O Globo
A Constituição precisa ser real, e não peça
abstrata para quem vive nas periferias urbanas
Celebramos hoje os 35 anos da promulgação da
Constituição Federal de 1988. Uma oportunidade para a renovação dos
compromissos do Estado e da sociedade brasileira com a democracia. A Assembleia
Nacional Constituinte, convocada em 1987 como parte do processo de transição,
aprovou uma Carta capaz de espelhar a nação que buscava o amanhecer da
liberdade de um Brasil desenhado com todas as cores da aquarela.
Mesmo os segmentos políticos que apontaram
insuficiências na Constituinte travaram embates fortes e fizeram críticas
políticas a seus próprios limites, como no tema relacionado às Forças Armadas e
segurança pública, sem jamais comprometer seu processo. Ainda é ela a melhor
referência de abertura e transparência do Congresso e dos demais Poderes para com
a nação. Resgatá-la e valorizá-la é reforçar que o caminho da unidade entre os
democratas é irrenunciável.
Ainda assim, nossa Constituição, uma das mais avançadas do mundo, que tem como premissa a dignidade da pessoa humana e o Estado Democrático de Direito, já foi objeto de 131 emendas que demonstram nítida intenção reformadora dos constituintes derivados, mesmo antes da completa regulamentação e efetivação dos princípios nela consagrados.
A Carta Magna que entrou em vigor no Brasil,
carregada de um sentido de responsabilidade do Estado, obteve atenção diversa à
sua observância pelos governos, no período destes 35 anos, como ajustes fiscais
que aprofundaram a desigualdade econômica e social. Registrar isso é destacar
que a Constituição pode ser interpretada, mas não moldada pela autoridade de
cada momento, por serem os governantes eleitos que juram respeitá-la, não o
contrário.
A democracia deve cumprir a promessa de
superação da desigualdade, da segregação, da dependência e do racismo
estrutural que definem historicamente o Brasil. A Constituição precisa ser
real, e não peça abstrata para quem vive nas periferias urbanas, para as
mulheres em busca da equidade e respeito, para jovens negros vítimas de
violência, para assegurar a existência dos povos indígenas, a cidadania aos
LGBTQIA+ e a todos aqueles e aquelas que tantas vezes são tratados como
cidadãos sem direitos.
É hora de construir uma cultura política
democrática, em que exercer a cidadania vá além do voto. Estar informado,
participar diretamente de decisões de interesse público, avaliar políticas
públicas, acompanhar demandas, ser parte de comunidades e organizações, ser
agente de ideias.
Num contexto de avanço de autoritarismo no
mundo e de atentados à democracia, tais como os ocorridos no 8 de Janeiro, é
preciso retomar o sentido originário da nossa Constituição, no mesmo espírito
com que Ulysses Guimarães fez seu discurso na sessão de promulgação:
— Divergir, sim. Descumprir, jamais.
Afrontá-la, nunca.
Um comentário:
Pois é.
Postar um comentário