Argentina vai às urnas em meio a crise e recessão
Valor Econômico
Eleições podem não resolver impasses
econômicos e políticos do país
A Argentina corre contra o tempo para
evitar uma nova e grave crise econômica. A ajuda incomum do Fundo Monetário
Internacional ao país não é capaz de assegurar que seja possível evitá-la. Em
situações críticas, as eleições tendem a ser um caminho para romper impasses e
apontar saídas. Ao que tudo indica, não será o caso argentino. Sergio Massa,
peronista e ministro da Economia, não tem programa econômico e se limita a
evitar uma ruinosa desvalorização antes que se encerre a eleição presidencial,
em novembro. Os candidatos de oposição da Juntos pela Mudança, Patricia
Bullrich, mais à direita, e Horacio Larreta, prefeito de Buenos Aires, não
parecem ter carisma e propostas arrojadas suficientes para unir o país e a
classe política na tarefa de retirá-lo da beira do abismo em que se encontra.
Os peronistas, como o presidente Alberto Fernández e sua vice, Cristina Kirchner, demonizaram o FMI por ter oferecido ao país o maior pacote financeiro da história da instituição, de US$ 53 bilhões, e o qualificaram de eleitoreiro, feito para a garantir a reeleição de Mauricio Macri. Desde o acordo, feito em 2018, e já sob o governo de Fernández, o país não cumpre as metas do programa, um dos mais suaves já aplicados pelo Fundo. É o dinheiro do FMI que mantém a Argentina à tona, mas os peronistas o execram, no que são seguidos pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que acusa o Fundo de manter uma “espada” sobre a cabeça de Fernández e de “afundar” países endividados.
Sergio Massa, candidato governista da União
pela Pátria, obteve novo alívio do Fundo em meados de julho. Com reservas
líquidas negativas, inflação de 115,6% em doze meses, e sem cumprir metas, o
Fundo concordou em pular a sexta revisão do programa e antecipar US$ 7,5
bilhões, em acordo que deve ser aprovado pela direção da instituição em meados
deste mês, depois da realização das primárias obrigatórias para os candidatos à
Presidência, em 13 de agosto. Para complicar a situação do Fundo, o ministro da
Economia, que negociou o alívio, disputa o pleito, o que motiva agora críticas
da oposição, as mesmas de antes: favorecimento ao candidato governista.
A mediocridade do governo atual, paralisado
por disputas políticas entre o presidente e sua vice, Cristina, tornou ambos
impopulares a ponto de desistirem de tentar a reeleição, juntos ou separados.
Massa surgiu como um tertius com cacife eleitoral e sede de poder, mas a tarefa
de reconstruir a economia argentina parece muito pesada para si, pela gravidade
da crise e pelas disputas fratricidas dos peronistas. Em um ano como ministro,
a economia só piorou. Ontem, o câmbio paralelo voltou a disparar, atingindo 577
pesos por dólar, ante os 290 pesos do câmbio em tese oficial.
Os três objetivos principais do acordo com
o FMI renegociado na gestão de Fernández foram descumpridos. Não houve
acumulação de reservas líquidas, uma forma de remover a aguda escassez de
divisas que asfixia a economia. A meta negociada em março previa um aumento de
US$ 8 bilhões nessas reservas e o Fundo agora se contenta com US$ 1 bilhão até
dezembro e nem isso é garantido. Cálculos de economistas argentinos apontam
reservas negativas de US$ 8,5 bilhões, ante positivas de US$ 2,2 bilhões um ano
antes. Massa conseguiu reduzir o déficit primário de 3,3% para 2,4% do PIB e o
FMI decidiu manter a meta de 2023, de déficit de 1,9% do PIB. Ainda assim, a
terceira meta fundamental com o FMI não foi atingida: o fim do financiamento
monetário do déficit fiscal pelo BC.
