Valor Econômico
Ampliar a base é preciso, mas amigos serão
sacrificados
Dia 25 de abril de 1996, meia-noite. No
gravador em que registrou o cotidiano de seus oito anos de governo, Fernando
Henrique Cardoso relatava que aquele havia sido, se não o mais difícil, com
certeza o mais duro dia desde que assumira a Presidência da República, em 1º de
janeiro do ano anterior.
FHC havia acabado de chegar do apartamento
de sua ministra da Indústria, Comércio e Turismo, Dorothea Werneck, aonde fora
comunicar a decisão de demiti-la. Segundo o registro, publicado na primeira
edição de seu Diários da Presidência (1995-1996), a conversa durou quase três
horas, houve choro de ambas as partes, desabafo, queixas e até uma ponta de
arrependimento.
Dorothea Werneck era uma ministra de perfil estritamente técnico. Formada em economia na UFMG, foi aluna do famoso curso de mestrado montado por Mário Henrique Simonsen na FGV e depois se doutorou no Boston College, nos EUA. De volta ao Brasil, trabalhou no Ipea e foi professora da UFRJ.
Suas pesquisas em economia do trabalho e
industrialização a credenciaram para aceitar o convite para servir o Estado
durante os governos Sarney, Collor e Itamar. Nesse período, ela foi uma das
idealizadoras do seguro-desemprego, conduziu o processo de abertura comercial e
implantou políticas voltadas para a competitividade da indústria. Chegou a ser
ministra do Trabalho na gestão Sarney.
Combinando formação acadêmica e experiência
governamental, aliadas ao fato de ser filiada ao PSDB e ter ótima relação com
FHC e a equipe que acabara de implementar o Plano Real, Dorothea foi uma
escolha natural para integrar o governo eleito em 1994. Nos diários, o ex-presidente
revela apenas a dúvida se a colocaria à frente do Trabalho ou da Indústria e
Comércio - acabou decidindo pela segunda opção.
O ministério montado por FHC ao tomar posse
se baseava em três grupos muito nítidos. Nas pastas estratégicas para o desenvolvimento
econômico e social, foram designados técnicos reconhecidos em suas áreas: os
economistas Pedro Malan, Paulo Paiva e a própria Dorothea, respectivamente, na
Fazenda, Trabalho e Indústria e Comércio, o médico Adib Jatene na Saúde e o
ex-reitor da Unicamp Paulo Renato Souza na Educação.
A esse grupo se somavam políticos da
estrita confiança de FHC, como José Serra no Planejamento, Bresser-Pereira na
Reforma do Estado, Sérgio Motta nas Comunicações e Nelson Jobim na Justiça.
Os ministérios setoriais foram usados para
acomodar indicações dos partidos que iriam integrar a base de governo: o
senador José Eduardo de Andrade Vieira (PTB, na Agricultura), os deputados
Odacir Klein (PMDB, Transportes) e Reinhold Stephanes (PFL, Previdência) e
Raimundo Brito (indicação de Antônio Carlos Magalhães, do PFL, em Minas e
Energia).
Olhando para o Congresso, FHC podia contar
com os 66 deputados do PSDB e mais as bancadas do PMDB (107 deputados), PFL
(92) e PTB (32), todos representados na Esplanada dos Ministérios. Somados os
quatro partidos, FHC tinha uma base de 297 deputados, o que não garantia o
quórum mínimo de 308 parlamentares para se aprovar uma reforma constitucional.
Em meados do segundo ano de mandato, FHC
tinha várias PECs aguardando votação: reforma administrativa, desregulamentação
do sistema financeiro, criação da CPMF e, logo em seguida, a emenda autorizando
a sua reeleição.
Foi neste momento que a cabeça de Dorothea
Werneck foi colocada a prêmio. Nos cálculos de seus estrategistas políticos, a
vida de FHC no Congresso ficaria muito mais fácil se o presidente conseguisse
atrair para a sua base o PPB, que tinha uma bancada de 79 deputados.
Mas o PPB estava rachado. Uma parte do
partido, comandada por Paulo Maluf, queria ficar na oposição. A outra aceitava
entrar no governo, desde que recebesse um ministério grande “para fins que só
Deus sabe quais”, dizia Fernando Henrique.
No meio da barganha, o nome de Dorothea
Werneck foi oferecido em sacrifício, e o PPB aceitou o Ministério da Indústria
e Comércio em troca dos votos necessários para a aprovação dos projetos de FHC.
Ao narrar o encontro que teve com Dorothea
para anunciar sua decisão, FHC admitiu: “Dorothea é uma pessoa admirável e fui
ficando com raiva de mim mesmo. Porque na verdade eu fiz a escolha de Sofia,
não tinha jeito, eu sei que não tem jeito, porque ou tem o PPB, ou não passam
as reformas, mas justamente em cima da Dorothea é uma coisa muito pesada para
ela e para mim”, refletiu o então presidente.
Essa história é de 1996. Em 2003 o PPB foi
rebatizado e passou a se chamar Partido Progressista (PP). Legenda do
presidente da Câmara, Arthur Lira, é em torno dela que gravita o Centrão. O
mesmo Centrão que fez FHC jogar aos leões uma ministra técnica e filiada a seu
partido agora coloca Lula contra a parede por uma reforma ministerial.
Lula enfrenta neste momento a mesma pressão
e os mesmos dilemas vividos por FHC em relação a Dorothea Werneck. A escolha de
Sofia já foi feita e o Centrão entrará no governo nos próximos dias. Haverá
choro e ranger de dentes no núcleo de aliados petistas.
*Bruno Carazza é professor
associado da Fundação Dom Cabral e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as
engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”.
Um comentário:
Tudo continua como dantes no quartel de Abrantes.
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