quarta-feira, 11 de outubro de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Hamas se revela sem nuance como grupo terrorista

O Globo

Quanto mais os fatos vêm à tona, mais fica claro que essa é a melhor definição para o movimento armado

Cenas chocantes como as testemunhadas em Israel no fim de semana são capazes de deixar qualquer ser humano sem palavras. Filhos mortos diante dos pais, centenas de jovens fuzilados a esmo numa festa, idosos mantidos sob a mira de metralhadoras ou assassinados, indícios de estupros, tortura psicológica, sequestros de adultos e crianças ainda em curso — uma barbárie sem fim. Uma barbárie que ninguém gosta de descrever.

Nenhuma causa, por mais nobre, como a soberania palestina, serve de argumento para justificar a agressão bárbara que tenha como alvo inocentes, de qualquer idade, nacionalidade, etnia, religião, orientação sexual ou política. A palavra terrorismo foi cunhada no século XIX para definir um movimento na Rússia czarista que não se furtava a matar inocentes para amedrontar a população. É ela que melhor descreve os atentados cometidos contra civis em nome de pretextos políticos, ideológicos ou religiosos. O terrorismo costuma ser praticado por seitas escatológicas, como o Estado Islâmico, movimentos políticos ou de libertação nacional — caso do Hamas, que deflagrou a barbárie no fim de semana.

O Hamas é muitas coisas ao mesmo tempo. Acrônimo em árabe de Movimento de Resistência Islâmico, surgiu em 1987 como organização religiosa, filial palestina do grupo fundamentalista egípcio Irmandade Muçulmana. É um partido político, que disputa a liderança palestina com a Fatah (esta controla a Cisjordânia e, por meio da Autoridade Palestina, representa oficialmente os palestinos em fóruns internacionais). Vencedor das eleições na Faixa de Gaza em 2006, o Hamas rompeu com a Fatah em 2007 e, desde então, comanda uma ditadura no território isolado por Israel e Egito, mantendo serviços básicos como educação, saúde ou coleta de lixo, com financiamento dos governos do Irã e do Catar.

O Hamas é tudo isso — mas duas características o distinguem desde o início. Primeira, a rejeição a qualquer acordo ou reconhecimento de Israel, passo essencial para qualquer iniciativa de paz. Segunda, a ação violenta por meio de seu braço militar, as Brigadas Izz al-Din al-Qassam. Além de promoverem bombardeios frequentes ao sul de Israel nos últimos anos e de receberem treinamento e armamento iraniano, elas foram responsáveis por atentados contra inocentes em locais tão diversos quanto pontos de ônibus, uma pizzaria, um shopping center, um supermercado, um hotel ou cafés.

O Brasil não mantém lista de organizações terroristas, mas países como Estados UnidosReino Unido ou a União Europeia classificam o Hamas como grupo terrorista em razão dos atentados do passado. Os ataques do fim de semana, porém, atingiram um novo patamar. Foram sem dúvida atos terroristas, e assim vêm sendo chamados pelo GLOBO. Aqueles que os cometeram são sem dúvida terroristas. Mas os atentados também deixaram claro, pela complexidade, organização e agressividade, que a principal motivação do Hamas, mesmo de sua ala política, hoje não está no futuro da população palestina ou no governo da Faixa de Gaza. Quanto mais os fatos vêm sendo revelados, mais fica claro seu caráter terrorista. Se ele vinha sendo classificado por veículos de imprensa do mundo todo, entre os quais O GLOBO, como grupo extremista armado, agora não cabe outra definição. O Hamas se revelou, sem nuances, um grupo terrorista. E assim deve ser chamado.