A emissão de moeda para cobrir déficits
empurrou a inflação a 115,6%, enquanto que o objetivo original e bastante
modesto era derrubar a variação de preços, que então se aproximava de 60%, para
48%. Massa faz malabarismos com expedientes para adiar a crise e o mais recente
deles foi a imposição de um imposto de 7,5% sobre importações de bens e de 25%
sobre serviços, além de arbitrar um câmbio maior que o oficial para que os
exportadores de milho se vissem tentados a entregar seus dólares.
Uma seca muito severa derrubou os planos de
obter mais divisas e melhorar a arrecadação. Estima-se que ela tenha reduzido
as exportações agrícolas em US$ 10 bilhões. A seca fez as vendas externas
caírem 24,5% no ano, enquanto que as importações só recuaram 8,5%. Como
resultado, o déficit comercial no ano atingiu US$ 4,38 bilhões, uma enormidade
para uma nação sem reservas. O governo apertou o cerco às importações de todas
as formas, estimulando que empresas com compras inadiáveis obtenham dólares no
mercado paralelo, ampliando a brecha cambial.
Com isso, a economia, que crescia mais de
4% quando Massa tornou-se ministro em agosto, teve contração de 5,5% em doze
meses encerrados em maio. A inflação sobe e não dá tréguas. Com isso, o
candidato governista, favorito nas primárias de seu partido, oscila em torno de
30% nas pesquisas, enquanto que, somados, os candidatos da oposição macrista
têm de 30% a 33%. O candidato de extrema direita, com cerca de 20%, deve roubar
votos do Juntos pela Mudança e pode se tornar crucial para a vitória. Massa
realizará sua ambição de chegar à Casa Rosada, que terá, porém, severo ônus, o da
Argentina prestes a reviver novos momentos dramáticos de uma crise sem solução
à vista.
Câmara tem dever de restaurar texto da
regra fiscal
O Globo
É importante derrubar acréscimos do Senado.
Não dá para usar votação como barganha na reforma ministerial
A Câmara não pode protelar a votação das
mudanças feitas pelo Senado no Projeto de Lei do novo arcabouço fiscal. Os
deputados têm o dever de derrubá-las para manter o texto na forma em que foi
originalmente aprovado. Congressistas que dizem zelar pelo bem-estar dos
brasileiros não têm desculpa para deixá-lo em banho-maria. Mesmo imperfeita, a
nova regra fiscal é imprescindível.
A queda dos juros na quarta-feira, a
primeira em três anos, foi decidida supondo que o arcabouço seria aprovado. Foi
também com base nessa premissa que a agência de classificação de risco Fitch
elevou a nota do Brasil na semana passada. Seria um erro prejudicar o bom
momento que se vislumbra para trabalhadores e empresários apenas em razão de
interesses políticos circunstanciais. A tentativa das lideranças do Congresso
de usar a votação do arcabouço como moeda de troca para ganhar espaço na
Esplanada dos Ministérios deve ser interrompida.
A velocidade de aprovação das novas regras
é crucial. O governo precisa enviar ao Congresso até o final do mês o Projeto
de Lei Orçamentária Anual (PLOA) do ano que vem. Sem a aprovação do arcabouço,
a regra do teto de gastos continuará valendo. Mantida essa situação, será
preciso fazer cortes bilionários nas despesas, inviabilizando o Orçamento
preparado pelo Ministério do Planejamento.
Até aqui, o trabalho dos deputados tem sido
competente. O governo entregou o projeto do novo regime fiscal ao presidente da
Câmara, Arthur Lira (PP-AL), no dia 18 de abril. Exatos 35 dias depois, eles
apresentaram e votaram um texto melhor que o original, por endurecer algumas
regras de despesas. Antes do recesso, ainda aprovaram a reforma tributária, num
esforço concentrado que precisa ser reconhecido. Agora, infelizmente o ímpeto
parece ter arrefecido. Em vez de marcar a votação, Lira decidiu aguardar o
desfecho da reforma ministerial. É um equívoco, pois é imperativo que os
deputados desfaçam os erros cometidos pelo Senado, onde o projeto foi
desvirtuado.
