Eu & /Valor Econômico
A hora é de pensar como articular as verbas
do orçamento com os programas e políticas públicas
Uma das maiores qualidades na política é
encontrar interesses comuns onde há impasses e divergências. Em termos
intertemporais, é muito difícil manter-se no poder em sociedades complexas sem
buscar negociação e cooperação, sem que isso signifique perder a autonomia
relativa de seu grupo político ou Poder institucional. Esse preâmbulo
conceitual tem uma só finalidade: pensar em como sair do dilema central das
relações entre o Executivo e o Congresso Nacional, referente à ampliação das
emendas parlamentares.
O aumento da capacidade de gastar mais com emendas parlamentares é um fenômeno que começou em meados da década passada, com reformas legais e a partir, primeiramente, da liderança de Eduardo Cunha. Depois esse processo foi aprofundado principalmente pela ação de Arthur Lira, culminando na criação daquilo que foi chamado de Orçamento Secreto. Mesmo com a decisão do STF considerando inconstitucional esse último formato, o valor que os deputados e senadores terão direito com emendas será, no mínimo, de R$ 40 bilhões em 2024 - e, registre-se, grande parte desse dinheiro é transferido ainda com pouca transparência.
Há muitas críticas ao emendismo,
especialmente de duas ordens. Em primeiro lugar, esse tipo de gasto aumenta a
fragmentação das ações governamentais, enfraquecendo a organicidade das
políticas públicas. Despesas com muitas coisas diferentes e geralmente
descoladas dos programas estruturais de cada setor geram maior ineficiência. A
qualidade do gasto público pode ser, ainda, atingida pela menor transparência e
malversação do uso dessas emendas. Vários casos recentes revelam fortes
indícios de corrupção nesse processo, algo que atinge a imagem do Congresso
Nacional, cada vez mais mal avaliado pelo eleitorado, conforme mostrou a última
pesquisa do Datafolha.
Sem ignorar esses problemas, é preciso
apontar que o modelo anterior de enorme concentração de poderes orçamentários
no Executivo não era imune a defeitos. Primeiro porque enfraquecia a autonomia
congressual e tornava a liberação de verbas uma via-crúcis de deputados e
senadores com pires nas mãos pelos ministérios. Esse comportamento empobrece a
representação parlamentar e, pior, também favorece o clientelismo e o
fisiologismo tanto quanto o emendismo - só que neste caso dominado pelo
Executivo. Muitos casos de mal uso dos recursos públicos e mesmo corrupção
também surgiam dessa relação espúria de forte subordinação parlamentar ao
governo.
Um Congresso mais autônomo é necessário para
se ter um presidencialismo mais equilibrado. Evidente que o modelo desenhado
para o emendismo atual está longe do ideal, seja por conta da pulverização de
gastos por fora ou até em oposição às políticas públicas sistêmicas, seja em
razão de sua opacidade e pouca responsabilização dos parlamentares. De toda
maneira, uma leitura minimamente realista da conjuntura política, para além de
uma concepção normativa, revela que esse desejo de independência dos
congressistas veio para ficar e será preciso fazer do limão uma limonada, isto
é, aproveitar que querem ter agenda própria e casar isso com um projeto
político mais orgânico.
Se tem sido possível, mesmo com muito
trabalho de negociação, construir uma agenda econômica com o Congresso como
está fazendo com paciência budista o ministro Fernando Haddad, também há
chances de se montar uma agenda de melhoria da qualidade do gasto público na
qual as emendas parlamentares sejam um elemento central. Em vez de ficar apenas
na postura de criticar o emendismo, o que só gera trincheiras poderosas, a hora
é de pensar como articular as verbas daí derivadas com os principais programas
e políticas públicas.
Antes de discutir uma estratégia de
articulação em torno da melhoria do emendismo, é fundamental dizer o que
perderão o Congresso e o Executivo se se mantiverem numa conversa de surdos.
Caso os congressistas insistam em fazer emendas apenas no padrão pulverizador e
descolado dos programas federais sistêmicos, com ramificação no plano
subnacional, duas consequências negativas têm boas chances de ocorrer.
A primeira já é muito temida por deputados e
senadores: como esse gasto fica muito solto e sem controle, vão pulular
denúncias de corrupção, e muitas delas terão muito mais consequências jurídicas
e políticas do que no período Bolsonaro. Trata-se de uma bomba-relógio que poderá
explodir individualmente no colo de alguns parlamentares, mas também terá
efeitos coletivos. Imagine o final da gestão de Lira na Câmara com um cenário
como esse. O resultado seria um enfraquecimento enorme da instituição e,
especialmente, do seu grupo político majoritário. E ao contrário do que pensam
alguns analistas, enfraquecer o Congresso e o Centrão somente acirraria o clima
polarizador que enfraquece a democracia brasileira.