Nobel reconhece importância das mulheres no mercado de trabalho

O Globo

Vencedora do prêmio, economista Claudia Goldin explicou razões para baixa participação e diferença salarial

Com justiça, o trabalho da economista americana Claudia Goldin, de 77 anos, foi reconhecido com o Nobel de Economia. Ao longo de mais de três décadas, ela se dedicou a pesquisar a participação das mulheres no mercado de trabalho. Suas descobertas não apenas permitem um novo entendimento do passado, como apontam soluções para os problemas da atualidade. Goldin foi a primeira mulher a receber o Nobel de Economia sozinha, as outras duas tinham dividido o prêmio.

Até a década de 1990, economistas acreditavam que, quanto mais a economia crescia, mais mulheres entravam no mercado de trabalho. Parecia ser a história do século XX. As investigações de Goldin mostraram que os dados de censos antigos haviam sido interpretados incorretamente. A designação “esposa” era vista como alguém dedicado somente ao trabalho doméstico. Não levava em conta que muitas mulheres já ajudavam os maridos em suas atividades, trabalhavam na indústria têxtil ou em casa com costura e laticínios. Numa época em que a economia crescia pouco, elas já trabalhavam muito. Caiu por terra a ideia de que era só esperar mais crescimento para as mulheres conquistarem mais espaço. Para isso ocorrer, descobriu Goldin, era necessário cuidar de fatores como nível educacional ou mudanças legais.

No começo do século XX, era esperado que mulheres trabalhassem poucos anos antes do casamento. A partir de 1950, elas passaram a retornar ao mercado de trabalho depois de ser mães. A prioridade à família afetava a decisão de quanto investir em educação. O ponto de virada aconteceu nos anos 1970. Mais jovens começaram a estudar por mais tempo, a parcela de mulheres aumentou nos cursos superiores, e métodos anticoncepcionais permitiram retardar a maternidade.

Outro estudo de Goldin (de 2010) permitiu entender a discrepância entre a remuneração de homens e mulheres. Ela percebeu que, com educação superior semelhante, ambos entravam no mercado do trabalho sem grande diferença salarial e assim permaneciam por anos. Isso mudava no momento do nascimento do primeiro filho. Estudos posteriores confirmaram os efeitos da maternidade.

A causa está na maneira como o trabalho é organizado. Empresas tendem a valorizar funcionários que trabalham longas horas, estão disponíveis em todos os turnos do dia, inclusive finais de semana. Como o peso maior do cuidado das crianças recai sobre as mães, as mulheres têm uma desvantagem momentânea, depois difícil de recuperar. “As alegações de que a lacuna salarial se deve principalmente a preconceito no mercado de trabalho atingiram um nível febril”, disse Goldin numa entrevista em 2019. “Não há dúvida de que existe muito mau comportamento nem de que devemos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para eliminá-lo, mas essa não é a principal causa da desigualdade salarial entre homens e mulheres.” Ela defende uma mudança na estrutura do trabalho, com mais flexibilidade e valorização de quem não pode estar disponível 24 horas por dia.

Pandemia evidenciou a falta de investimento em saúde

Valor Econômico

Qualquer programa com dinheiro público tem ser acompanhado com atenção

As dificuldades enfrentadas pelos brasileiros com a falta de medicamentos e insumos básicos durante a pandemia ainda estão vívidas na memória. Apenas alguns dias depois da escalada da covid-19, não só os preços saltaram, mas também era difícil encontrar máscaras simples e álcool em gel. Pouco tempo depois, estavam em níveis perigosamente baixos os estoques de equipamentos de proteção individual (EPIs) para o pessoal de atendimento nos hospitais. Além das máscaras, faltavam aventais, óculos ou protetor facial, máscaras cirúrgicas, gorros e luvas. Em algum tempo também escassearam materiais para exames, curativos, para uso em unidades de tratamento intensivo e até analgésicos para as intubações.

Mais de 80% das máscaras usadas no Brasil vêm da Ásia. A produção se localiza na China, na Coreia do Sul e na Malásia, que tiveram a demanda exponencialmente multiplicada com a pandemia. Segundo o Ministério da Saúde, o déficit da balança comercial brasileira na área de saúde cresceu 80% nos últimos dez anos e atingiu US$ 20 bilhões. É a segunda maior fonte de déficit da balança comercial, depois dos eletroeletrônicos.

Superado o auge da pandemia, as fragilidades seguem expostas nas dificuldades para se pôr em dia exames e tratamentos que foram adiados durante a crise sanitária. O Sistema Único de Saúde (SUS), que atende pouco mais de 150 milhões de pessoas, ou cerca de 75% da população, pode ficar vulnerável a oscilações do mercado externo. Em alguns momentos, pode ser difícil obter insumos essenciais. Mais de 90% da matéria-prima usada no Brasil para produção de vacinas e medicamentos, o insumo farmacêutico ativo (IFA), é importada. Já na área de equipamentos médicos, a produção nacional atende 50%. Em medicamentos prontos, o percentual é de cerca de 60%, e, em vacinas, um pouco acima.

Para reduzir riscos, um dos caminhos para o Brasil é estimular a expansão do setor, equivalente a 10% do PIB, sendo um grande empregador e respondendo por um terço das pesquisas científicas do país. No fim de setembro, o governo lançou a nova Estratégia Nacional para o Desenvolvimento do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (Ceis), levando em conta esse cenário. O plano é investir R$ 42 bilhões no setor até 2026, sendo R$ 23 bilhões da iniciativa privada, R$ 9 bilhões do Novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), R$ 6 bilhões do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e R$ 4 bilhões da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). O objetivo é fabricar localmente cerca de 70% dos insumos e produtos do setor.

Entre os objetivos do programa estão ampliar a produção nacional de insumos prioritários para o SUS, reduzindo a dependência de fornecedores estrangeiros de itens básicos, medicamentos, vacinas e outros produtos, além de reforçar a fabricação de produtos que auxiliem a prevenção, o diagnóstico e o tratamento de doenças como tuberculose, doença de Chagas, hepatites virais e HIV.

Para gerar resultados positivos, a iniciativa requer acompanhamento detalhado dos gastos. É fundamental verificar se o volume expressivo de investimentos previstos com recursos públicos será bem direcionado e se as despesas são realmente necessárias. A maior fatia para o projeto será de responsabilidade do setor privado, mas os recursos do setor público previstos para desenvolver o complexo da saúde estão longe de serem inexpressivos. Quanto às importações, um risco a ser evitado é a concentração excessiva em poucos fornecedores, mas as compras externas não devem ser estigmatizadas como negativas.

Estão envolvidos no projeto 11 ministérios, coordenados pelas pastas da Saúde e do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, além de nove órgãos e instituições públicas. Há recursos para as unidades de produção e pesquisa da Empresa Brasileira e Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás) e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), ambas do governo federal. Também estão previstos o desenvolvimento nacional de vacinas, soros, além de modernização e inovação na assistência prestada por entidades filantrópicas.

Outros recursos do Novo PAC foram destinados à área da saúde, além dos R$ 9 bilhões do Ceis, totalizando R$ 31 bilhões, direcionados a ações de atenção primária e especializada, telessaúde e preparação para emergências sanitárias. Para a saúde, o Novo PAC se traduz em construção e finalização de obras de Unidades Básicas de Saúde (UBS), aumento no número de policlínicas, maternidades e salas de parto, além de investimento em políticas estratégicas como a universalização do SAMU, dos Centros Especializados em Reabilitação (CER), das Oficinas Ortopédicas e dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Ao fim do período, espera-se ampliar o número de leitos hospitalares por mil habitantes. Isso será feito a partir da criação de novos hospitais estaduais. O Brasil tem 2,13 leitos por mil habitantes quando a OMS preconiza, como patamar mínimo, 3 leitos para cada mil pessoas.