Como foram feitas alterações, o texto
voltou à Câmara. A Casa onde um projeto de lei se inicia dá a palavra final
sobre seu conteúdo. Pode aceitar ou rejeitar as alterações. É uma votação
simples, restrita ao que foi mudado. Os senadores incluíram vários itens sem
cabimento na lista de gastos que não estarão sujeitos aos limites do arcabouço.
Também mudaram a base de cálculo da inflação e criaram um dispositivo pelo qual
o governo poderá prever novas despesas com a anuência do Congresso. Quanto mais
permissivas as regras fiscais, menor a chance de o novo arcabouço ter o efeito
pretendido: estabilizar as contas
públicas e conter a explosão do endividamento da União. Por isso as
mudanças precisam ser desfeitas.
O Brasil tem há décadas desempenho
econômico medíocre na comparação internacional. O padrão da evolução do PIB
segue o mesmo ritmo vagaroso da aprovação das reformas necessárias para tornar
o país mais produtivo e competitivo. Passado o período de maior risco à
democracia desde a década de 1980, o país tem a chance de retomar e acelerar
uma agenda voltada para o crescimento econômico, com impulsos da renda e do
emprego. As lideranças do Congresso precisam ser protagonistas nessa virada.
Qualquer reforma ministerial é secundária diante disso.
Queda artificial dos combustíveis terá
custo para Petrobras e Brasil
O Globo
Preço abaixo do praticado no mercado
internacional afeta caixa da estatal e aumenta o risco de desabastecimento
Não demorou muito para o presidente
da Petrobras, Jean Paul
Prates, mostrar serviço e começar a “abrasileirar” o preço dos
combustíveis, promessa feita por Luiz Inácio Lula da
Silva na campanha eleitoral. Empossado em janeiro, Prates revogou em maio o
Preço de Paridade de Importação (PPI) e anunciou uma nova estratégia para fixar
preços. Sem ser específico, afirmou que ela levaria em conta custos internos e
a situação do mercado, sem deixar de lado a cotação internacional.
Dois meses depois, o resultado é
cristalino: cresceu a defasagem entre preços internos e externos. Numa palavra,
a Petrobras voltou a subsidiar o consumo de combustíveis. Não bastasse o
contrassenso que é incentivar a queima de combustíveis fósseis diante das
mudanças climáticas, o atraso no alinhamento entre preços internos e externos
afetará financeiramente a estatal, aumentando o risco de desabastecimento,
principalmente de diesel.
Lula defende o “abrasileiramento” dos
preços de modo simplório: se o Brasil é autossuficiente em petróleo, argumenta,
então não precisa considerar os preços externos em dólar. A explicação é
enganosa. Mesmo que a Petrobras produza petróleo suficiente para abastecer o
mercado interno, ela exporta e importa para adequar o produto às
características de suas refinarias. Elas datam de antes dos anos 1970, quando
ainda não havia sido encontrado petróleo em Campos nem no pré-sal, e foram
construídas para processar óleo do tipo leve, importado.
A Petrobras garante que 94% do produto que
refina já tem origem nacional. Ainda assim, importa óleo cru, e o mercado
depende da importação de derivados, principalmente diesel. Qualquer distorção
em relação aos preços externos terá, portanto, reflexo no abastecimento
interno. Ao praticar uma espécie de “congelamento interno”, para atender a
determinações de Lula, a Petrobras deverá arcar com algum custo em seu caixa.
O mercado internacional de petróleo não
está favorável à aposta da nova diretoria da estatal. O barril do tipo Brent,
referência internacional, saltou pouco mais de 10%, de US$ 74,90 para quase US$
83 no início de julho, e a expectativa de analistas é que se mantenha na faixa
dos US$ 80 por meses. A previsão se baseia na redução do risco de recessão nos
Estados Unidos e em estímulos ao crescimento na China.
