35 anos de Constituição e democracia
O Globo
Carta que garantiu o período democrático mais
longevo no Brasil deverá continuar a iluminar o país
‘Não é a Constituição perfeita, mas será
útil, pioneira, desbravadora, será luz, ainda que de lamparina, na noite dos
desgraçados.’ A frase de Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional
Constituinte, no discurso proferido em 5 de outubro de 1988, dia da promulgação
da Constituição, não poderia ter sido mais realista ou mais profética. Nossa
lei fundamental, que agora completa 35 anos, serviu de alicerce ao período democrático
mais longo na História do país. Criada depois do fim da ditadura militar,
estabeleceu regras, mecanismos e instituições que têm garantido a democracia. E
resistiu com louvor a seu maior desafio, a tentativa de golpe de Estado que
culminou no ataque às sedes dos três Poderes em 8 de janeiro.
A ênfase do texto constitucional nos direitos
do cidadão, especialmente em saúde, educação e
na área social, sustentou uma transformação. Ao longo de três décadas e meia, a
expectativa de vida saltou de 65 para 73,6 anos, mais rápido que a média
mundial. Em 1988, um quinto da população acima de 15 anos era analfabeta, e 5
milhões com menos de 14 estavam fora da escola. Hoje o analfabetismo está em
5,6%, e os sem escola não chegam a 250 mil. Há muito a fazer ainda no campo
social, mas o avanço é inegável.
A principal conquista foi a consolidação da
democracia expressa nos direitos fundamentais: igualdade perante a lei, voto
secreto e universal, liberdade de expressão, associação e participação
política, além de todas as demais garantias gravadas em cláusulas pétreas.
A Constituição foi elaborada num momento ímpar, por um grupo que incluía notáveis como Affonso Arinos, Delfim Netto, Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes, Jarbas Passarinho, José Serra, Luiz Inácio Lula da Silva, Mário Covas, Nelson Jobim, Nélson Carneiro, Roberto Campos, Roberto Freire ou o próprio Ulysses. O principal desafio era erguer um arcabouço institucional duradouro depois da ditadura. Nisso, cada novo aniversário da Carta é prova de seu êxito.
A qualidade dos constituintes, porém, não
impediu que cometessem erros. Um dos principais foi o excesso de minúcias,
origem do engessamento da gestão pública. A Carta trata de toda sorte de tema:
sistemas econômico, tributário, previdenciário, educação, saúde, meio ambiente,
cultura, comunidades indígenas,
família, criança, adolescente, idoso etc. Com quase 65 mil palavras ao ser
promulgada, é a terceira Constituição mais longa do mundo. Muitas vezes os
constituintes não se preocuparam com o custo financeiro dos direitos criados,
gerando uma conta que a sociedade pena para pagar.
Equívoco no Minha Casa, Minha Vida contribui
para deteriorar vida urbana
O Globo
Governo privilegia construção em áreas periféricas
em vez da revitalização das regiões centrais
O programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV)
deveria se destinar a suprir o déficit habitacional brasileiro — cerca de 5,8
milhões de residências —, concentrando o foco no subsídio à população de baixa
renda, sobretudo a que vive em áreas de risco, como encostas ou margens de
rios. Tal objetivo está distante.
O primeiro motivo é a ambiguidade com que o
governo tem tratado o público-alvo. No relançamento do programa, em fevereiro,
o discurso falava em consertar as deficiências, priorizar os mais pobres e dar
ênfase a áreas centrais e à reforma de imóveis antigos. Não é o que tem acontecido.
O governo estendeu a faixa com direito a
maior subsídio, ampliando a renda familiar para R$ 2.640. As demais faixas
passaram a atender famílias com renda de até R$ 4.400 e até R$ 8 mil —
patamares que as colocam na classe média e desviam o foco do programa. Não
bastasse isso, em junho o presidente Luiz Inácio Lula da
Silva prometeu aumentar o limite de renda de R$ 8 mil para R$ 12 mil,
financiando imóveis que poderiam chegar a R$ 500 mil. Obviamente a medida sem
cabimento traria ainda mais distorção — e felizmente foi esquecida.