Os objetivos são importantes, mas, novamente, é preciso avaliar com rigor as obras e se é necessário empregar volumes tão substanciais de recursos públicos, escassos num país que tem contas públicas deficitárias. Qualquer programa com dinheiro público tem ser acompanhado com atenção, para que não se repitam problemas em iniciativas que envolvem montantes bilionários de recursos do governo.

Farra das emendas

Folha de S. Paulo

Gastos definidos à base de clientelismo têm peso crescente na política pública

O Congresso Nacional associou-se prazerosamente ao programa gastador do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), sendo coautor da emenda constitucional que liberou desembolsos recordes desde antes da posse do presidente. Deputados e senadores, não satisfeitos, contribuem para a piora da qualidade da despesa pública.

Como noticiou a Folha, as emendas parlamentares —incluindo uma nova modalidade, informal— deverão somar R$ 46,3 bilhões no Orçamento inaudito deste 2023.

Pode-se ter a impressão de que o valor tem pouca importância numa peça orçamentária de mais de R$ 2 trilhões, sem contar os encargos da dívida pública. Cabe considerar, porém, que 90% desse total é composto por pagamentos obrigatórios, como salários, aposentadorias e benefícios sociais.

Assim, as emendas já representam mais de um quinto dos recursos sobre os quais o governo federal tem maior margem de escolha e manobra, proporção que seria inimaginável poucos anos atrás.

Outrora residuais e de execução incerta, elas agora têm influência real em boa parte das políticas públicas. Deveriam, pois, ser submetidas aos mesmos critérios de relevância, equidade e objetivos com os quais se avaliam todas as despesas. Isso está longe de ocorrer.

As distorções mais escandalosas se dão nas emendas individuais, uma peculiaridade do fisiologismo brasileiro pela qual cada congressista tem direito a uma cota do Orçamento, a ser empregada conforme sua preferência.

São mais de R$ 20 bilhões pulverizados em ações de pequena monta, mais típicas de prefeituras —e não raro acompanhadas de desvios e favorecimentos. A esse valor se somam quase R$ 10 bilhões em recursos dos ministérios que o governo cedeu, mediante acordo político, ao comando do Congresso.

A distribuição dessa dinheirama segue a lógica do clientelismo. Cidades que dispõem de um padrinho em Brasília recebem benesses, como acesso à água na aridez nordestina, negadas às vizinhas.

"Ninguém conhece mais o Brasil do que o parlamentar", diz o presidente da Câmara e expoente do centrão, Arthur Lira (PP-AL), em defesa das emendas. É o Brasil, no entanto, que precisa conhecer o destino dado pelos parlamentares ao dinheiro do contribuinte.

As contrapartidas ao maior poder do Congresso sobre o Orçamento precisam ser transparência, fiscalização e prestação de contas à sociedade sobre o uso das verbas —já que esperar boa definição prévia das finalidades parece politicamente irrealista neste momento.

Muro da discórdia

Folha de S. Paulo

Em meio à crise imigratória, Biden retoma barreiras que criticava na fronteira

Não bastasse o pouco entusiasmo com a pré-candidatura à reeleição até entre pares democratas, Joe Biden anunciou que retomará as obras do famigerado muro na fronteira entre EUA e México —um símbolo divisionista do governo Donald Trump, que novamente poderá ser o rival republicano na corrida presidencial de 2024.

O constrangimento é considerável. Atendendo a uma promessa de campanha, um dos primeiros atos de Biden ao chegar à Casa Branca, em 2021, foi interromper o avanço das barreiras que hoje perfazem, não linearmente, pouco mais de um terço dos 3.142 km que separam os dois países.

Ele dizia, à época, que desfazia um desperdício de dinheiro.

Movido ou não pelo recrudescimento da crise imigratória, Biden capitulou. Por imposição legal, alega seu governo, recursos já reservados ao muro em anos anteriores (cerca de US$ 190 milhões) não poderiam ser realocados em outros projetos. Questionado se o investimento agora seria mais eficaz, o mandatário foi categórico: "Não".