A Petrobras vai em caminho oposto. Gasolina e diesel estão 20% abaixo das cotações internacionais, segundo a Associação Brasileira dos Importadores de Combustíveis (Abicom). O efeito é desestimular a importação por distribuidoras privadas, movimento que eleva o risco de desabastecimento. Por isso a estatal tem aumentado a importação, gasto que seria desnecessário se a ordem não fosse “abrasileirar” os preços. Quando Dilma Rousseff estava no Planalto, manteve o congelamento até o endividamento da estatal chegar a US$ 126 bilhões, em 2015, a mais elevada dívida corporativa do mundo. Aquele erro, cometido contra os acionistas da empresa — entre os quais a União —, deveria ter tido efeito pedagógico. Pelo visto, não teve.
Corte correto
Folha de S. Paulo
Redução do juro a 13,25% tem base técnica;
normalização exige equilíbrio fiscal
Em decisão tomada por margem estreita, de 5
votos a 4, o Banco
Central decidiu reduzir em 0,5 ponto percentual a sua taxa de juros, para
13,25% ao ano —foi preterida a opção de corte menos ambicioso,
de 0,25 ponto percentual.
O voto de desempate foi do presidente do
BC, Roberto Campos Neto, o que, ao menos em tese, contribui para dissipar
tensões políticas em torno da medida.
É esperado que a divergência de opiniões no
Comitê de Política Monetária seja mais frequente de agora em diante, uma vez
que há diretores indicados por governos diferentes. O fato deve ser encarado
com naturalidade.
Para o momento, de todo modo, o
afrouxamento tem dimensão adequada. Há razões objetivas a sustentá-lo, em
particular as evidências de desaceleração da economia, a redução das incertezas
em torno da gestão das contas públicas com a iminência da aprovação do novo
marco fiscal e a queda das expectativas para a inflação.
Quanto ao último ponto, foi essencial a
decisão do Conselho Monetário Nacional, destacada no comunicado do BC, de fixar
a meta para o IPCA de 2026 em 3%, mesma cifra dos próximos dois anos.
A definição contribuiu para melhorar nas
últimas semanas as projeções de analistas de mercado para a elevação dos
preços, embora ainda estejam em 3,89% para 2024 e 3,5% para os dois anos
seguintes —acima da meta, portanto.
Depois de números surpreendentes da
atividade econômica do primeiro trimestre, que levaram ao aumento das
estimativas para a variação do Produto Interno Bruto em 2023 de 1,3% para 2%, a
perspectiva agora é de perda de ritmo.
Há estagnação no varejo e na indústria,
enquanto se esgota o impulso que sustentou os serviços desde o fim da pandemia.
O crédito escasso ameaça piorar as condições de muitas empresas.
Entende-se, assim, a indicação unânime do
colegiado de reduções continuadas de 0,5 ponto por reunião, a permanecerem as
tendências atuais, que devem perdurar pelo menos até que a taxa Selic se
aproxime dos 10%, o que ainda seria um patamar contracionista.
Daí em diante, tudo dependerá da boa
condução geral da política econômica do governo, algo longe de garantido.
Embora o novo marco fiscal tenha limitado o espaço para crescimento desmesurado
de despesas, a alta já
contratada além do necessário não ajuda o controle da inflação.
É cedo, portanto, para considerar que as
políticas fiscal e monetária estão em harmonia. Se o BC deve caminhar para
menos restrições no custo do dinheiro, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad,
precisa dar sinais mais claros de que cumprirá com sua parte.
Banco Central prova sua autonomia
O Estado de S. Paulo
Bombardeado dia e noite pelo presidente
Lula pela austeridade monetária, o presidente do BC dita o ritmo do ciclo de
queda dos juros e Copom manda recado de que manterá ‘moderação’
O voto de Minerva do presidente do Banco
Central (BC), Roberto Campos Neto, que ajustou em 0,5 ponto porcentual o corte
da taxa básica de juros (Selic), desarmou o discurso político do governo que
atribuía a ele e à austeridade monetária do BC todas as mazelas econômicas do
País. Não há como contestar o caráter técnico da decisão que reduziu a Selic
para 13,25% ao ano, após um ano estacionada em 13,75%. Mas, ao mesmo tempo que
reiterou o embasamento das decisões da autoridade monetária, Campos Neto
esvaziou, ao menos por enquanto, as críticas políticas.