O segundo motivo é o jogo de pressão em torno
do uso dos recursos do FGTS, cobiçados pelas construtoras que dependem de
projetos do MCMV. De modo acertado, o governo Jair Bolsonaro incluiu
na política habitacional o subsídio à compra de imóveis usados. Trata-se de
incentivo à reforma de edifícios deteriorados nas regiões centrais, onde a
infraestrutura urbana está pronta. Melhor isso que criar mais bairros na
periferia, submetendo a população a transporte mais caro, mais insegurança e
condições de vida piores. O Censo contou 11,4 milhões de casas e apartamentos
vazios, boa parte em regiões centrais esvaziadas — quase o dobro do déficit
habitacional. Natural que seja prioridade reformá-los.
Acertadamente, o governo Lula elevou de 30% para 70% o valor do FGTS destinado ao subsídio de imóveis usados. A medida incomodou as construtoras, pois comprar para reformar é menos lucrativo que erguer do zero em terrenos periféricos de baixo custo. Em 27 de setembro, o ministro das Cidades, Jader Filho, recebeu a visita do presidente da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), Renato Correia. Em 2 de outubro, o Diário Oficial publicou uma norma do ministério cortando de 70% para 50% o subsídio concedido a fundo perdido a quem compra imóvel usado pelo MCMV. O motivo alegado pelas construtoras para apoiar a mudança foi a preservação de empregos no setor.
Mesmo com atenuantes, déficit zero é difícil
de atingir
Valor Econômico
É da maior importância que o Congresso e o
Planalto deem seu aval às iniciativas da Fazenda para conter o déficit
Ainda que tenha se autoimposto uma missão
extremamente difícil, a equipe econômica está disposta a fazer o que for
possível para atingir a meta de déficit público zero em 2024, para a qual
precisará arrumar R$ 168 bilhões em receitas adicionais. Em entrevista ao
Valor, o secretário do Tesouro, Rogério Ceron, relatou vários motivos para manter
o objetivo, sem deixar de ser realista e considerar que o alvo pode não ser
atingido. “Uma coisa é o resultado efetivo, outra é a meta que você vai
buscar”, disse. Se não falta determinação à equipe do ministro Fernando Haddad,
o mesmo não pode ser dito em relação à ala política do governo e ao próprio
presidente Lula, que até agora não deu demonstração firme de que repetirá o
benéfico “fiscalismo” de seu primeiro mandato.
Para o secretário do Tesouro, a meta não
deverá mudar, até porque partir dessa premissa no início de um esforço fiscal
vigoroso seria condenar ao descrédito tanto a iniciativa quanto a meta. Ceron
afirmou que há boas condições de ao menos obter resultados bem melhores do que
os projetados pelo mercado, que não prevê déficit zero em nenhum dos anos do
governo Lula e estima o resultado do ano que vem em -0,75% do PIB, algo próximo
do 1% do PIB que a Fazenda mira para o resultado negativo de 2023. Em termos de
expectativas, seria a segunda melhor opção fora atingir as metas - ter
realizado todas as tentativas e obter o menor déficit possível. De novo, boas
intenções na Fazenda podem esbarrar nos cálculos políticos contrários do
Planalto.
Sem cortar despesas - que, ao contrário,
aumentarão - zerar o déficit é uma batalha morro acima. Mas há, entretanto,
expedientes que podem atenuar a difícil missão de Haddad. Manoel Pires,
economista e coordenador do Observatório Fiscal do FGV Ibre, indicou vários
deles, calculou seu impacto (Valor, 2 de outubro) e concluiu que, mesmo assim,
chegar à meta de déficit zero exigirá em qualquer hipótese significativo
esforço fiscal, entre R$ 66 bilhões e R$ 96 bilhões, dependendo do mix de
medidas de ajuste que tomará.
