovar solidez financeira possam apresentar
um plano de metas futuramente. Estima-se que em pelo menos um quinto dos
municípios brasileiros as companhias não tenham capacidade para fazer os
investimentos necessários.
O ideal era que o governo mantivesse a
legislação tal como foi aprovada em 2020. O Marco do Saneamento é uma conquista
da sociedade para tentar reverter os indicadores indigentes do setor. Segundo o
Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), 35 milhões de
brasileiros não têm acesso à água e 100 milhões são privados de coleta de
esgoto, números que deveriam envergonhar qualquer país. Entre os muitos méritos
da legislação aprovada, está a abertura do setor à iniciativa privada,
aumentando a competição, a capacidade de investimentos e a eficiência dos
serviços.
Um estudo feito pelo Trata Brasil em
parceria com a GO Associados mostra que, para atingir as metas de
universalização até 2033, os investimentos em saneamento teriam mais que
dobrar. Nos últimos cinco anos, a média foi de R$ 20 bilhões anuais, mas seriam
necessários R$ 44,8 bilhões. É evidente que as companhias estaduais, que por
décadas dominam o setor, não têm orçamento para isso. Daí a importância da
iniciativa privada.
O governo Lula, eleito com o discurso de priorizar os pobres, deveria estar interessado em dar-lhes condições dignas de vida, o que inclui a garantia de serviços básicos. É inadmissível que em pleno século XXI ainda haja brasileiros sem água tratada nas torneiras e com esgoto a céu aberto na porta de casa, aumentando o risco de doenças. Essa situação degradante não será revertida num passe de mágica, mas com investimentos maciços e vontade política. O Marco do Saneamento é um instrumento poderoso para alcançar a almejada universalização. Querer enfraquecê-lo é flertar com o retrocesso.
O problema é o gasto
Folha de S. Paulo
Tesouro evidencia que sanha arrecadatória
está longe de equilibrar Orçamento
De acordo com o calendário político e
administrativo do país, o primeiro semestre do ano foi encerrado na semana
passada com um feito sem dúvida importantíssimo —a aprovação da reforma
tributária pela Câmara dos Deputados.
Mas, se o avanço histórico da proposta
eleva o otimismo quanto ao longo prazo, providências cruciais para a saúde da
economia no curto e no médio prazos permanecem motivo de incerteza e
inquietação.
As votações definitivas da nova regra de
controle dos gastos públicos e do projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias de
2024 ficaram para agosto, depois do recesso informal de duas semanas que o
Congresso Nacional se autoconcedeu —pela legislação, os parlamentares não podem
tirar férias sem terem apreciado a LDO.
Mais do que isso, o governo Luiz Inácio
Lula da Silva (PT) continua longe de obter credibilidade para seus compromissos
e projeções de reequilíbrio das contas do Tesouro Nacional e redução dos
patamares exorbitantes da dívida pública.
O próprio Tesouro acaba de divulgar cálculos
segundo os quais será
necessária arrecadação adicional de R$ 162,4 bilhões ao ano para que seja
cumprida a meta de zerar o déficit orçamentário em 2024. Isso
corresponde a praticamente afirmar que a meta é inviável, ao menos com a
orientação atual.
O erro de origem do governo petista, como
se sabe, é pretender manter uma trajetória contínua de aumento da despesa
pública, que começou antes mesmo da posse de Lula. Todo o ajuste, portanto,
fica na coluna das receitas.
Estipulou-se, com isso, o propósito
descabido de elevar em demasia uma carga tributária já exagerada —o que inclui
de medidas corretas, como a eliminação de privilégios, a abusos como a
tentativa de fazer caixa com vitórias sobre contribuintes no Conselho
Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).
É muito improvável que o governo tenha
sucesso mais do que parcial em sua sanha arrecadatória, como se nota por
decisões e posicionamentos do Congresso. Não por acaso, o Tesouro
aponta os problemas a serem enfrentados no lado dos gastos e opções possíveis.
Forma-se uma bola de neve bilionária em
precatórios cujos pagamentos têm sido adiados desde a gestão Jair Bolsonaro
(PL); os dispêndios com saúde e educação, excluídos de modo precipitado dos
limites da regra fiscal, vão tornar o Orçamento ainda mais engessado ao tomar o
espaço de outras áreas.
São problemas que não podem ser ignorados ou
tratados à base de retórica demagógica, como se o imperativo de eliminar a
pobreza prescindisse de boa gestão das finanças do governo.
Enquanto houver risco de escalada do gasto
e da dívida pública, o Banco Central terá dificuldade em reduzir juros, as empresas
vão hesitar em investir e o país estará sujeito a um crescimento econômico
abaixo de medíocre. Lula deveria se dedicar ao problema desde já.
Estigma persistente
Folha de S. Paulo
Além do preconceito, desigualdades
prejudicam metas de combate ao HIV no Brasil
Relatório da Programa Conjunto das Nações
Unidas sobre HIV/Aids (Unaids), lançado na última quinta (13), expõe gargalos e
desigualdades na forma com que o Brasil enfrenta a epidemia. Dos 3
objetivos estabelecidos pela agência internacional, o país cumpre apenas 1.
Pretende-se alcançar índice de ao menos 95%
em três indicadores: soropositivos diagnosticadas, em tratamento e que tenham a
carga viral suprimida. Atingimos apenas a terceira meta, em grande parte dada a
eficácia dos medicamentos.
Não mais que 88% dos prováveis 990 mil
brasileiros vivendo com HIV foram diagnosticados. Nesse grupo, 83% estão em
tratamento. Estigma e disparidades de renda ajudam a explicar os dados.
Para aumentar a testagem, é fundamental
integrar o acesso à saúde sexual e reprodutiva a outras políticas, como de
moradia e assistência social, e à rotina dos demais serviços de saúde aos quais
a população tem acesso —atualmente, por exemplo, o Ministério da Saúde pretende
eliminar a transmissão vertical, de mãe para filho.
Deve-se, ademais, apostar em
ensino para desmistificar percepções equivocadas. É preciso
esclarecer que nem todas as pessoas que têm o vírus HIV desenvolvem a doença da
imunodeficiência, Aids.
Deve-se considerar em especial a orientação
de jovens entre 15 e 24 anos, faixa etária onde há mais novas infecções no
país.
Visões obscurantistas sobre a educação
sexual —que, diferentemente do que prega certo discurso moralista tacanho, pode
ser adaptada para cada idade e é baseada em evidências científicas— inibem
esforços de prevenção.
Estudo de 2021 da Unaids, com 1.784 pessoas
vivendo com HIV, mostra que 64% delas já sofreram discriminação entre
familiares, vizinhos, amigos e no trabalho.
Desigualdades de diversos tipos afetam o
acesso a diagnóstico e tratamento. Pesquisas indicam que pessoas trans são
discriminadas em serviços de saúde no país. A Aids aumentou entre negros,
enquanto diminuiu entre brancos.
Persistem, não apenas no Brasil, estigmas
inaceitáveis em torno da doença e dos portadores do vírus —que, quatro décadas
e muitos avanços medicinais depois, ainda mata mais do que deveria.
Mais casas, menos carros
O Estado de S. Paulo
Não é boa política ter dinheiro para
consumo e não para habitação popular.
A Caixa precisou suspender o recebimento de
propostas para construção de moradias para a chamada faixa 1 do Minha Casa,
Minha Vida. Para este ano, o objetivo do Ministério das Cidades é contratar 130
mil unidades, mas a quantidade de projetos recepcionados pelo banco já atingiu
a meta em nada menos que 15 Estados.
A Caixa ainda fará a checagem das propostas,
o que inclui a visitação dos terrenos indicados. Mas, segundo o Estadão, já
haveria projetos suficientes para erguer 74,8 mil imóveis, o suficiente para
contratar todas as unidades previstas em São Paulo, Minas Gerais, Alagoas,
Bahia, Ceará, Pernambuco, Paraíba, Piauí, Sergipe, Rio Grande do Sul, Amapá,
Amazonas, Tocantins, Goiás e Mato Grosso do Sul.
O balanço parcial do programa evidencia a
demanda reprimida para atender a chamada faixa 1, que abarca famílias com renda
de até dois salários mínimos. São pessoas que não têm condições de assumir um
financiamento imobiliário nos termos em que os bancos oferecem e que precisam
de subsídio do Estado para terem acesso digno à moradia.
Por iniciativa própria, as construtoras
jamais cogitariam atender um público tão vulnerável. Por outro lado, uma vez
que o Estado reserve recursos para suas políticas públicas bem desenhadas, o
setor privado responde de imediato. O prazo para envio de projetos havia sido
aberto no dia 3 de julho, e em apenas dez dias foi possível atingir a meta
fixada para a maioria dos Estados do País.