O resultado veio a galope. Meia hora depois
do anúncio do corte, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, dava entrevista na
porta do Ministério. Não de improviso, como de costume, mas em um cenário
montado, com púlpito e organização cuidadosa. Entre as costumeiras loas a
projetos de governo, destacou o desempate de Campos Neto em um colegiado
dividido entre o corte de 0,25 e 0,5 ponto porcentual. “É um voto técnico,
calibrado, à luz de tudo o que ele (Campos Neto) conhece da realidade do País.”
O ministro deu a senha para o armistício do
Planalto com o Banco Central. Desde o início do governo, Lula da Silva e
assessores palacianos têm criticado a autonomia da instituição, ensaiando
movimentos para derrubar a lei que a estabeleceu, em 2021, tendo como principal
objetivo assegurar a estabilidade de preços. São a autonomia e a independência
legal que permitem aos diretores do BC ignorarem tentativas de ingerência e
fixarem a taxa básica de juros com base nos parâmetros de inflação, atividade
econômica, política fiscal e comportamento das contas públicas, além do cenário
externo.
Com base nesses critérios, o comunicado do
Comitê de Política Monetária (Copom) reforçou o “firme objetivo” de manter a
política monetária contracionista até que a inflação convirja para a meta “no
horizonte relevante”, ou seja, de 4,9% neste ano, 3,4% em 2024 e 3% em 2025. E,
apesar de ter descrito, com todas as letras, que considera adotar o mesmo
“ritmo apropriado” de queda nas próximas reuniões – serão mais três ainda neste
ano –, desde que mantida a atual tendência para os mercados interno e externo,
a decisão do BC já deu início a especulações no mercado financeiro em torno de
cortes mais robustos à frente, na casa de 0,75 ponto porcentual.
Não parece ser essa a tendência. Mesmo com
a sintonia evidente entre Haddad e Campos Neto, reiterada por ambos em
diferentes ocasiões, a política monetária do BC deve caminhar de forma apartada
dos pressupostos do governo. Obviamente, não em confronto. Afinal, o BC é
também governo, embora com um presidente indicado pela gestão anterior, como
rege um dos princípios da autonomia (mandatos não coincidentes).
Haddad e Campos Neto compõem, com a
ministra do Planejamento, Simone Tebet, o Conselho Monetário Nacional (CMN),
que em sua reunião mais recente decidiu instituir o modelo de meta contínua
para a inflação. Em vez do exercício fechado, de janeiro a dezembro, a meta
terá um fechamento contínuo, com um horizonte de tempo de atuação que caberá ao
BC definir. Podem ser 12, 18 ou 24 meses, por exemplo – o que estende também o
prazo do planejamento para chegar ao objetivo estipulado.
As expressões “serenidade” e “moderação”
substituíram “parcimônia”, usada pelo Copom no comunicado anterior. São
praticamente sinônimos, mas, como se trata de definição sobre a dinâmica dos
juros, qualquer nuance representa um grau a mais ou a menos de intensidade.
Algumas preocupações permanecem, como a lentidão da queda da inflação neste
segundo semestre, a desaceleração do PIB no próximo trimestre e as muitas
incertezas no cenário externo. Não houve, desta vez, menção à política fiscal.
A ata da reunião, na semana que vem, trará
mais detalhes. Mas, mesmo sendo “um voto de nove”, como costuma dizer, Roberto
Campos Neto foi protagonista inquestionável da reunião do Copom, a primeira dos
dois indicados pelo governo Lula da Silva, Gabriel Galípolo e Ailton Aquino.
Mas essa foi, ao contrário do que se esperava, uma mudança que passou quase
despercebida.
