O Estado de S. Paulo
Enquanto o Brasil tenta usar a sorte e não atravessar o samba e a Argentina continua seu tango de azar e má escolha, ler é o melhor remédio
A natureza concede ao ano a primavera como
tempo de reflorescimento. Gesto simbólico do calendário das estações, recupera
a beleza das árvores sem pedir nossa atenção. Ainda assim, obtém o direito de
ser lembrada. Autores e editoras fornecem livros. Fato que, infelizmente, não
impede que a língua seja colocada grosseiramente em lugar que não lhe é
adequado.
Enquanto o Brasil tenta usar a sorte e não atravessar o samba e a Argentina continua seu tango de azar e má escolha, ler é o melhor remédio. Jonh Bunyan, em O Peregrino, ajuda a reflexão: não tenhas receio, passe tua vida pelo crivo, não se adule nem perca o siso. Saiba bem, sombras e falhas, em todos melhores atos, linhas tortas há também. Mire o alto, vida sossegada ao cristão não compete, resolvido um perigo, outro logo o acomete.
Não há ponto fixo a agarrar com segurança
fora da realidade. Que existe, impõe rotina, a uma causa segue um efeito. Pela
dinâmica das coisas, melhor seguir leis estáveis e apostar menos na facilidade
do interesse, loteria da probabilidade. E não enlouquecer com defeitos. Às
vezes, o alicerce da pessoa é seu defeito e não é razoável pedir a ninguém que
se cure de si mesmo. Relaxe na boa companhia das letras.
Hemingway, no conto Um País Estranho,
sugere que ninguém deve querer possuir o que não pode perder. Sabedoria é forma
de ajustar a dor à máxima existencialista anticolonial – não importa o que
fizeram de nós, mas o que fazemos do que fizeram de nós – do prefácio de Sartre
a Os Condenados da Terra, do médico da Martinica Frantz Fanon.
Sentimentos não digitais, não corporativos,
liberdade para desejar, espaço para se manifestar. Destinos provisórios,
bobagens permanentes, incompreensões predominam nas relações humanas. A visão
negativa do adulto sobre a angústia dos jovens, somada à falta de recompensa
afetiva – um mínimo elogio por qualquer sucesso que tenham –, os faz as
principais vítimas do ampliado conceito de alienação parental e sociopatia
atual. Críticas baseadas em afetos lânguidos, comodistas e opressivos não são
fervores vigorosos ditados pelo coração.
Jovens que se fundiram a computador e
celular, desaparecendo como sujeitos, preenchem passivamente formulários de
admissão, conduzidos por teclas e cliques cuidadosamente organizados para
viciar dedos na mesma direção. Tratados como água refratada, perdem a direção,
afundam, ultrapassam os 30 metros de profundidade do mar de suas dúvidas, onde
não é mais possível perceber ou distinguir sons da superfície. No silêncio
fechado dos seus quartos, vulneráveis nas ruas-guetos, cortando os galhos em
que estão sentados, vivem a complexidade secreta da solidão absoluta.
De outro lado, os que trabalham com prazer
e perseverança, vistos como servis ou doentes, cobaias de síndromes depressivas
da moda, tirando do trabalho a elevação, só visto como enfado, escravidão. O
trabalho é bicho-papão se sua disciplina não está baseada em modelo de vida
fundado na racionalidade econômica. Uma boa leitura de Domenico De Masi, em O
Futuro Chegou, mostra que sociedades desorientadas por empresas mal geridas são
deprimentes, levando a mal afazeres, dando significado torpe a deveres. O
horizonte do desamor opõe trabalho a presença e para a labuta e a ausência não
vê estímulo ou recompensa.
Nunca despreze o que Deus pôs no seu
caminho, diz o Ricardo III, de Shakespeare. Fuja da psicologia maníaca que
desmoraliza as angústias fingindo elogiar o equilíbrio e a sensatez. Se és
incompreendido, perdido em ideias próprias, assine uma entrega na floricultura,
corra para casa, receba flores em vida, doadas por você.
Todos podem ser um pouco vaidosos. Existem
povos que não suportam a miséria, a falsa modéstia. Mas humanos não devem ser
exageradamente cobiçosos. Pessoa que se acha o centro do mundo e cuja crença
não está depositada em sensibilidade ou nos fundamentos da espiritualidade.
José, vendido como escravo, virou governador de Faraó, aprendeu com os egípcios
a entender a alma da família de Jacó e pôs os irmãos à prova antes de
perdoá-los. Thomas Mann escreve como ninguém a saga de José e Seus Irmãos, que
serve como luva para enfrentar a vida sem agravála por desinformação, tristeza
ou mágoa.
Águas tranquilas ou saltitantes são águas
da vida. Mas, se o levante linguístico que atormentadores do diálogo estão
impondo à convivência humana continuar, sei não! Em Nicodemus, um dos
Evangelhos Apócrifos traduzido do grego na monumental Bíblia de Frederico
Lourenço, encontramos um bom princípio para apurar a verdade. Se as pessoas
falarem nos mesmos termos, “da boca de dois ou três confirmarei toda a
palavra”. Dê tempo ao tempo e, se até a próxima primavera as bobagens
vocabulares atuais durarem, aí, sim, é que estamos perdidos.
Preconceito às vezes não precisa ser nem
criticado. Mau juízo é esplendor de tolo, não é dom de Deus. Balanceie seu
perfil neurológico, amplie a tolerância a bobos, evite o preconceito de não ter
preconceito. Nenhum profeta é bem recebido em sua pátria. José, o carpinteiro,
mudou-se para o Egito um ano inteiro, até passar a inveja de Herodes.
*Sociólogo
Nenhum comentário:
Postar um comentário