No orçamento de 2024 há receitas
superestimadas e despesas não incluídas, combinação que conspira contra o
cumprimento da meta. Nos cálculos de Pires, supõe-se que o governo obterá os R$
168 bilhões, dos quais na verdade R$ 125 bilhões ficarão em seus cofres - o
restante corresponde à repartição de receitas com Estados e municípios. Ficou
fora do Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) 24, por exemplo, uma
reestimativa realista dos gastos da Previdência, de R$ 24 bilhões, causados
tanto pelo reajuste real do salário mínimo, que impacta aposentadorias, auxílio
desemprego, LOAS etc., como, residualmente, pela investida para encolher uma
fila de 1,5 milhão de pessoas que aguardam o parecer do INSS para se aposentar.
A primeira providência legal que o governo pode
tomar sem infringir qualquer regra do novo regime é usar a banda que lhe é
permitida e atingir um déficit de 0,25% do PIB, ou R$ 29 bilhões. A segunda é
contar com o empoçamento de recursos não executados, da ordem de R$ 22 bilhões
(média histórica). Até agosto, o empoçamento atingiu R$ 27 bilhões. Utilizar as
duas opções abateria R$ 51 bilhões da meta.
Pelo novo regime fiscal, o descumprimento da
meta não acarreta punições automáticas aos administradores, embora obrigue a
redução do percentual de despesas em relação às receitas líquidas de 70% em um
exercício para 50% em outro. Mas, por outro lado, só não haverá sanções se o
governo realizar contingenciamento de gastos nas revisões bimestrais de
despesas e receitas quando for constatado que a meta corre riscos. O
contingenciamento só pode recair sobre as despesas discricionárias, orçadas em
R$ 211 bilhões.
Pires fez quatro cenários em que o
contingenciamento varia de zero a R$ 30 bilhões. No valor máximo, o aperto
ameaça paralisar setores da administração pública, pois reduziria essas
despesas a 1,4% do PIB, o mesmo montante observado durante a pandemia, quando
grande parte da máquina pública de fato foi paralisada. O represamento de R$ 20
bilhões em gastos os levaria a 1,5% do PIB, o segundo menor desde 2017. A única
hipótese em que as discricionárias ficariam próximas à média do período é a de
contingenciamento zero. Nesse caso, porém, o esforço fiscal deveria ser o
maior, de R$ 96 bilhões.
Há iniciativas do Congresso para ampliar
gastos e que podem ser incorporadas na votação do orçamento. Nele não há também
previsão para correção dos pagamentos do Bolsa Família, nem para a atualização
do Imposto de Renda prometida pelo governo. Sempre atento aos gastos, o
Congresso, avalia Pires, teria incentivos para aprovar as receitas de que o
governo necessita, pois, em caso contrário, as despesas no exercício seguinte,
e quase certamente as emendas feitas pelos parlamentares, teriam de encolher.
É da maior importância que o Congresso e o Planalto deem seu aval às iniciativas da Fazenda para conter o déficit, sem o qual elas não serão bem-sucedidas. Para que a economia possa deslanchar de forma sustentável é imperioso que as contas públicas estejam em ordem e os juros voltem a padrões civilizados. Só assim o país pode crescer mais e por mais tempo, o que mal tem feito desde a recessão de 2014.
De calças curtas
Folha de S. Paulo
Em meio a piora de humores, governo se vê
incapaz de elevar credibilidade fiscal
Já se sabia que era circunstancial o alívio
no clima econômico observado no país em meados deste ano. Agora que os humores
voltaram a piorar, o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se encontra em
posição de fragilidade devido aos maus resultados e perspectivas das contas do
Orçamento.
Cerca de três meses atrás, havia uma
confluência de notícias positivas —o Produto Interno Bruto crescera acima do
esperado, a inflação dava sinais de queda, avançava no Congresso a nova regra
fiscal e agências de risco faziam observações favoráveis ao país.
