quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Paulo Fábio Dantas Neto* - Faixas de sombra e luz sobre a Gaza nossa de cada dia

Alguém que saiba pouco sobre o longevo conflito do Oriente Médio saberá algo mais lendo uma matéria informativa publicada pela BBC News Brasil, no dia 8 deste mês (8 mapas que ajudam a entender conflito entre Israel e palestinos). Lerá, ao menos, aquilo que é provisoriamente necessário para não ser tragado pela força imediata e horizontal da correlata guerra publicitária e ideologicamente orientada que se trava, em redes sociais, sobre uma guerra real escalada pelo atentado terrorista do Hamas contra Israel, no último sábado. A matéria permite notar também, 76 anos após a Assembleia Geral da ONU autorizar, por ampla maioria, em novembro de 1947, a criação de dois estados independentes, um árabe, outro judeu, em territórios demarcados no âmbito da então Palestina, uma desvantagem histórica da atitude prudencial em política. A predominância de lógica oposta, no longo tempo de duração do conflito, pode ser vista como uma razão para que não acontecesse o que a própria política concebeu como paradigma, através da diplomacia: a convivência pacífica de povos distintos que secularmente lutavam – em paralelo ou em conflito mútuo - pelo direito a um território. 

A diplomacia brasileira, como sabemos, esteve no centro desse achado civilizatório. Ele deixou um grande legado que precisa ser digerido, antropofagicamente, para ser atualizado, no Brasil e fora dele, conservando a racionalidade, a moderação e o sentimento de alteridade que o inspiraram. A obra conjunta da política e da diplomacia foi propor uma solução pacífica de um problema antigo de e entre dois povos contrapostos por interesses e também por contingências. Importa não perder de vista essa dupla dimensão para compreender que o conflito mútuo foi criação histórica da política de guerra e não um imperativo natural de um antagonismo “cultural”, ou mesmo religioso. 

O estado de Israel foi criado em 1948, no meio do deserto, dentro daquela proposição de convivência. Apesar de antecedentes conflitivos, de ter havido uma guerra de independência contra a Grã-Bretanha e da presença, entre os judeus do novo Estado, de fundamentalismos que se expressavam não só por palavras, mas também por gestos supremacistas, nada de intrinsecamente belicoso havia naquele gesto de construção. Havia dinheiro e vontade política para realizar um sonho secular e livrar o povo judeu de novas perseguições e tragédias, como o Holocausto. O sentido positivo desse marco reforçou-se na escolha da democracia como regime de organização política, ainda que dentro de limites que não permitiram separação satisfatória entre religião e política. O metabolismo político era uma usina de anticorpos contra os riscos (reais) de perversão da solução diplomática por um nacionalismo guerreiro.

O estado palestino independente não foi criado e as razões históricas disso estão longe de se resumirem a um suposto veto do sionismo, acatado por poderes políticos. Embora a não viabilização interessasse de fato a Israel, nela parece ter tido influência mais decisiva a oposição de importantes países árabes, que não apenas votaram contra a resolução da ONU, como embaraçaram, na sequência, a concertação política que seria necessária para tirar a proposta do papel entre tantas e distintas vontades políticas presentes no mundo árabe. A razão explícita da oposição era defender a integridade do território palestino que a solução da ONU teria violentado. Mas política e diplomacia existem justamente para que argumentos assim, esgrimidos por contendores, não exponham o mundo a guerras de fim de mundo. Estados árabes contestaram essa razão política com argumentos que não incluíam razões de estado que, no entanto, cobravam pedágio dos seus estadistas. Incomodava a essa lógica o espectro da autonomia política de um povo que, sendo parte das populações desses países, poderia, se organizado em estado, reivindicar direitos para seus iguais em tais países e desestabilizar seus regimes - em geral, ditaduras. A OLP foi seguimento da saga de um povo que, além de seguir sem teto próprio, sofre com tiranias políticas. Não à toa, além do inimigo judeu e seus aliados, colecionou adversários entre os árabes.