É verdade que a meta para a faixa 1 era
pequena – apenas 130 mil unidades. Em todo o Estado de São Paulo, por exemplo,
foram reservadas 12.973 unidades, o maior número entre as unidades da
Federação, mas não é preciso mais do que um passeio na capital paulista para
saber que o volume será insuficiente para dar conta do problema. Os números
variam conforme a autoria dos levantamentos, mas algo entre 32 mil e 42 mil
pessoas vivem atualmente nas ruas do centro de São Paulo, à mercê da
insegurança e das intempéries.
Segundo a Fundação João Pinheiro, 5,8
milhões de brasileiros não tinham onde morar com dignidade em 2019. Feito antes
da pandemia de covid-19, muito provavelmente o levantamento já está defasado.
Nesse sentido, é muito positivo que o Minha Casa, Minha Vida tenha sido
resgatado pelo governo com atenção especial à faixa 1. Por falta de recursos
públicos, essa parcela da população já havia sido abandonada pelo programa
habitacional ainda no governo Temer. Sua versão bolsonarista, o Casa Verde
Amarela, foi pior: manteve a faixa 1 no papel, mas estrangulou a verba do
programa, paralisando obras em andamento e impedindo a contratação de novas
unidades.
O governo Lula elevou a quase R$ 8 bilhões
a verba do Fundo de Arrendamento Residencial (FAR), que banca as unidades
subsidiadas. Já é alguma coisa, mas ainda é pouco para retomar o tempo perdido
e resolver o problema crônico da falta de moradia. O Executivo precisa fazer
mais e melhor sem abandonar o imperativo da responsabilidade fiscal. É
necessário fazer escolhas, o que requer o abandono de ideias que não fazem
sentido e o remanejamento de verbas para programas prioritários.
Para ficar nos exemplos mais recentes, não
havia razão para dar subsídios à compra de automóveis de até R$ 120 mil. O
programa custou R$ 1,8 bilhão aos cofres públicos, mais de 20% do valor
reservado para as moradias das famílias da faixa 1. Não é pouco. Considerando o
tamanho das desigualdades sociais e o déficit fiscal contratado para este ano e
para os próximos, utilizar a verba do “carro popular” para contratar mais
unidades habitacionais teria sido muito mais justo.
Da mesma forma, não há razão para o governo
cogitar o lançamento de medidas de incentivo para aquisição de eletrodomésticos
quando há tantos cidadãos sem acesso aos direitos mínimos assegurados pela
Constituição. Quando o cobertor é curto, o governo não deve ter dúvidas sobre
qual deve ser o foco das políticas públicas. Elas devem sempre atender os que
mais precisam do Estado, como é o caso das famílias da faixa 1 do Minha Casa,
Minha Vida.
O obstáculo nacionalista
O Estado de S. Paulo
A oportunidade de encaminhar o acordo
UE-Mercosul na cúpula entre Celac e UE será desperdiçada se Lula insistir em
manter prerrogativas do Estado de negociar com empresas improdutivas
Após oito anos, os chefes de governo dos 60
países da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) e da
União Europeia (UE) voltam a se reunir em Bruxelas, a partir de hoje, com o
intuito de estreitar relações entre o Velho e o Novo Mundo. Na pauta estão
questões globais, como segurança alimentar, desafios ambientais, tensões
geopolíticas ou reformas do sistema financeiro. A propósito da guerra na
Ucrânia, as divergências em relação ao posicionamento de ambas as partes devem
resultar em uma declaração generalista e anódina, se tanto.
A questão birregional mais relevante, o
acordo Mercosul-UE, não será objeto de negociações formais na cúpula, mas é uma
oportunidade para fomentar as condições políticas para a ratificação.
Em parte, essas condições estão dadas pela
conjuntura externa. O acordo foi negociado por duas décadas. Cálculos
econométricos mostram que a sua forma final, atingida em 2019, é vantajosa para
ambas as partes. As tensões geopolíticas, as tendências protecionistas dos EUA
e as perdas de espaço de ambos os blocos para a China só o tornam mais
relevante. Os maiores empecilhos são internos.
O impasse final veio por reações
protecionistas de ambos os lados: protecionismo à indústria, por parte dos
latinoamericanos, e protecionismo à agropecuária, por parte dos europeus,
dissimulados, respectivamente, sob preocupações sociais e ambientais.
Pressionados por movimentos ambientalistas
assustados com os desvarios do governo Bolsonaro, os europeus passaram a
demandar a inclusão de um anexo (side letter) com novas exigências ambientais.