Outro cenário pouco discutido até agora é que
o efeito eleitoral das emendas terá de competir com um governo orientado por
políticas públicas com grande ramificação subnacional. Esse modelo mais
sistêmico começou a ser construído pelo presidente Fernando Henrique e foi
aprofundado nas gestões petistas. Suas características são programas com larga
escala, ancorados na articulação com prefeitos e (em menor medida)
governadores, com marcas fáceis de se identificar e que têm basicamente nos
pobres seu principal público-alvo. Tal paradigma está voltando e é bem
diferente do governo Bolsonaro, mais vinculado à guerra dos valores do que a
disputa por políticas públicas.
Numa situação com várias políticas públicas
sistêmicas de grande incidência local e junto aos mais pobres, é possível que
os votos que vieram das emendas na eleição passada tenham de competir com
candidatos vinculados a programas federais nas áreas de educação, saúde,
assistência, infraestrutura, habitação, para ficar nos mais evidentes. Seria
muito mais interessante, do ponto de vista da eficiência eleitoral, os deputados
e senadores casarem seu emendismo com tais ações governamentais mais
estruturantes.
Só que a transformação precisa ocorrer
igualmente no lado do Executivo. É preciso criar um diálogo institucionalizado
entre os gestores da Esplanada e os líderes do Congresso Nacional para pensar
num modelo de emendas que se articule com as principais políticas públicas e
seus programas. Para isso, o governo tem também de ouvir os congressistas para
incorporar, na medida do possível, as propostas de gastos contidas nas emendas.
Muitas das ações propostas no período bolsonarista, como o kit robótica na
educação, eram absurdas, porém não se pode simplesmente jogar fora o
conhecimento que deputados e senadores têm das bases locais. Nesta conversa
entre os Poderes, pode haver um aprendizado mútuo e um ajuste de preferências,
mantendo a autonomia presente no emendismo.
Vale frisar que, quanto mais se chegar a uma
cesta de tipos de emendas que se casem o máximo possível com os programas
federais estruturantes, mais fácil será para implementar com eficiência,
transparência e qualidade o orçamento federal. Isso reduziria os riscos que os
congressistas correm com o atual modelo, ao mesmo tempo que o Executivo poderia
utilizar melhor uma dotação orçamentária enorme, num momento em que o governo
terá de ser ainda mais efetivo em suas ações porque o país precisa de boas
políticas para combater as mazelas do bolsonarismo e o dinheiro à disposição
não será tão generoso como gostariam os ministros.
A agenda de reconstrução do modelo emendista
é um jogo de soma positiva, no qual ambos os lados ganham. Aferrar-se na
preservação da estrutura fragmentada atual ou defender o paradigma mais
centralizado anterior é, nas duas hipóteses, uma forma de manter as disfunções
e manter o impasse. E não resolver esse dilema é gerar um jogo de soma
negativa, no qual perdem, no curto ou no longo prazo, os congressistas, o
governo e, sobretudo, a sociedade brasileira.
Arthur Lira deveria abraçar essa agenda
reformista das emendas parlamentares, que é muito mais importante para a
qualidade do gasto público e para o fortalecimento da legitimidade do Congresso
Nacional do que o péssimo projeto de reforma administrativa que está hoje na
Câmara federal. Sair por cima com essa mudança estrutural não é apenas uma forma
de garantir poder para além de sua gestão, que acaba no início de 2025. Mais do
que isso, seria uma reforma para ficar na história, como a tributária, o que
alçaria Lira a um outro patamar. Em poucas palavras, ele sairia da presidência
da Câmara maior do que entrou.
O Executivo é também um ator central nessa
reforma. É preciso parar com esse modelo de só chamar congressistas do Centrão
ou equivalente para fechar buracos no Ministério e garantir, provisoriamente,
maiorias congressuais. Mudar o país estruturalmente passa pelo casamento das
demandas parlamentares e do governo no campo do orçamento, sem tirar a
autonomia dos Poderes. Não é uma tarefa fácil, mas é da envergadura do Plano
Real ou do Bolsa Família. Poderia ser uma excelente contribuição do período
Lula 3 ao Brasil, gerando um novo padrão de relacionamento entre os poderes.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário