Julgamento do 8 de Janeiro é histórico e desafiador
O Globo
Crime contra a democracia foi vil, mas o
rigor das penas precisa refletir com fidelidade as provas
Começa amanhã no Supremo Tribunal Federal (STF)
o julgamento dos primeiros réus pelos ataques golpistas de 8 de janeiro contra
o Palácio do Planalto, o Congresso e o próprio STF. Não se trata de um
julgamento qualquer. O trabalho da Justiça faz parte da reação necessária das
instituições na defesa do Estado de Direito contra a ação de forças antidemocráticas.
O rigor das penas precisa refletir com fidelidade as provas colhidas, mas
também a gravidade da ameaça que o país enfrentou.
A Procuradoria-Geral da República (PGR) pede, nesta primeira fase, a condenação de quatro presos em Brasília, acusados dos seguintes crimes: abolição violenta do Estado Democrático de Direito, associação criminosa armada, golpe de Estado e deterioração de patrimônio tombado. A PGR apresenta fartas provas para justificar as acusações, muitas produzidas pelos próprios réus — Aécio Lúcio Costa Pereira, Thiago de Assis Mathar, Moacir José dos Santos e Matheus Lima de Carvalho — com seus telefones celulares.
Os quatro afirmam ter ido a Brasília para
uma “marcha pacífica”. Mathar diz ter entrado no Palácio do Planalto só para se
proteger do conflito violento nas imediações. Versões semelhantes deverão
surgir no julgamento. A defesa também alega que não há provas capazes de
vinculá-los a danos específicos, como janela quebrada, obra de arte vandalizada
ou arrombamento (mas há inúmeros casos em que imagens ligam criminosos a ações
específicas; num caso que não será julgado nesta fase, o acusado foi flagrado
por uma câmera do Planalto destruindo um relógio trazido ao Brasil por Dom João
VI).
O argumento da defesa é falho, pois não se
trata apenas de vandalismo. A conspiração para atacar as sedes dos Três
Poderes, a incitação à violência e a mobilização antidemocrática configuram
crimes tão graves quanto os ataques em si. Ninguém ficou semanas acampado em
quartéis bradando em favor de um golpe de Estado, à espera de um sinal para
agir, sem saber o que fazia. É incontestável que houve um movimento golpista
coletivo, e a mera participação nele é crime.
É certo que nem todos tiveram o mesmo grau
de envolvimento na conspiração e na violência, portanto nem todos têm a mesma
parcela de culpa. Justamente por isso, caberá aos ministros do Supremo analisar
as provas com serenidade e afinco para estabelecer punições proporcionais à
gravidade dos crimes cometidos.
Os magistrados podem se inspirar nos
julgamentos que têm condenado os responsáveis pela invasão do Capitólio, o
Congresso dos Estados Unidos, em 6 de janeiro de 2021. Os expoentes das cenas
de selvageria para tentar manter Donald Trump no poder têm sido levados para
trás das grades depois de processos exaustivos, em que têm exercido na
plenitude seu direito de defesa (o último foi Enrique Tarrio, líder do grupo de
ultradireita Proud Boys, condenado a 22 anos neste mês).
Relatados pelo ministro Alexandre de
Moraes, os processos têm tramitado com celeridade e, em razão de seu
ineditismo, chamado atenção do público. Como Moraes e o próprio Supremo foram
alvo de ataques, será fundamental que os ministros mantenham o equilíbrio,
tomem suas decisões com base nos autos e façam o possível para que nem de longe
o julgamento possa ser visto como um espetáculo de vingança política. Nada
seria mais frustrante para a democracia.
Disputa por arrecadação de apostas obscurece
objetivo da regulação
O Globo
Motivo para disciplinar mercado não é
apenas arrecadar impostos, mas também coibir as fraudes
O governo regulamentou em julho, por meio
de Medida Provisória (MP), o profícuo mercado de apostas esportivas
no Brasil. A MP estabelece regras para o funcionamento do setor e cria uma taxa
para as empresas que ganham com apostas, conhecidas como “bets”. A iniciativa
aconteceu na sequência de investigações do Ministério Público de Goiás que
revelaram um esquema de manipulação de resultados em jogos das Séries A e B do
Campeonato Brasileiro para lucrar com apostas fraudulentas. Além de representar
perda de arrecadação, a falta de regulação cria um campo fértil ao crime.
A MP estabeleceu um imposto de 18% sobre a
arrecadação líquida das bets, alíquota que ainda poderá ser reduzida dependendo
da negociação em curso no Congresso. Com a nova taxa, o governo prevê arrecadar
no ano que vem entre R$ 1,7 bilhão e R$ 2 bilhões. Pelas previsões de
crescimento do mercado, a receita poderá chegar a R$ 12 bilhões nos próximos
anos. Os recursos serão destinados à seguridade social, ao Ministério do
Esporte, ao Fundo Nacional de Segurança Pública, aos clubes, aos atletas e à
educação básica.
A distribuição do dinheiro começa a
despertar a natural cobiça no governo. O Ministério do Turismo — entregue a
Celso Sabino (União) na minirreforma ministerial — reivindica uma fatia do
bolo. O do Esporte, dado a André Fufuca (PP-MA), quer ampliar sua participação
no rateio (ela já subiu de 1% para 3% antes da publicação da MP e só perde para
a seguridade social, com 10%). A disputa pelas verbas das apostas esportivas é
parte natural do jogo político, mas não pode desvirtuar o propósito da
regulamentação.
Além da arrecadação, o objetivo é
disciplinar um setor às voltas com o aumento preocupante na manipulação. O
mercado de apostas tem crescido no mundo inteiro e, com ele, têm crescido as
fraudes. A principal vítima é o torcedor, que, iludido, perde tempo e dinheiro
para assistir a partidas sem poder confiar na lisura do resultado.
Não se pode ignorar o que tem acontecido no
Brasil e no mundo. À revelia das bets, quadrilhas têm aliciado atletas para que
levem cartões vermelhos, cometam pênaltis ou interfiram no resultado de modo a
favorecer apostas fraudulentas. A Fifa acaba
de banir definitivamente do futebol mundial três jogadores brasileiros por
envolvimento com apostas irregulares. Outros oito foram afastados
temporariamente.
A taxação das bets certamente proporcionará ao governo recursos valiosos num momento em que a Fazenda procura aumentar a arrecadação para cumprir as metas ambiciosas do arcabouço fiscal. Mas a regulamentação tem também — ou ao menos tinha — o objetivo de deixar o setor menos vulnerável aos criminosos. Se não cumpri-lo, com o tempo estará em risco a credibilidade do próprio futebol e dos demais esportes.
Experiências passadas expõem os desafios do
Novo PAC
Valor Econômico
Apesar de prever maior participação do
setor privado há o receio de que as metas fiscais imponham limites aos
investimentos públicos
Passada a euforia com o lançamento do novo
Programa de Aceleração do Crescimento, o Novo PAC, há um mês, surgem as dúvidas
se o plano de investimento de R$ 1,7 trilhão vai decolar. Apesar de prever
maior participação do setor privado do que seus dois antecessores, há o receio
de que as metas fiscais imponham limites aos investimentos públicos, que
incluem recursos orçamentários e de estatais, além dos financiamentos de
instituições financeiras públicas. Há também dúvidas sobre a viabilidade da
intenção do presidente Lula de terminar as obras paradas, e se as lições do
passado foram aprendidas, principalmente sobre a importância de se evitarem
desmandos e corrupção.
O Novo PAC prevê a participação de 36% para
o setor privado, que entraria com R$ 612 bilhões. Ainda assim, o setor público
ficará com a maior parte, os dois terços restantes, divididos em partes quase
iguais de recursos orçamentários, investimentos de estatais e financiamentos de
bancos públicos. O Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2024 traz a
previsão de quanto será gasto no próximo ano e nos três seguintes. No caso do
PAC, serão R$ 61,7 bilhões, R$ 58,7 bilhões, R$ 62,2 bilhões e R$ 63,9 bilhões,
respectivamente. Mas as dúvidas crescentes sobre o cumprimento da meta de zerar
o déficit primário em 2024 criaram o receio de que os recursos para o PAC podem
ser comprometidos.
Membros do governo garantem, porém, que os
projetos serão executados respeitando o arcabouço fiscal e o controle da
inflação. Os objetivos são aumentar os investimentos e estimular o crescimento
da economia. A experiência passada não é favorável, porém. O primeiro programa
foi lançado em 2007, no segundo mandato de Lula, e teve a segunda etapa em 2011
já na Presidência de Dilma Rousseff. Essa segunda fase foi caracterizada pelo
aumento dos aportes do Tesouro, em um modelo de crescimento baseado no gasto
público, segundo avaliação de Paulo Lins, colaborador do blog do Ibre FGV
(2017). O caso emblemático é o da Refinaria Abreu e Lima (PE). Muitas obras
anunciadas nessa segunda fase já haviam feito parte da primeira e simplesmente
não foram concluídas.
Por orientação do presidente Lula, o Novo
PAC enfatiza a conclusão de obras paradas, apostando que essa estratégia deve
marcar a boa gestão dos investimentos. O Tribunal de Contas da União (TCU)
informa que existem no país pouco mais de 8,6 mil obras paradas, 41% do total
da carteira de obras iniciadas, percentual superior aos 38% de 2022 e aos 29%
de 2020. A maior parte delas é na área da educação, como creches e escolas,
seguidas por infraestrutura e mobilidade urbana.
Mas o próprio governo avalia que cerca de
metade das milhares de obras paradas terá dificuldade para ser retomada. As que
foram totalmente abandonadas teriam que praticamente recomeçar do zero e passar
por nova licitação. Dados de abril do TCU evidenciam que as obras paradas
consumiram quase R$ 8,3 bilhões em recursos federais, e demandariam mais R$ 24
bilhões para serem concluídas.
O ministro da Casa Civil, Rui Costa, lembrou
das obras paralisadas das outras versões e disse que o PAC 3 as retomará para
não criar “cemitérios de obras públicas”. Resta saber se valem a pena. Sabe-se
que muitos projetos são de má qualidade, além dos nascidos de mera motivação
política, sem viabilidade técnica. O quadro lamentável e a exiguidade de
recursos disponíveis justificam a preocupação dos especialistas com a
governança do Novo PAC e a sugestão de avaliar em profundidade os projetos que
serão retomados.
Um capítulo à parte é a relação nem sempre
amistosa dos gestores do PAC com o ambiente. Há vários exemplos negativos no
passado, como o da hidrelétrica de Jirau, que está completando dez anos e é
responsável por 2,6% do consumo de eletricidade do país com energia renovável.
Ela faz parte do complexo do rio Madeira e foi construída com a tecnologia fio
d’água, com turbinas do tipo bulbo, que dispensa a formação de extensos
reservatórios. Ainda assim ambientalistas afirmam que a área alagada é superior
à estimada inicialmente.
Apesar de o governo ter declarado que esse
é um PAC verde, incluiu na sua lista a conclusão das obras da Ferrogrão,
criticada por atravessar trechos da floresta amazônica e área ocupada por
indígenas. Também incluiu a perfuração de poços exploratórios da Petrobras na
Margem Equatorial, situados na Bacia Potiguar, questionada pelo Ibama e ainda
objeto de debate entre especialistas.
Também há no Novo PAC, entre as medidas
positivas, o incentivo às concessões e às Parcerias Público-Privadas. Foi Lula
que sancionou a Lei das PPPs em 2004, no seu primeiro mandato. A aposta é que o
setor privado é mais rápido nas decisões e eficiente na execução, desde que
avaliado e fiscalizado. A adesão do setor privado, porém, depende de que outros
fatores estejam caminhando, como o arcabouço fiscal, juros em queda e a
estabilidade de regras.
Dada a importância do tema, o Valor está publicando uma
série de reportagens sobre o PAC. A primeira, com aspectos macroeconômicos,
saiu na semana passada. A segunda foi publicada ontem e aborda os gargalos para
os investimentos. A terceira tratará da participação privada e de alguns dos
eixos setoriais.
Não estão nem aí
Folha de S. Paulo
Congressistas aceleram projetos que interessam
mais a políticos que à sociedade
As críticas foram muitas, mas eles seguiram
em frente mesmo assim. Falou-se que seria um escândalo, mas eles não deram
importância para isso. Argumentou-se que as leis (feitas por eles próprios!)
restariam desmoralizadas, mas eles perguntaram: "E daí?".
É assim que se traduz a vontade, quase
unânime entre os congressistas, de levar adiante um conjunto de iniciativas que
dizem respeito à legislação eleitoral. Na proa dessa nau da desfaçatez, tal
qual aríete contra a moralidade, avança a proposta de emenda à Constituição
conhecida como PEC da
Anistia.
São conhecidos seus propósitos. Se
aprovada, ficarão impunes os mais variados desvios cometidos pelos partidos nas
últimas eleições. O pacote livra de sanções, por exemplo, a não observância da
proporção mínima de vagas e de custeio para candidaturas de mulheres, pretos e
pardos, assim como o uso impróprio de verbas em compra de aviões e toneladas de
carne.
Mas essa é apenas a proa. A embarcação
ainda carrega outras medidas que, na melhor das hipóteses, são
irrelevantes. À primeira vista, é o caso da PEC das Mulheres, que reserva um
mínimo de 15% das cadeiras no Legislativo para a bancada feminina, um patamar
inferior aos 17,7% alcançados em 2022 na Câmara dos Deputados.
Esperar a melhor das hipóteses, contudo,
pode ser um erro quando se trata do lobby partidário, e o raciocínio sem dúvida
se aplica ao terceiro item desse pacote: a assim chamada minirreforma
eleitoral.
Pode-se, aqui e acolá, debater o mérito
desses projetos. Há discussões legítimas a fazer sobre cotas ou sobre as regras
de inelegibilidade prescritas pela Lei da Ficha Limpa, para citar duas
situações na mira do Congresso Nacional.
Deputados e senadores, entretanto, não
querem debates; se quisessem, não confabulariam a tramitação desse pacote às
pressas, preocupados apenas com a sua aprovação a tempo de valer nas eleições
municipais de 2024.
Sabe-se muito bem qual é o motivo da
celeridade. Aos congressistas não interessa que a sociedade mantenha a pressão
contra o maior perdão de dívidas da história; ou que questione a absurda perda
de transparência na prestação de contas parciais dos partidos; ou que analise a
melhor forma de enfrentar desigualdades na política.
No afã de agora, deputados e senadores
querem sobretudo legislar em causa própria; querem dar de ombros para a
milionária malversação de recursos públicos praticada por eles mesmos; querem
garantir que as regras funcionem em benefício deles próprios.
Em tais momentos, a polarização ideológica
e as rivalidades políticas são deixadas de lado, e os acordos surgem sem
conflitos.
Cifras educacionais
Folha de S. Paulo
Brasil dá importância ao ensino público,
mas deficiências vão além de dinheiro
Há um debate antigo —e não raro contaminado
por exploração política— em torno das proporções do gasto público brasileiro em
educação ante os padrões internacionais. Dados recém-divulgados pela OCDE,
referentes aos países desenvolvidos e a parte dos emergentes, permitem desfazer
confusões.
Não resta dúvida de que o Brasil destina
parcela relevante de seus recursos ao ensino público, compatível com a média do
mundo rico. As despesas nos três níveis de governo aqui ficam em torno de 6% do
Produto Interno Bruto, variando conforme o critério utilizado.
O novo relatório da OCDE comprova o fato ao
fazer um comparativo dos aportes em educação em relação aos serviços totais do
Estado. Nesse caso, a taxa
brasileira é de 11%, pouco acima da média de 10% entre os membros da entidade.
Esse é um indicador do grau de prioridade
conferido à área —e nesse quesito estamos bem situados, ao menos se tomarmos a
experiência global como parâmetro.
Quando se avalia o gasto público por aluno,
porém, o Brasil fica muito atrás dos países ricos, porque, obviamente, dispõe
de uma renda per capita bem menor. Foram US$ 4.306 aqui em 2020, considerando
todos os níveis de ensino, ante US$ 11.560 na média da OCDE.
Daí não implica que possamos ou devamos
multiplicar já a despesa de modo a equipará-la à das nações desenvolvidas
—inclusive porque, nessa hipótese, caberia fazer o mesmo com saúde, segurança e
quase todos os demais serviços do Estado. Não haveria recursos.
Muito menos o país está fadado a esperar
pelo crescimento do PIB. Há muito a fazer para corrigir distorções na alocação
das verbas e elevar a qualidade do ensino.
Salta aos olhos a disparidade entre o gasto
por aluno na educação superior, de US$ 14.735 (semelhantes aos US$ 14.839 da
OCDE), e na básica, de US$ 3.583 (US$ 10.949 na OCDE), ou US$ 2.981 se
consideradas também instituições privadas que receberam verbas públicas.
Nota-se aí um peso exagerado das
universidades, resultado também da opção equivocada por um financiamento
integral do Estado que favorece estratos mais abonados.
É alarmante, sobretudo, que a despesa por
aluno no ensino médio tenha
mais que quadruplicado entre 2004 e 2018, segundo dados oficiais,
sem que indicadores relevantes do aprendizado tenham mostrado melhora
significativa. Revela-se, assim, que os problemas vão muito além das cifras.
Companheiro Vladimir e o tribunal da
história
O Estado de S. Paulo.
Tipos como Putin, Fidel e Lula acham que só podem ser julgados pela história. Por isso o petista despreza o TPI, que ousa querer julgar os crimes do tirano russo
O autocrata russo Vladimir Putin já cometeu
e continua a cometer inúmeros e pavorosos crimes de guerra em sua perversa
agressão à Ucrânia, razão pela qual tem contra si uma ordem de prisão expedida
pelo Tribunal Penal Internacional (TPI). Nada disso, contudo, parece
impressionar o presidente Lula da Silva, que prefere criticar o TPI a admitir
que o companheiro Vladimir é um delinquente.
Lula da Silva, que não perde o cacoete de
sindicalista e saliva por uma boa luta de classes, tem Putin em alta conta
porque o considera um símbolo da resistência aos Estados Unidos e ao Ocidente.
No bestiário lulopetista, Putin é hoje uma espécie de Fidel Castro das estepes.
Como se sabe, Lula considerava o Comandante cubano inimputável, mesmo que
cometesse as mais desumanas barbaridades. No antiamericanismo apalermado do
chefão petista, Fidel, Putin e quejandos não cometem crimes nem violam
direitos, apenas se defendem como podem da sanha imperialista dos ianques. Se
para isso esses heróis de Lula tiverem que prender e fuzilar dissidentes ou
invadir um país soberano e atacar áreas civis, então que seja. Como disse um
inspirado Fidel em 1953, “a história me absolverá”.
Putin, bem de acordo com o espírito
totalitário, também quer ser julgado pela história – e Lula, é claro, lhe dá
total apoio. Por isso, chegou a dizer, numa entrevista a um canal indiano, que
o russo poderia vir tranquilo ao Brasil para participar da reunião de cúpula do
G-20 em 2024, pois não seria preso. A detenção de Putin, disse o nosso
presidente, afetando indignação, seria um “desrespeito” à soberania brasileira.
Quem desrespeita a soberania brasileira é
Lula. A Constituição do País, fruto da vontade e do poder soberanos do povo
brasileiro, estabelece, no artigo 5.º, parágrafo 4.º, que “o Brasil se submete
à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado
adesão”. Essa adesão foi formalizada em 2002 e incluída na Constituição em
2004. Ou seja, Lula, em nome de seus megalomaníacos devaneios antiamericanos,
não se constrangeu em vandalizar um princípio constitucional brasileiro para
adular um criminoso de guerra.
E esse princípio ora agredido por Lula está
perfeitamente de acordo com o espírito constitucional de defesa dos direitos
humanos, para os quais o petista nunca deu muita bola. O estabelecimento do TPI
não só se prestou a responsabilizar governantes que violam direitos humanos
mesmo em situação de guerra, como deu aos réus a possibilidade de um julgamento
justo e isento, diferentemente do que tende a acontecer em tribunais ad hoc,
geralmente constituídos de vencedores para julgar vencidos.
Diante da repercussão obviamente negativa
de suas afirmações irresponsáveis, Lula tentou emendá-las – o que, conforme a
sabedoria popular, sempre piora o soneto. Dois dias depois, admitiu que, no
Brasil, quem manda prender ou soltar não é ele, mas a Justiça. Em seguida,
contudo, desandou a falar bobagens sobre a necessidade de reavaliação da adesão
do Brasil ao Estatuto de Roma, compromisso de fundação do TPI, por, segundo
ele, trazer “prejuízo” aos países emergentes. De que “prejuízo” Lula fala
quando se refere ao julgamento e à condenação de criminosos de guerra por um
tribunal internacional, não se sabe.
Para piorar, Lula acrescentou que “torce”
para que até a realização da cúpula do G-20 no Brasil, no ano que vem, a guerra
contra a Ucrânia já tenha acabado e, portanto, tudo já tenha voltado à
“normalidade” – sugerindo que o fim da guerra encerraria ou abrandaria as
acusações do TPI contra Putin. Por essa lógica insana, os crimes de guerra só
seriam considerados crimes enquanto houvesse guerra, o que é uma rematada
estupidez. Crimes de guerra, por definição, são imprescritíveis, e Putin
seguirá sendo acusado dos seus até seu julgamento, goste Lula ou não.
Mas é inútil procurar lógica ou coerência
num discurso cujo único propósito é antagonizar os Estados Unidos e fustigar o
Ocidente. Não se sabe o que o Brasil ganha com isso, mas sabe-se o que perde:
respeito.
Fatos ao gosto do freguês
O Estado de S. Paulo
Está em curso um movimento que, antes de
buscar aprimorar as instituições, se presta a apagar da História as evidências
do maior esquema de corrupção de que se tem notícia no País
Ao julgar “imprestáveis” todas as provas
obtidas a partir do acordo de leniência firmado pela Odebrecht no âmbito da
Operação Lava Jato, o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF),
parece ter dado o impulso que faltava para uma onda revisionista que já se
prenunciava desde o início do ano no País. Antes fosse um movimento voltado ao
aprimoramento das instituições e dos processos de combate à corrupção,
maculados pela atuação enviesada, para dizer o mínimo, de alguns membros do
Poder Judiciário e do Ministério Público Federal. Na superfície, até pode ser
isso. Mas, ao que tudo indica, trata-se antes de uma desabrida cruzada pela
reacomodação dos fatos, como se a sociedade brasileira fosse composta
integralmente por tolos ou indivíduos de memória curta.
Menos de 48 horas após a posse do
presidente Lula da Silva, já estava claro que os acordos de leniência assinados
por empreiteiras que ganharam muito dinheiro durante gestões petistas por meio
de contratos eivados de vícios haviam entrado na alça de mira do novo governo e
do Tribunal de Contas da União (TCU). Basta lembrar que o ministro Rui Costa,
enquanto ainda acomodava seus pertences no gabinete da Casa Civil, defendera a
contratação dessas empresas para “acelerar” obras públicas “sem depender do
Orçamento”, sugerindo que as multas bilionárias decorrentes daqueles acordos
poderiam ser substituídas por prestação de serviços. Por sua vez, o presidente
do TCU, ministro Bruno Dantas, tornou-se um dos principais articuladores dessa
“solução”, chamemos assim, para as obras paradas Brasil afora.
Nove meses se passaram e, pouquíssimos dias
após o despacho de Dias Toffoli, por si só problemático por envolver o STF com
uma névoa de parcialidade que se moveria de acordo com os ventos da política,
foi a vez do subprocurador-geral do Ministério Público junto ao TCU, Lucas
Furtado, pedir à Corte de Contas que sejam extintas as penalidades impostas às
empreiteiras envolvidas em casos de corrupção. Considerando-se que provas
obtidas por meios considerados ilegais não podem, evidentemente, servir para
condenar pessoas físicas ou jurídicas, estar-se-ia diante de procedimento
corriqueiro, não fosse o tom político do pedido do representante do parquet. À moda de Dias Toffoli, o
pedido de anulação das sanções formulado por Lucas Furtado indica que há mais
em jogo do que o saneamento dos erros processuais cometidos pelas autoridades
na celebração dos acordos de leniência.
Segundo Lucas Furtado, a Lava Jato “acabou
com a indústria da construção civil pesada”, além de ter instalado “um clima de
terra arrasada” no Brasil. Nesse sentido, para o subprocurador-geral,
reabilitar as empreiteiras que, por confissão de seus próprios representantes
legais, ganharam rios de dinheiro pagando propina a agentes públicos, seria
reparar um “erro histórico”. O subprocurador-geral junto ao TCU vai além: a
Corte de Contas deveria, ainda, “calcular os danos causados ao erário pela Lava
Jato e cobrar dos agentes responsáveis o débito acarretado à União”. Nada
menos. Hipérboles podem funcionar muito bem em cima de palanques. Como membros
do Poder Judiciário e do Ministério Público não disputam eleições, nem muito
menos devem se ocupar de questões políticas no desempenho de suas atribuições
constitucionais, suas manifestações públicas deveriam estar circunscritas à
técnica da fundamentação jurídica.
Se o subprocurador-geral junto ao TCU
entende que é o caso de reabilitar as empreiteiras consideradas inidôneas com
base em provas anuladas pela Justiça, tornando-as aptas a contratar com a
administração pública novamente, que defenda a posição do parquet sem aviltar a
inteligência ou fazer pouco-caso da memória de muitos brasileiros. E que a
Corte de Contas, ao se debruçar sobre o pedido, inclusive sobre a anulação das
multas, não se preste a fingir que os fatos não são fatos, isto é, que o
envolvimento de um punhado de empreiteiras com o maior esquema de corrupção de
que se tem notícia no País simplesmente não existiu.
Depois de soja e milho, o algodão
O Estado de S. Paulo
Brasil se beneficia da rixa entre EUA e
China e agora precisa consolidar liderança nas commodities
O Brasil está prestes a ultrapassar os
Estados Unidos e liderar o ranking mundial dos exportadores de algodão. As
estatísticas de previsão de embarque da safra 2023-2024 dos dois países estão
praticamente empatadas, e os dados dos EUA devem ser revistos para baixo em
consequência do El Niño, que atinge o Texas, maior região produtora americana,
com calor extremo e seca.
Grandes fornecedores mundiais já preveem o
avanço brasileiro nas vendas globais neste ano e nos próximos, como revelou
reportagem da agência internacional Bloomberg reproduzida pelo Estadão. É mais uma notícia a
ilustrar as mudanças na correlação de forças em um mundo em plena
transformação. Os efeitos climáticos podem, de fato, estar acelerando o
redirecionamento de curso, mas não são o único – talvez nem o principal –
motivo.
O confronto comercial travado desde 2018
entre EUA e China, as duas maiores potências econômicas da atualidade,
consolidou um rearranjo no comércio de commodities. O Brasil tem se beneficiado
da guerra dos gigantes, elevando suas exportações de commodities para os dois
mercados.
O algodão é um dos produtos agrícolas que
vêm tirando mais vantagens. O aumento das vendas para a China e a safra recorde
de 2018-2019 fizeram, de imediato, o Brasil passar da quarta para a segunda
colocação no ranking exportador, enquanto os exportadores norte-americanos
tiveram de correr atrás de novos mercados. Agora, com os prejuízos impostos à
produção nos Estados Unidos, uma nova escalada das vendas brasileiras se
avizinha.
Uma inversão e tanto num cenário que, há
apenas duas décadas, levou o Brasil a recorrer à Organização Mundial do
Comércio (OMC) para conter o rolo compressor da política de subsídios adotada
pelos Estados Unidos que esmagava os concorrentes. A maior contenda entre
Brasil e EUA na OMC ficou conhecida como a “Guerra do Algodão” e se estendeu
por mais de dez anos. O excesso de subsídios americanos foi considerado ilegal
e o governo americano teve de indenizar o Brasil.
É importante revisitar os fatos recentes
num momento em que a balança pesa favoravelmente para o Brasil no comércio
internacional. Os efeitos laterais – benéficos para as exportações brasileiras
– não devem se estender por longo prazo. Tampouco a produção brasileira está
livre dos efeitos nefastos das reviravoltas climáticas que afetam o mundo todo.
O País, que há dez anos lidera o comércio
de soja, este ano puxa o ranking mundial nas exportações de milho e caminha
para a mesma posição em relação ao algodão. Para firmar-se na liderança é
preciso mais do que contingências externas. Com investimento pesado em pesquisa
e desenvolvimento tecnológico, o setor do agronegócio tem feito a sua parte. O
Plano Safra 2023-2024, de R$ 364 bilhões, embora abaixo dos R$ 400 bilhões
esperados pelo setor, também é satisfatório.
O principal obstáculo a ser removido continua a ser a burocracia governamental, como forma de agilizar investimentos, com incentivos na medida certa. E a meta a ser perseguida é uma agricultura com o menor impacto ambiental e social possível.
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