Havia certa calmaria no cenário internacional
e, mais importante, por aqui saíam de cena os piores
temores quanto às inclinações gastadoras e intervencionistas da
gestão petista. O alívio de então se refletiu nas cotações do dólar, que caíram
para pouco mais de R$ 4,70.
De lá para cá, no entanto, o governo Lula foi
incapaz de apresentar medidas que elevassem a credibilidade das finanças
públicas —e, em particular, da meta oficial de eliminar o déficit orçamentário
já no próximo ano.
Pelo contrário, o desempenho da arrecadação
de impostos, os resultados do Tesouro Nacional e a proposta de Orçamento para
2024 deram mais razões para o ceticismo.
A receita tributária não acompanhou o
desempenho surpreendente do PIB, e o déficit primário (que exclui gastos com
juros) de janeiro a agosto, de R$ 104,6 bilhões, é o maior
para um início de mandato desde o Plano Real.
O projeto de lei orçamentária levantou
questionamentos em série sobre o esperado déficit zero, que se baseia não
apenas em projetos em tramitação difícil no Congresso como em projeções que
parecem excessivamente otimistas.
As estimativas de analistas para o rombo
federal no próximo ano rondam os R$ 80 bilhões —o que seria um fracasso
retumbante já no primeiro ano do novo regime fiscal. Não por acaso, espera-se
crescimento contínuo da dívida pública como proporção do PIB.
É nessa situação que o país enfrenta um
cenário global que se tornou mais incerto, com temores de
juros mais altos nos Estados Unidos, encarecimento do petróleo e
desaceleração da economia da China. No termômetro cambial, a cotação do dólar
subiu a R$ 5,15.
Não se trata de dar importância demasiada a
oscilações do mercado financeiro. Fica evidente, porém, que a economia
brasileira estará mais vulnerável a períodos de adversidade enquanto o governo
Lula relutar no inevitável enfrentamento dos gastos públicos.
Dele dependem o controle da inflação, o
alcance do corte dos juros do Banco Central, o crescimento da economia e, por
extensão, a redução duradoura da pobreza.
O legado do papa
Folha de S. Paulo
Em disputa com conservadores, Francisco
defende bênção a casais homossexuais
Aos 86 anos, o argentino Jorge Mario
Bergoglio parece decidido a imprimir uma marca progressista a seu papado, iniciado há
dez anos sob o nome de Francisco.
O termo, claro, é relativo. A Igreja
Católica, maior denominação cristã do mundo com 1,36 bilhão de fiéis, não é
dada a revoluções —e nisso se encerra, deve-se dizer, parte do segredo de sua
longevidade e influência.
Entretanto as demandas do mundo moderno têm
acelerado os movimentos reformistas desde o grande divisor de águas que foi o
Concílio Vaticano 2º,
nos anos 1960.
Aquele encontro atualizou algumas práticas da
igreja e, fundamentalmente, lançou bases para uma pendular dinâmica de
rivalidade entre os ditos progressistas e os conservadores.
Francisco é um expoente da primeira ala,
tendo sucedido a um papa ultraconservador, o alemão Bento 16.
Acusado de populismo por detratores, que
resgatam sua origem no ambiente peronista argentino, ele busca abordar temas
sensíveis na área comportamental desde o início do pontificado.
Deu
declarações simpáticas a homossexuais, por exemplo, e envolveu-se em
2017 numa disputa aberta com cardeais tradicionalistas.
Liderados pelo americano Raymond Burke,
eles tornaram pública consulta interna ao papa acerca da comunhão a divorciados
que vivem novos relacionamentos, sugerida por Francisco. Ficaram sem resposta e
expuseram a fratura.
Agora, o mesmo Burke e outros quatro colegas
questionam bênçãos a casais homoafetivos, cada vez mais comuns na Europa.
Bergoglio deu o troco: não apenas defendeu a hipótese como fez o Vaticano
publicar suas respostas.
O papa mede palavras e deixa claro que não se
trata de apoiar o casamento gay,
inaceitável para a doutrina. Mas antecipa o tom dos debates daquele que deve
ser o principal veículo para o que pretende deixar à história, o Sínodo dos
Bispos, iniciado nesta quarta (4).