Em reação, os latino-americanos, encabeçados pelo presidente Lula, exigem
reabrir negociações para garantir reservas de mercado em contratos públicos com
fornecedores nacionais.
Como ponderou o colunista de economia do
Estado Celso Ming, há três hipóteses para a nova linha dura do presidente Lula:
“1) colocação de um ponto de barganha destinado a eliminar as exigências da
side letter; 2) necessidade de satisfazer os segmentos nacionalistas mais
radicais do PT e aliados que sempre foram contra qualquer acordo de abertura
comercial; e 3) oposição de certos setores da indústria, especialmente da área
da saúde”.
A primeira parecia uma tática
particularmente pertinente quando a side letter ainda era informal e sigilosa,
e a possibilidade de vincular sanções comerciais ao descumprimento de metas
ambientais despertava uma justa irritação dos latino-americanos. Agora que os
termos foram oficializados, sabe-se que não é o caso. Em relação a compromissos
ambientais, os europeus podem vir a questionar seu descumprimento, mas não
podem invocar o mecanismo de solução de controvérsias e muito menos impor
sanções unilaterais.
Lula insiste que impedir que empresas
europeias participem de licitações para compras governamentais é um modo de
estimular a indústria, especialmente as pequenas e médias empresas. Mas a
indústria em geral é amplamente favorável ao acordo. Para ela, a tendência é de
diminuição dos custos de insumos e aumento da demanda europeia por produtos
brasileiros de maior valor agregado. A Confederação Nacional da Indústria
estima que, se o fim das tarifas de importação do bloco europeu previsto no
acordo estivesse em vigor em 2022, isso representaria ganhos de R$ 13 bilhões
às exportações brasileiras, e 99% desse valor corresponderia a produtos da
indústria de transformação.
De resto, já há uma série de exceções no
acordo para contratos do governo com estatais e pequenas e médias empresas e
compras consideradas estratégicas para o setor de defesa ou saúde. Além disso,
para todos os setores o acordo prevê uma liberalização gradual, dando tempo às
empresas para se adaptarem à competição. Assim, cai por terra a terceira
hipótese.
Resta a segunda. Lula quer preservar as
prerrogativas do Estado de fazer negócios com empresas improdutivas
apadrinhadas, ainda que isso implique prejuízos para o setor produtivo em geral
e para o consumidor brasileiro. É hora de os prejudicados se fazerem ouvir.
Dados ao deus-dará
O Estado de S. Paulo
Apagão no Conselho de Proteção de Dados
traz danos à privacidade, à democracia e à economia
Com o impulso dado na pandemia à revolução
digital, cresceram exponencialmente os riscos a usuários das redes. Incidentes
com o próprio poder público revelam a dimensão desse risco. Nos últimos anos,
órgãos como o Ministério da Saúde, o Tribunal Superior Eleitoral ou o Superior
Tribunal de Justiça sofreram mais de um ataque hacker. Também houve vazamentos
por falhas humanas. O Brasil está entre os cinco maiores alvos de ataques
cibernéticos do mundo. Um levantamento da Fortinet, uma empresa de segurança cibernética,
estimou que só entre o primeiro e o segundo semestres de 2022 os ataques
aumentaram 94%.
Com algum atraso – na Europa já se discute
a proteção de dados desde os anos 70 e vizinhos como México, Argentina e
Uruguai têm legislações consolidadas –, o Legislativo deu passos importantes
rumo à proteção de dados. Em 2021, foi promulgada uma emenda constitucional que
inclui a proteção de dados pessoais como um dos direitos fundamentais. No mesmo
ano, entrou em vigor a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), promulgada em
2018. Inspirada na legislação europeia, a lei fixa diretrizes e regras para
instituições privadas e públicas que armazenam dados pessoais.
Mas de nada adianta a proteção prevista na
lei se ela não sair do papel.
Para regulamentar e fiscalizar a aplicação
da LGPD foi criada uma autarquia, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados
(ANPD), formada por representantes de diversos setores da sociedade. Só em
2023, foi prevista uma agenda regulatória de 20 itens, entre eles a
regulamentação da transferência internacional de dados, direitos dos titulares
ou mecanismos para comunicados de incidentes. Crucial para a concretização
desses objetivos é a atuação do Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais
e da Privacidade. A LGPD prevê expressamente a consulta ao colegiado para a
regulamentação de padrões e técnicas de segurança. Desde janeiro deste ano,
contudo, o Conselho está paralisado.