Um sistema de saúde para o século 21
O Estado de S. Paulo
Como o SUS, o NHS britânico, que o
inspirou, é subfinanciado. Mas mais importante que aumentar os gastos é
redirecionar seu foco: dos hospitais para a prevenção e cuidados primários
Em 1942, William Beveridge fundou o Estado
de Bem-Estar Social britânico, que influenciaria o mundo ao propor a proteção
universal “do berço ao túmulo” contra os cinco “males gigantes”: ociosidade,
ignorância, doença, miséria e carência. A espinha dorsal do sistema foi o
Serviço Nacional de Saúde (NHS), que no dia 5 passado completou 75 anos.
Hoje, o NHS é mais venerado pelos
britânicos que a monarquia. No dizer de um ex-ministro da economia, é o que
mais se aproxima de uma “religião nacional”. Como outras religiões, essa tem
seus dogmas: serviços abrangentes, universais e gratuitos, pagos com impostos
gerais. Mas, como disse em editorial o jornal The Guardian, nas celebrações “o
orgulho e o alívio com a existência do NHS se mesclam a uma amarga frustração
com o modo como vem sendo tratado”. Como seus pacientes, o sistema
septuagenário precisa de cuidados. Entre os países desenvolvidos, o Reino Unido
tem taxas ruins de expectativa de vida e de sobrevivência ao câncer, enfarte e
derrames. Milhões estão em filas de espera, que podem durar dois anos.
O debate britânico tem especial interesse
para o Brasil, dado que o NHS foi a inspiração para o Sistema Único de Saúde, o
SUS, criado com a Constituição de 1988. Tal como o NHS precedeu os sucessos do
SUS, ele agora o precede em seus desafios.
Mais dinheiro é inevitável, especialmente
considerando o envelhecimento da população. Nenhum país da OCDE investe menos
em saúde per capita. Similarmente, os 3,9% do PIB de gastos públicos com saúde
no Brasil estão abaixo da média dos países desenvolvidos. Alguns britânicos
sugerem alternativas, como o financiamento de países europeus via contribuições
de empregadores e empregados. Analogamente às propostas no Brasil de
mensalidade para as universidades públicas, outros defendem que os ricos devem
custear parte de seus tratamentos.
Mais relevante e promissora do que a
discussão sobre a quantidade do gasto e a sua fonte, contudo, é a discussão
sobre como se deve gastar.
Quando o NHS foi fundado, os problemas de
saúde mais prementes eram os tratamentos de infecções e acidentes. O modelo
focado na hospitalização fazia sentido. Mas esses dias se foram. Hoje, a
maioria dos gastos diz respeito a tratamentos de condições crônicas como
diabetes, hipertensão ou artrite, que podem ser realizados pelos próprios
pacientes em suas casas, com apoio de clínicos gerais e especialistas locais.
“Um sistema focado em hospitais é projetado para tratar as pessoas só depois de
elas estarem realmente doentes”, ponderou a revista britânica The Economist.
“Isso equivale a comprar mais extintores de incêndio enquanto se desligam os
alarmes de fumaça.” Recentemente, o líder do Partido Trabalhista, Keir Starmer,
instou uma mudança de foco: dos cuidados agudos para os crônicos.
Isso significa investir mais em prevenção e
atendimento primário, ou seja, em manter as pessoas saudáveis em casa, mais do
que em tratá-las nas enfermarias. Fatores socioeconômicos e comportamentos
individuais podem ser mais decisivos para a saúde de uma nação que os cuidados
médicos. Um exemplo óbvio é a obesidade. Pensando no Brasil, considere-se o
alívio que a universalização do saneamento ou a erradicação da fome trariam
para o SUS.
A tecnologia é crucial. A telemedicina e
repositórios de dados para mapear riscos e prevenir doenças, por exemplo, podem
fazer muito para desafogar os hospitais.