No encontro hospedado no Vaticano, pela
primeira vez mulheres poderão votar —54 em 365 eleitores. As temáticas incluem
permissão para que diáconos, a primeira etapa na carreira eclesiástica, sejam
do sexo feminino, questões relativas a grupos LGBTQIA+ e
ordenação de homens casados.
O palco, portanto, está dado para um novo, e talvez decisivo, embate público entre Francisco, um progressista que acompanha o ritmo lento de sua fé, e seus oponentes.
Os 35 anos da ‘Constituição Cidadã’
O Estado de S. Paulo
Há razões para celebrar a efeméride. Mas só
uma corajosa reflexão sobre as deficiências da Carta fará com que o texto siga
como o farol mais brilhante das liberdades democráticas
Completam-se hoje 35 anos de promulgação da
Constituição de 1988. Há razões de sobra para que esse marco histórico da
democracia brasileira seja celebrado, mas, especialmente, por ser esta a
Constituição, entre as sete que já vigoraram desde a Independência, a que
melhor reflete o justo anseio de uma sociedade livre e plural por participar
das escolhas políticas que, dia após dia ao longo de todo esse tempo, têm feito
do Brasil um país menos desigual e mais próspero.
Malgrado as suas muitas deficiências, já
tantas vezes apontadas por este jornal, inclusive durante a Assembleia Nacional
Constituinte, e as atribulações políticas e institucionais ao longo de sua
vigência, incluindo nada menos que a cassação de dois presidentes da República
por crimes de responsabilidade, o fato é que a Constituição de 1988 triunfou
sobre os seus inimigos – sejam os que tentaram sabotá-la no nascedouro, sejam
os que a ameaçaram como nunca nos últimos quatro anos –, ganhou os corações e
mentes dos brasileiros e permitiu ao País experimentar o mais longevo período
de normalidade democrática da história republicana.
Em respeito aos fatos, porém, é forçoso dizer
que, em meio ao restabelecimento de direitos e garantias fundamentais que foram
eliminados durante a ditadura militar (1964-1985), além da concepção de todo um
arranjo institucional para sustentar o Estado Democrático de Direito, a
Constituição é prolixa, disfuncional e por vezes incongruente ao longo de seus
250 artigos.
Compreende-se a sofreguidão com que os
constituintes originários decidiram alçar à Lei Maior uma série de temas que,
quando muito, deveriam se circunscrever à legislação ordinária. Mas essa
decisão custou caro ao País. Não são poucos os direitos que só existem no
papel; e não são poucos os deveres virtualmente impossíveis de serem cumpridos
– que o digam milhares de prefeitos Brasil afora.
Esses defeitos, omissões e excessos da
Constituição não raro têm dado azo a interpretações equivocadas, no melhor
cenário, e manipulações, no pior, que perpetuam privilégios incompatíveis não
só com os princípios que iluminaram a sua redação, mas com a própria ideia de
República. É espantoso o grau de desassombro com que a Constituição foi violada
ao longo desses 35 anos, ora de forma acintosa, ora por meios sub-reptícios,
independentemente do viés político-ideológico dos governos e legislaturas de
turno.
Entretanto, boa ou ruim, a Constituição é o
que é, e como tal deve ser respeitada por todos e protegida por aqueles a quem
a própria Lei Maior incumbe dessa nobilíssima missão: os onze ministros do
Supremo Tribunal Federal (STF).
Há poucos dias, o presidente do STF, ministro
Luís Roberto Barroso, ilustrou bem como o desrespeito contumaz à letra da
Constituição, como se sua validade fosse seletiva ou balizada por interesses
inconfessáveis, pode se enraizar no Estado e na sociedade a ponto de anestesiar
os cidadãos. Para inaugurar sua gestão à frente do Supremo, o ministro pautou o
julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347,
que trata do “estado de coisas inconstitucional” instalado nos presídios Brasil
afora. Pode-se (e deve-se) questionar a excentricidade da tese, mas não há como
negar que nada avilta tanto os direitos e garantias fundamentais de uma
Constituição dita “cidadã” do que as condições subumanas do sistema prisional
brasileiro. É uma questão fundamental a ser debatida com coragem e honestidade
intelectual por toda a sociedade.