Faltam detalhes sobre o alcance da empreitada. Sabe-se, entretanto, que parte da construção atenderá o condado de Starr, no Texas —a pequena cidade de Eagle Pass chegou a receber 2.500 migrantes em apenas um dia, o que fez o prefeito declarar estado de emergência.

Não é de hoje que Biden tem sofrido pressões, inclusive entre aliados, para conter o crescente fluxo imigratório ilegal. Exemplo prático é a volta das deportações de venezuelanos para Caracas após acordo com a ditadura sul-americana.

Nada menos que 2,2 milhões de pessoas foram detidas, de outubro de 2022 a agosto passado, cruzando a fronteira sul dos EUA. A questão, não há dúvida, será central nas eleições que se avizinham.

Adversários republicanos, Trump incluído, vão além do muro e defendem ocupação militar em áreas críticas, também com o intuito de neutralizar os cartéis do tráfico.

Edificações do tipo são, no máximo, paliativos arcaicos para um colossal desafio deste século.

Deslocamentos humanos, de imigrantes ou refugiados, ganham impulso em todo o planeta provocados por razões sociais e econômicas, violações de direitos humanos, instabilidade política, conflitos armados e, mais recentemente, desastres naturais e mudanças climáticas.

É complexa a tarefa de equilibrar segurança nacional com valores humanitários, o que inclui reformas nas políticas imigratórias e de acolhimento e ampla cooperação internacional. Lidar com a questão, contudo, exige transpor barreiras, não erguê-las.

Cada Poder no seu quadrado

O Estado de S. Paulo

Congresso e STF parecem estar em rota de colisão. A saída republicana para os impasses não é outra senão a Constituição, em particular a autocontenção dos Poderes

O Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF) parecem ter entrado em rota de colisão nas últimas semanas. Não é a primeira vez que isso ocorre e decerto não será a última. No centro da contenda da vez está o avanço da Corte sobre temas que deveriam ser tratados exclusivamente pelo Legislativo, como, por exemplo, a definição do marco temporal para a demarcação de terras indígenas, a legalização do aborto e a descriminalização da posse de maconha para uso pessoal. A essa usurpação de competência correspondeu uma forte reação de um grupo de parlamentares, que resgataram uma série de projetos que visam a limitar o campo de atuação dos ministros do STF.

De início, deve-se ter claro que é normal na democracia haver embates entre os Poderes. E, quando isso acontece, não necessariamente uma crise se instala no País. O sistema de freios e contrapesos opera por meio de um conjunto bem definido de regras objetivas, previstas no ordenamento jurídico, mas não só. O debate público entre autoridades, por mais acalorado que seja, e a disputa pelo poder de influenciar a opinião pública também são mecanismos legítimos à disposição dos representantes do Executivo, do Legislativo e do Judiciário para fazer valer suas posições e interesses. Como bem notou o cientista político Carlos Pereira em sua coluna neste jornal, publicada no dia 2 passado, esse é um “conflito virtuoso” na medida em que “não permite que nenhuma força política consiga, sozinha, ser majoritária”.

Evidentemente, esse embate será normal, até esperado, desde que travado nos exatos termos estabelecidos pela Constituição. Vale dizer, tudo pode ser objeto de debate, até mesmo os limites de atuação do STF, como o Congresso tem se dedicado a discutir. O que é inaceitável é a tentativa de interferência de um Poder no outro. Não só as instituições perdem por si sós, mas o País perde quando o STF se imiscui em questões que devem ser debatidas pela sociedade por meio de seus representantes eleitos; ou quando o Congresso se lança numa cruzada revanchista contra a Corte.

Por exemplo: no fim de setembro, um grupo de deputados apresentou à Mesa Diretora da Câmara a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 50/2023, que inclui entre as competências exclusivas do Congresso o poder de sustar, por maioria qualificada dos membros das duas Casas Legislativas, “decisão do Supremo Tribunal Federal transitada em julgado que extrapole os limites constitucionais”. O conteúdo da proposta é profundamente equivocado, como se a política fosse a instância de interpretação do direito. Não é.

Numa democracia, esse papel cabe ao Judiciário.

Há outras medidas em discussão no Congresso para, de alguma maneira, limitar o campo de atuação do STF, como a PEC que institui mandato para os ministros da Corte ou a que restringe o alcance de decisões monocráticas, esta já coberta pelo próprio regimento interno do STF. À sua maneira, o presidente do STF fez bem ao recomendar prudência na discussão dessa e de outras questões. “Não vejo com simpatia (o mandato para ministros do STF), embora veja com todo respeito a vontade de discutir esse tema”, disse Luís Roberto Barroso, lembrando que o Supremo, como os outros dois Poderes, é parte legítima nesse debate e, portanto, deve ser ouvido.

Não há democracia sem um Judiciário livre e independente; e não há paz social quando o Judiciário não é visto e respeitado pelos cidadãos como a instância para a resolução pacífica de conflitos. De igual forma, não há que se falar em democracia quando o Congresso é alijado da apreciação de temas que, fundamentalmente, devem ser decididos pelos parlamentares como legítimos representantes da sociedade e da Federação.

A saída para quaisquer desses impasses, presentes ou vindouros, não é outra senão a Constituição – em particular a autocontenção dos Poderes. O STF não deve se imiscuir em temas próprios da política, temas sobre os quais cabe aos cidadãos decidirem. E o Congresso, à guisa de reação, não pode abusar de seu legítimo direito de tratar desses temas adentrando o terreno da vendeta.

Um Nobel para valorizar as mulheres

O Estado de S. Paulo

Estudos de Claudia Goldin sobre as raízes das desigualdades entre homens e mulheres no mercado de trabalho apontam caminhos para elevar presença feminina e equiparar salários

A economista Claudia Goldin, de 77 anos, recebeu o Prêmio Nobel de Economia nesta semana. Professora titular da Universidade Harvard, ela é autora de várias pesquisas que trouxeram luz a questões sobre a participação das mulheres no mercado de trabalho e a disparidade de renda entre trabalhadores e trabalhadoras. Em busca de suas causas, as desigualdades foram escrutinadas pela pesquisadora com dados sobre o mercado de trabalho norte-americano ao longo de um período de mais de 200 anos.

Suas descobertas revelaram que, ao contrário do que se esperava, a participação feminina no mercado de trabalho não seguiu uma evolução contínua e ascendente, mas partiu de uma base elevada no começo do século 19, refluiu até o início do século 20 e só depois voltou a crescer de forma mais consistente.

Na Filadélfia do fim do século 18, quase 60% das mulheres casadas trabalhavam em casa, na agricultura ou em indústrias artesanais – não por aspirações profissionais, mas para complementar a renda familiar. O quadro mudou quando a região se tornou parte do chamado “cinturão da ferrugem” nos EUA, nos séculos 19 e 20. Como se sabe, longas jornadas de trabalho ininterruptas em fábricas dificultam, quando não inviabilizam, o cumprimento de tarefas domésticas e familiares.

O crescimento da relevância do setor de serviços na economia reverteu parcialmente esse cenário. Legislações que proibiam mulheres casadas de trabalhar fora foram derrubadas, ampliando a participação de trabalhadoras em escritórios e escolas. No entanto, ao mesmo tempo que a presença de mulheres no mercado de trabalho aumentava, as diferenças salariais mais que dobraram, destacou a economista.

Segundo Goldin, isso se deve ao fato de que a maioria das empresas continuou a preferir a remuneração por salários mensais em detrimento dos pagamentos por tarefa. O modelo tende a recompensar quem permanece mais tempo na mesma companhia e mais horas no trabalho, o que é sempre mais desafiador para mulheres com filhos.