Tudo isso requer uma mudança cultural,
especialmente dos políticos, que naturalmente veem mais dividendos eleitorais
em entregar hospitais do que em investir em cuidados comunitários difusos. Mas
tais cuidados podem levar a uma população mais saudável, com menos ônus aos
contribuintes. A receita para salvar o NHS é “transformá-lo daquilo que ele se
tornou – um serviço de doença – naquilo que seu nome promete – um serviço de
saúde”, concluiu a Economist. “Isso significará gastar mais dinheiro. Mas
gastá-lo produtivamente exige uma mudança de foco: para longe dos hospitais
rumo à comunidade, do tratamento à prevenção, do incentivo aos aportes ao
encorajamento de melhores resultados.”
Bolsonarismo de manual
O Estado de S. Paulo
O caso da deputada Carla Zambelli é exemplar
da mentalidade essencialmente golpista dessa turma
Não diz grande coisa o número de votos que
elegeram a sra. Carla Zambelli para a Câmara, porque São Paulo já votou em
massa numa rinoceronte há algumas décadas. Mas a referida senhora não é tão
desimportante quanto parece. Afinal, se alguém encarna fielmente o ethos
bolsonarista, algo que pode ser descrito, de forma sucinta, como uma busca
incessante pela instabilidade do País pela via da mentira, da desinformação e
do golpismo, é ela.
A cassação de seu mandato, portanto, é ação
profilática que se impõe à Casa de representação política da sociedade. A sra.
Zambelli é um corpo estranho na democracia, razão pela qual deve ser expelida
por seus pares por meio do mecanismo criado pela própria democracia para se
proteger de ameaças como ela.
Porém, mais importante para o País do que o
destino político – ou jurídico – da sra. Zambelli é entender como ela
representa a mentalidade do bolsonarismo. Nesse sentido, a operação deflagrada
pela Polícia Federal há poucos dias contra a parlamentar e um desqualificado a
ela associado não poderia ser mais elucidativa.
A sra. Zambelli é suspeita de ter
contratado Walter Delgatti Neto para “hackear” a urna eletrônica. Por trás
dessas ações insidiosas estaria o intuito de “provar” a estapafúrdia tese de
Jair Bolsonaro segundo a qual o sistema eleitoral brasileiro estaria sujeito a
fraudes.
Evidentemente, a trama golpista foi um
fiasco. Como o próprio “hacker” admitiu aos policiais depois de ser preso, a
urna eletrônica é inexpugnável, pois, como a Justiça Eleitoral já cansou de
explicar, o aparelho não está conectado à internet.
Diante desse revés eminentemente técnico –
o único capaz de parar bolsonaristas como a sra. Zambelli, pois barreiras
morais há muito já foram obliteradas –, a deputada, então, teria pedido ao tal
“hacker” para que “invadisse” o celular do ministro Alexandre de Moraes, a fim
de bisbilhotar mensagens que pudessem desaboná-lo e, assim, minar sua
credibilidade e isenção como membro do Supremo e presidente do Tribunal
Superior Eleitoral, além de instalar no País o caos em que vicejam esses
inimigos da democracia.
Ainda que apenas metade dessa história seja
verdadeira, ela basta para servir de exemplo do manual clássico do
bolsonarismo. Uma das regras não escritas desse movimento, se assim pode ser
chamado, é jamais se dar por vencido quando uma tentativa de abalar a paz
social ou subverter a ordem democrática der errado.
Incapaz de operar dentro das regras do jogo
democrático, o bolsonarismo apenas se serve de seus instrumentos, tal como um
parasita, para minar suas forças. Seus representantes, a começar por Bolsonaro,
claro, jamais se ocuparam de projetos sérios para o País. Suas ações são
conduzidas, já dissemos, sob o signo de Tânatos, o deus da morte na mitologia
grega, não raro flertando com a delinquência.
A política, como meio civilizado de concertação em torno dos muitos interesses da sociedade, há de ser saneada pela vida constitucional. Isso passa pelo expurgo de políticos que não vivem bem sob a luz das liberdades democráticas.
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