Neste 35.º aniversário da carinhosamente
chamada “Constituição Cidadã”, é tempo para o País celebrar seus avanços
civilizatórios e, ao mesmo tempo, refletir sobre os não poucos desafios que
ainda persistem. É hora de a sociedade unir esforços para fortalecer as
instituições democráticas consagradas pela Carta Política da redemocratização e
promover as reformas necessárias para que a Constituição seja menos disfuncional
e cada vez mais forte. Só assim ela haverá de seguir como o farol mais
brilhante dos direitos e do sentido de justiça para todos os brasileiros por
muitos anos à frente.
Ocaso da indústria de transformação
O Estado de S. Paulo
Estudo da Fiesp mostra que é praticamente
intransponível o abismo da produtividade do setor. Reformas estruturais em vez
de promessas vagas sobre ‘neoindustrialização’ dariam alento
O retrato captado pelo estudo Investimento e
estoque de capital da indústria de transformação – 1996 a 2021, da Fiesp, exibe
um setor claudicante, incapaz de conter a depreciação de seu parque fabril. Com
base em dados estatísticos do IBGE, pela primeira vez foi calculado o volume de
investimentos necessários para recuperar a competitividade da indústria de
transformação: R$ 456 bilhões ao ano, por cerca de dez anos consecutivos, como
mostrou reportagem do Estadão. E isso apenas para voltar ao patamar de cinco
décadas atrás.
É desalentador verificar em detalhes como vem
definhando o segmento mais estratégico da indústria. Aquele que, por
transformar matérias-primas em bens de consumo e equipamentos, tem a
particularidade de difundir o crescimento por diversos outros setores. Em pouco
mais de duas décadas, a indústria de transformação, que respondia por 20,9% do
total dos investimentos industriais do País, minguou para 12,9% em 2021, último
dado disponível. E, pelos sinais que vêm sendo observados, não para de encolher.
São indícios largamente conhecidos os da
deterioração da produção industrial brasileira. Tanto que suscitaram, há pouco
mais de quatro meses, uma análise publicada neste jornal pelo presidente da
República, Lula da Silva, e seu vice, Geraldo Alckmin. No artigo
Neoindustrialização para o Brasil que queremos (25/5/23), ambos reconheceram
que o País está “perdendo a corrida da sofisticação produtiva” ao cair da 25.ª
para a 50.ª posição no ranking de complexidade da economia.
O mês era maio, e o artigo, acompanhado do
anúncio da elaboração de um plano para reativar a indústria, teve ampla
repercussão. Aos elogios pela iniciativa somaram-se críticas pela falta de
menção a pontos importantes, como produtividade, pesquisa e desenvolvimento e
qualificação de mão de obra. O fato é que o calendário avançou para outubro e
ainda não se tem qualquer informação concreta sobre a tal proposta de
neoindustrialização.
Ao mapear os baques que a indústria de
transformação vem enfrentando nas últimas décadas, o estudo da Fiesp não faz
referência a um plano específico que tenha o condão de restituir o papel de
condutor da economia ao segmento. Que isso sirva para dissuadir o governo da
adoção de soluções mágicas de curto prazo, como subvenções esdrúxulas, crédito
direcionado e protecionismo exacerbado – o velho cardápio do
subdesenvolvimento.
Em vez de defender incentivos governamentais,
como já se tornou tradicional, o documento da Fiesp cita uma medida bem mais
simples e objetiva: a necessidade de fazer avançar as reformas estruturais, em
especial a tributária, com a fixação da alíquota máxima de 25% para o Imposto
sobre Valor Agregado (IVA).