Ao abordar o impacto de papéis sociais como casamento e maternidade na vida das mulheres, os estudos da economista mostraram a revolução que o advento da pílula anticoncepcional e o acesso a eletrodomésticos, nas décadas de 1960 e 1970, representaram na construção da identidade feminina.

Ter controle sobre o planejamento familiar e gastar menos horas nas tarefas de casa garantiu a elas o tempo necessário para se dedicar a estudos e trabalhos que alavancaram suas trajetórias profissionais e seus salários. Porém, até hoje, mulheres mais escolarizadas e qualificadas raramente alcançam a remuneração paga a homens que cumprem a mesma função.

Os estudos de Goldin são ouro para formuladores de políticas públicas. Eles evidenciam a importância de leis e regras que protejam as mulheres, combatam a discriminação nas empresas, derrubem barreiras de acesso e criem um ambiente mais favorável ao retorno ao mercado de trabalho após a gravidez. Até agora, as medidas não têm sido suficientes para reduzir as desigualdades. Após o nascimento do primeiro filho, as diferenças salariais se acentuam ainda mais, segundo a economista.

Há muito a ser feito. Como Goldin destaca, trabalhos híbridos, com horários flexíveis, talvez sejam um dos únicos legados positivos da pandemia de covid-19. Isso pode fazer toda a diferença entre continuar em um emprego ou abandoná-lo por absoluta incompatibilidade com as tarefas de uma mãe de filhos pequenos.

Preservar o trabalho remoto e adotálo também em setores com remuneração historicamente mais elevada, como o mundo corporativo, o universo jurídico e o mercado financeiro, é um caminho para fomentar a equidade. Do contrário, restará às mulheres continuar a “escolher” faculdades e profissões associadas a salários menores, como sugerem estudos felizmente não laureados com o Prêmio Nobel.

Além de políticas públicas, é fundamental que os homens assumam responsabilidades como parceiros também dentro de casa. “Nunca teremos igualdade de gênero até que tenhamos igualdade entre os casais”, afirmou Goldin – que foi apenas a terceira mulher a levar o Nobel de Economia, entre 93 premiados.

Uma operação complexa

O Estado de S. Paulo

Repatriação de brasileiros de Israel e de Gaza dependerá da dinâmica movediça do conflito

O Brasil reagiu com presteza diante do brutal ataque do Hamas a civis em Israel, iniciado no último sábado, ao priorizar o resgate de seus nacionais. Nada menos do que isso seria esperado dos Ministérios das Relações Exteriores e da Defesa, experientes na complexa tarefa de repatriar brasileiros pegos de surpresa em zonas de guerra. A descomunal violência do grupo terrorista atingiu diretamente o País com a morte de dois de seus cidadãos, durante um festival de música, e a incerteza sobre o destino de outro, ainda desaparecido. A obrigação mínima do Estado brasileiro é resgatar os seus.

O êxito do Brasil no passado denota o elevado grau de profissionalismo de militares e diplomatas no planejamento e execução de operações similares que, como a atual, envolveram altos riscos tanto aos resgatados como às equipes envolvidas. A retirada bem-sucedida de cerca de 3.000 brasileiros do Vale do Bekaa, no Líbano, durante o conflito entre o grupo extremista Hezbollah e Israel em 2006 deixou como legado a adaptação dos planos originais a mudanças repentinas causadas pelo acirramento da violência no terreno. Tal experiência foi valiosa para o resgate, em março de 2022, de 42 brasileiros e 26 estrangeiros surpreendidos pela invasão militar da Rússia à Ucrânia.

O primeiro dos seis aviões escalados pela Força Aérea Brasileira (FAB) para a operação de resgate decolou de Israel com 211 brasileiros a bordo ontem. A expectativa do Itamaraty e da Força Aérea Brasileira é repatriar os 2.300 cidadãos residentes no Brasil que solicitaram o retorno, sobretudo turistas cujos voos foram suspensos pelas companhias aéreas. As estimativas atestam ser esta uma das maiores missões de resgate executadas pelo País. Como nas anteriores, porém, exigirá atualização em tempo real em função dos riscos no terreno e de novas ameaças latentes.