De tudo o que ocorreu na sequência das décadas – belicismo, fundamentalismo e racismo penetrando aos poucos nas estruturas jovens do estado de Israel e minando sua democracia política, bem como o terrorismo que se espalhou como praga no mundo árabe onde, em geral, estava ausente a democracia - nada pode ser posto na conta do achado histórico da aliança entre política e diplomacia, mas no da subordinação de ambas a outras lógicas que se tornaram hegemônicas em diversos países, alguns de muito peso, para bem além do Oriente Médio. Fundamentalismos foram estimulados e manipulados por elites guardiânicas e oligarquias endógenas, bem como apoiados e armados por agentes da guerra fria. 

No contexto da região nunca faltaram, como não faltam hoje, moderados e extremistas nos dois lados do conflito básico entre judeus e árabes, assim como nas polarizações em torno dos palestinos. Por um lado, atitudes de líderes e partidos moderados (democratas ou não) na política e na guerra, como Golda Meir - cuja firmeza no contexto de guerra com países árabes não impedia seu  esforço político para uma convivência pacifica entre judeus e árabes em Israel  -, a dupla Rabin-Arafat líder de um processo de entendimento que desaguou nos acordos de paz de Oslo e mesmo o realismo pragmático de Anwar Sadat e Menachem Begin, o desse último causando cisma no Likud (que agregou, até dado momento, a direita israelense), dissidência da qual é filhote disruptivo o recente figurino de Netanyahu e de seus ministros fundamentalistas. Em simétrica contestação das razões da política prudencial sempre esteve, ao lado de antigos e novos extremistas radicais da direita israelense, o culto ao terrorismo que se radicalizou no Hamas, no Hezbollah e outros grupos dessa mesma extração miliciana e que procura, obstinadamente, desmoralizar a política e os atores que nela buscam solução para os conflitos. 

Aqui cabe uma digressão talvez impertinente, mas irresistível, para lembrar das Brigadas Vermelhas, organização maoísta que, em 1978, sequestrou e assassinou o primeiro-ministro italiano Aldo Moro para impedir um acordo histórico entre a Democracia Cristã e o PCI, vitualmente destinado – caso consumado - a impor imensa derrota política à então guerra fria entre capitalismo e comunismo. Na época houve analistas que tentavam dar uma explicação geopolítica "racional" para o terrorismo. Os próprios brigadistas tratavam o PCI e os partidos da esquerda europeia em geral de modo semelhante ao modo pelo qual o Hamas trata hoje a rival Fatah: como traidora da sua causa. As diferenças não estão só nas duas causas, a revolução proletária e a nacional palestina. Também é enorme a distinção entre os contextos, os perfis sociais dos dois grupos e entre as escalas dos morticínios que provocaram.  Mas a memória foi acionada na direção das Brigadas porque as afinidades de gramática política não querem calar. A viagem no tempo e no espaço serve, quando nada, para demonstrar, pela enésima vez, que terrorismo não é produto cultural de sociedades “degeneradas”, mas da imoderação, uma degeneração da política que ronda o cotidiano de toda sociedade moderna, não só como fato externo. 

Voltemos ao Oriente Médio. A digressão não pretendeu nivelar a grandeza política do compromisso histórico italiano ao escopo político mais limitado do acordo que vem sendo tentado, entre Israel e Arábia Saudita, sob os auspícios dos EUA e a oposição do Irã. Pretendeu mostrar, primeiro, que a gramática da antipolítica é inclemente perante qualquer movimento de paz, ainda que precário. Segundo, que uma iniciativa que ignora, quase tanto quanto Netanyahu (embora se abstenha de chancela aos seus métodos), o destino dos palestinos, enfraquece sobremaneira a liderança moderada da Autoridade Palestina e a expõe, na Cisjordânia, a derrotas políticas para o Hamas, potencialmente tão funestas quanto a que sofreu na faixa de Gaza.  Se a gramática terrorista arrisca tudo e se isola quando mata um político como Aldo Moro, pode ter a veleidade de obter apoio externo para atos terroristas contra governos negativos como o de Netanyahu ou contra políticas de pacificação de limitado escopo.