Esperada há pelo menos 30 anos, a reforma
tributária parecia tramitar a contento com a aprovação no plenário da Câmara,
apesar das inúmeras modificações no texto. Agora está emperrada no Senado. A
cada arranjo parlamentar, o que se vê é uma reforma mais imperfeita, mas que,
diante da barafunda tributária em vigor, com certeza ainda contribuirá para
reduzir o famigerado custo Brasil.
Esse deve ser o objetivo a perseguir, e não
medidas pontuais do tal “Estado indutor”, como defende Lula da Silva. Não há
incentivo a este ou aquele setor que garanta competitividade a longo prazo. E é
preciso investir muito para começar a notar algum avanço. Hoje, o que é
aplicado na indústria de transformação corresponde a parcos 2,6% do PIB.
Precisa chegar, ao menos, a 4,6%.
Além disso, tem de haver espalhamento da
aplicação de recursos em inovação e tecnologia na indústria de transformação.
Hoje, o setor de petróleo e biocombustíveis concentra um terço desse capital. É
necessário irradiar o investimento para mais setores da indústria, inclusive
para melhorar a renda do mercado de trabalho que, no ano passado, chegou ao
menor nível dos últimos dez anos.
O PIB de 2023 estaria comprometido sem o
avanço extraordinário do agronegócio, um setor que conta com política pública
como o Plano Safra, que se reverte em contínua modernização. O País carece
também de uma política industrial eficaz.
A saga das vacinas
O Estado de S. Paulo
O Prêmio Nobel de Medicina prestigia não só o
poder da ciência, mas da cooperação e perseverança
Com quase quatro anos de covid-19, o mundo
ainda cicatriza suas sequelas socioeconômicas. Mas, se a pandemia virou história,
devemos isso à epopeia das vacinas. Decisiva foi a tecnologia mRNA. Se há um
prêmio para cientistas digno de ser celebrado além dos círculos científicos, é
o Nobel de Medicina aos responsáveis por ela, Katalin Karikó e Drew Weissman.
No início, era incerto se e quando teríamos
um imunizante. A vacina contra o HIV da aids ainda elude os cientistas. A da
pólio tomou 20 anos. Em 2020, 17 anos após o coronavírus da Sars saltar de um
animal para os humanos, o financiamento das pesquisas antivirais se desidratara
e não havia vacinas. Previsões otimistas para uma contra a covid-19 falavam em
18 meses. Na metade desse tempo se criaram várias. Estima-se que no primeiro
ano salvaram 20 milhões de vidas.
O mRNA é uma molécula que entrega às células
códigos do DNA que orientam a produção de proteínas. Muitas doenças são
causadas por proteínas ou por sua ausência, e desde a descoberta do mRNA, em
1961, sonhava-se com mRNAs sintéticos instruindo células a fabricar proteínas
aptas a curá-las. O primeiro passo além do laboratório rumo à medicina foi dado
por Karikó e Weissman em 2005, ao descobrirem modificações químicas aptas a
inserir mRNAs artificiais em células sem ativar reações imunológicas hostis.
Assim, as células poderiam ser transformadas em usinas de remédios.
A aplicação em escala na vacina da covid-19
vingou num ecossistema que combina a capacidade do livre mercado de gerar
inovações com a do poder público de distribuí-las. A tecnologia não teria se
desenvolvido se investidores não tivessem bancado os riscos da pesquisa, e sua
aplicação nas vacinas (que têm baixa perspectiva de monetização) não teria sido
possível sem recursos públicos. Tampouco sem sorte. Se a vacina foi produzida
tão rápido, é porque cientistas já trabalhavam num protótipo de imunizante para
a família dos coronavírus. Há vacinas para 15 das 26 famílias virais, mas só
para uma delas há um protótipo. Desenvolver outros é crucial para reagir
agilmente a futuras pandemias.