O calendário da instituição previa dois
encontros neste semestre, mas eles não aconteceram. Interlocutores do atual
presidente do Conselho – Jonathas de Castro, indicado por Jair Bolsonaro –
afirmaram ao Estado que ele não convocou as reuniões por compreender que o
grupo trata de temas sensíveis que, eventualmente, podem contrariar a política
do governo Lula. O governo, por sua vez, não determinou a troca de comando.
Além disso, a um mês do prazo previsto para a substituição dos conselheiros, o
órgão ainda está recebendo candidaturas de instituições da sociedade civil.
Sem o Conselho – formado por representantes do poder público e de instituições científicas, confederações sindicais e entidades empresariais –, a participação democrática na regulamentação de políticas de privacidade é prejudicada. A ausência desses regulamentos, por sua vez, gera insegurança jurídica e afasta investidores. Em outras palavras, a paralisia do Conselho não só põe em risco o direito fundamental à privacidade dos cidadãos, como gera déficit democrático e prejuízo ao desenvolvimento econômico e social do País.
O aviso que vem de Hollywood
Correio Braziliense
É a primeira greve de atores nos últimos 40
anos, e a primeira pausa completa desde 1960. Várias produções em andamento
agora estão totalmente paradas
Símbolo da mais poderosa indústria do
audiovisual mundial, Hollywood está parada. Na última sexta-feira (14), o
Screen Actors Guild-American Federation of Television and Radio Artists
(SAG-Aftra), sindicato que representa mais de 160 mil atores, decidiu que a
categoria deveria se juntar aos roteiristas, parados desde maio e cruzar os
braços. É a primeira greve de atores nos últimos 40 anos, e a primeira pausa
completa desde 1960. Várias produções em andamento agora estão totalmente
paradas. A decisão impacta diretamente títulos como as séries Stranger
Things, The Handmaid’s Tale e Yellowjackets e os
filmes Deadpool 3 e Gladiador 2, entre diversos outros.
Oficialmente, o motivo da paralisação
envolve o pagamento dos chamados “residuais”, espécie de royalties que os
envolvidos nos filmes e séries têm direito a receber toda vez que o trabalho
volta a ser exibido na TV, ou das vendas de DVDs, blu-rays e demais mídias
físicas. O problema é que, com o streaming, não é possível cravar o número
exato de exibições extras, o que gerou o impasse com os grandes estúdios.
Apesar de interessante – como tudo que
envolve Hollywood –, a luta pelos residuais é uma negociação trabalhista comum.
O que chama mesmo atenção, porém, é o outro ponto que vem sendo discutido entre
as partes. Os atores rejeitam uma proposta que os estúdios chamaram de
“inovadora”: serem substituídos por réplicas digitais. Segundo o
diretor-executivo do sindicato, Duncan Crabtree-Ireland, a ideia é que os
atores fossem pagos por um dia de trabalho e escaneados, e a imagem digital
gerada poderia ser usada indefinidamente pelos produtores. A sugestão afetaria
principalmente atores secundários e figurantes, que formam a maioria dos 160
mil representados pelo sindicato. Já no caso dos roteiristas, há o temor de que
a inteligência artificial seja usada para criar roteiros do zero, com
escritores humanos sendo usados apenas para ajustes pontuais – e obviamente
ganhando bem menos.
A possibilidade de substituir atores por
réplicas digitais levanta questões éticas e profissionais, já que o talento e a
habilidade de interpretar são características únicas dos seres humanos. Além
disso, a utilização da inteligência artificial na criação de roteiros levanta
preocupações sobre a criatividade e originalidade das histórias contadas.
O cabo de guerra entre atores e roteiristas
de um lado, e estúdios do outro, antecipa o que será a grande discussão sobre o
futuro do trabalho nos próximos anos (meses?): a substituição da mão de obra
humana pela inteligência artificial. O que for definido após essa desgastante
batalha vai servir como referência para todas as outras áreas envolvidas no
mercado de trabalho, uma vez que a indústria do entretenimento costuma ser
pioneira em muitas tendências.
O futuro do trabalho dependerá do equilíbrio encontrado entre o uso da inteligência artificial e a preservação das habilidades humanas. Já que o avanço tecnológico é inevitável, como a própria presidente do SAG-Aftra, a atriz Fran Drescher – que ganhou fama na série The nanny — reconheceu, é fundamental estabelecer regulamentações e diretrizes claras. É o único meio para garantir que as inovações não comprometam a integridade e os direitos dos profissionais envolvidos nas áreas em que elas estão presentes com cada vez mais força.
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