Um dos traços mais miseráveis do atual cenário daquela região é justamente a virtual desmoralização de líderes e partidos moderados, que aparece como risco iminente a cada êxito temporário dos extremismos. É o que se dá neste exato momento, prometendo se estender por semanas ou meses. As chances de apelo imediato a antigas correntes moderadas do trabalhismo israelense, à própria Fatah, às instituições democráticas de Israel ou à Autoridade Palestina parecem estar entre brumas, sob as quais pode se esconder, na melhor das hipóteses, lenta recuperação e, na mais provável (ao menos no caso palestino), desvanecimento. Além dos preços humanos da operação em si, nada a celebrar pode resultar diretamente da eventual destruição militar do Hamas, por mais que ela seja vista, com razão, como necessária no presente. Mesmo a antevisão do fracasso político de Netanyahu em Israel é alívio que se faz acompanhar de incerteza quanto ao que o sucederá, com a antipolítica não deixando se ser, como em toda parte onde a guerra se instala, uma candidata.

Problemas religiosos, culturais, étnicos, raciais existem e são fontes de guerras e outras violências. Instituições democráticas e atitude política moderada existem, inclusive, para buscar soluções pacíficas para eles. Ditaduras e extremismos existem para perenizar, agravar e manipular essas questões e métodos, em favor de fins políticos e materiais imediatos, quase sempre dissimulados como ideologias.

A aliança trágica, no século passado, entre guerra fria e nacionalismos encaixotou o vislumbre da ONU e deixou, como fantasma insepulto, um rastro macabro, que volta hoje a nos assombrar. Não há desafio mais importante e atual do que impedir tal aliança entre guerra e antipolítica de se restabelecer como ordem mundial. Para paz não ser palavra vã, a tradução do desafio em objetivo positivo é a constituição de outra e mesma aliança (outra porque nova nos termos do mundo atual; mesma porque reitera o sentido prudencial da política na lida com experiências trágicas) que reate laços entre política e diplomacia para dissuadir lógicas soberanistas do desejo primário de moldar as relações internacionais. 

Se há (ou se pode haver), alternativa à ONU como centro de operações dessa missão civilizatória, essa alternativa é, até aqui, invisível. Até porque a clarividência contemporânea e a sabedoria prática que a resolução de 1947 continua a irradiar é cabal evidência da estupidez de "realistas" que alardeiam a impotência, ou anacronia, da agência. Em vez de chorar de olhos fechados para não desmoronar, existencialmente, diante das cenas infames, as sociedades democráticas do mundo (aqui não há restrição do campo de ação política a certo grupo de atores, mas reconhecimento do papel crucial que cabe às democracias) precisam abrir bem os olhos para confiar governos a quem possa praticar o gesto cosmopolita de tirar do chão e elevar ao horizonte comum a generosa e atualíssima mensagem de 1947. 

Nada disso é promessa, sequer caminho. Tudo são desejos, valores, vislumbres, sem os quais morremos. No curto prazo o que temos é, de fato, o pior dos mundos. Nele é inútil procurar razões explicativas para os fatos, porque se razão há nos atos que os geram é razão incipiente, serva dos piores instintos.  Nele cabe, aos políticos e diplomatas práticos, encontrar modos de reduzir perdas e danos humanos. Nele resta, a sociedades e indivíduos civilizados, manifestar repúdio aos senhores e também aos profetas da guerra, assim como solidariedade incondicional a todas as suas vítimas, sem ressalvas ou exceções.  

Apesar da impossibilidade de se chegar a soluções perenes de e no curto prazo (pois não existem), a razão humana que ilumina o papel civilizador da política - e da diplomacia, sua aliada contra a guerra - pode e deve estender seu olhar e poderes ao médio prazo, terreno, por excelência, da mediação. Se vale aqui o alerta de Keynes de que a longo prazo todos estaremos mortos, vale também pensar que, sem um médio prazo, poderemos morrer no curto e não só em Gaza.

É sobre o médio prazo que podem incidir feixes e faixas de luzes potentes para encarar, com dignidade, e reformar, com convicção e esperança, a Gaza nossa de cada dia. Um atributo da boa razão política - que a faz melhor que razões incipientes - é distinguir o impossível do que é possível a um poder restrito, por definição, à realidade. Discernimento imprescindível para renunciar, sem remorsos, à luta inglória no primeiro campo e para vencer qualquer sentimento de impotência no seu agir sobre o segundo.

*Cientista Político e professor da Ufba.

 

Um comentário:

Daniel disse...

Excelente! Ótimo histórico sobre as últimas décadas, e todo o contexto em que se sucedem crimes no Oriente Médio, praticados por todos os envolvidos na luta por territórios na região há décadas, que já resultaram em tantas mortes violentas e todas as vinganças que os envolvidos prometem e cumprem.