Há esperança de outros tratamentos com mRNAs,
de cânceres a deficiências cardíacas ou cerebrais. Mas é incerto se e quando
serão efetivos. Podem ser só um sonho, como a pandemia foi um pesadelo. No seu
auge, ela viralizou mobilizações filantrópicas que aceleraram a conquista e
distribuição da vacina. Se os sonhos do mRNA podem se tornar realidade, isso
acontecerá tão rapidamente quanto maiores forem essas mobilizações. Mas, com o
tempo, elas tendem a se esvair sob as demandas do dia a dia.
A saga de Karikó e Weissman pode nos imunizar contra esse risco. Por décadas suas pesquisas foram menosprezadas entre seus pares nos campi. A insistência de Karikó em persuadi-los de sua importância lhe valeu a alcunha de “picareta do mRNA”. “Há 10 anos eu não conseguia nem ser reconhecida como professora, não tinha equipe, tinha sido rebaixada de posto.” O Nobel é, assim, um emblema da gratidão da humanidade aos cientistas, mas também do poder da perseverança.
Há 35 anos, o reencontro com a democracia
Correio Braziliense
Concretizava-se o fim do pesadelo de 21 anos
do regime mais obscuro da República. Um tempo marcado de massacres, prisões
arbitrárias, assassinatos pela tortura nos porões das forças militares e de
segurança pública
Hoje, a Constituição completa 35 anos da sua
promulgação. O então presidente da Câmara dos Deputados, Ulysses Guimarães, na
véspera de completar 72 anos, com os braços erguidos, segurava a nova Carta
Magna acima de sua cabeça e anunciou a Constituição Cidadã. O plenário estava
lotado de parlamentares, autoridades, convidados e familiares. As galerias foram
tomadas por brasileiros de todas as cores, idade e origem. Concretizava-se,
ali, o fim do pesadelo de 21 anos do regime mais obscuro da República. Um tempo
marcado de massacres, prisões arbitrárias, assassinatos pela tortura nos porões
das forças militares e de segurança pública.
O Brasil poderia, novamente, se colocar ao
lado das nações democráticas. Os direitos humanos, de expressão, de fazer
escolhas, de ir e vir e de tantos outros que nos diferenciam do mundo
irracional estavam ressuscitados. Começava um novo tempo, para saciar o anseio
popular por liberdade. O pacto político e social foi construído por
representantes dos mais diferentes segmentos da sociedade. A diversidade de
pensamento, ideologia, gênero, étnica, social, econômica e religiosa estava
contemplada na Carta Magna.
Os setores organizados da sociedade foram
empoderados. A Lei Maior criou conselhos com a prerrogativas para propor e
influenciar a construção de políticas públicas no campo da segurança alimentar,
da assistência social, da saúde, meio ambiente, da criança e do adolescente,
educação do trabalho e emprego, de negros, de mulheres e outros.A Carta Cidadã
inaugurou um tempo de participação popular na história do país. Rompeu com o
modelo amparado na verticalidade, em que as decisões eram adotadas de cima para
baixo, ignorando os anseios dos segmentos sociais. Estabeleceu ainda prazo para
o Executivo fazer justiça aos povos originários (indígenas) e tradicionais
(quilombolas), por meio da demarcação dos territórios que ocupavam.
A Constituição que reconhece a importância dos cidadãos, a contribuição de cada
um para o fortalecimento da nação, com perfil social, que assegura igualdade e
equidade, enfrenta adversários adeptos do autoritarismo, da exploração dos mais
fragilizados social e economicamente. Hoje, os conservadores que habitam o
parlamento, com o apoio de parcela da sociedade eivada de preconceitos
descabidos, trabalham em favor de retrocessos a fim de revigorar práticas dos
regimes de exceção.
Em pleno século 21, não cabe retorno ao passado. É tempo de caminhar para frente, com mais segurança, solidariedade, paz, respeito aos diferentes, educação de elevado nível, saúde, oportunidades iguais para todos. Perseguir nessa construção é manifestação real e sincera de patriotismo, a fim de tornar o Brasil um exemplo a ser respeitado e seguido por aqueles que ainda não conseguiram vencer as barreiras do primitivismo.
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