Na Faixa de Gaza, cerca de 30 brasileiros aguardam negociações diplomáticas mais complexas, sobretudo em um Conselho de Segurança das Nações Unidas inerte diante de emergências. Por certo, uma eventual autorização para cidadãos brasileiros e de outros países cruzarem a única saída do território palestino – a fronteira com o Egito – dependerá do tirânico Hamas e de fatores de segurança elencados por Israel. Tais obstáculos não podem limitar a pressão do Itamaraty e da comunidade internacional em prol desse salvo-conduto de caráter humanitário.

A extensão da atual missão dependerá da dinâmica movediça do conflito. O potencial recrudescimento da violência afetará, sem distinção, os cerca de 14 mil brasileiros que vivem em Israel e os 6.000 moradores da Faixa de Gaza. O governo Lula da Silva haverá de considerar o desdobramento de seus esforços, mesmo sob riscos crescentes, para fazer chegar assistência humanitária a essas comunidades. Em última instância, para a remoção de todos. Nenhum brasileiro deve ser desamparado em zona de guerra. Muito menos, deixado para trás.

É preciso aprovar as medidas econômicas

Correio Braziliense

O cenário adverso no mundo requer serenidade por parte do governo, mas exige também maior rigor com os gastos públicos e eficiência na arrecadação de impostos

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, está certo ao cobrar a aprovação de medidas que possam ajudar o Brasil a enfrentar um ambiente externo mais adverso, com guerras elevando os preços do petróleo e pressionando a inflação, o que leva os Bancos Centrais dos Estados Unidos e da Europa a manterem o ciclo de alta das taxas de juros. O apelo, que envolve a aprovação da reforma tributária no Senado e medidas como o projeto de lei que taxa fundos offshore e fundos exclusivos e o de taxação das grandes fortunas, em tramitação na Câmara, podem ajudar a blindar o Brasil das intempéries externas. As medidas são necessárias para assegurar recursos ao governo para fazer frente aos desembolsos com educação, saúde e segurança pública, sempre áreas que são afetadas pelo menor sinal de crise. É preciso quebrar esse círculo vicioso.

Não se quer dizer com isso que o governo pode gastar sem controle. É preciso manter o equilíbrio fiscal, ao qual se chega não apenas com corte de gastos, mas com mecanismos de incremento da receita. E as medidas representam muito mais a correção de distorções fiscais em benefício de uma camada em detrimento da maioria dos contribuintes. O temor do mercado financeiro é sempre de que os gastos do governo impactam as contas públicas, mas é preciso cobrar do Congresso Nacional a votação da agenda econômica que pode, sim, fazer face aos desafios sociais do Brasil, país que ainda convive com uma desigualdade abissal.

Os recursos da tributação sobre grandes fortunas, prevista no artigo 153 da Constituição Federal, assim como a tributação dos fundos, podem gerar uma receita superior a R$ 40 bilhões e fazer face a investimentos do governo no Minha casa, minha vida ou nos programas de distribuição de renda, como o Bolsa-Família. Embora nunca seja agradável uma mordida do fisco sobre recursos antes não tributados, é preciso lembrar que no passado recente, mais precisamente em janeiro de 1998, no governo Fernando Henrique Cardoso, a alíquota máxima do Imposto de Renda da Pessoa Física foi elevada de 25% para 27,5%. Na época, a classe média pagou a conta do ajuste necessário para o país enfrentar a crise dos “tigres asiáticos”, entre eles a Coreia do Sul.

O cenário adverso no mundo nos próximos meses requer serenidade por parte do governo, como prometeu o ministro Fernando Haddad, mas exige também maior rigor com os gastos públicos e também maior eficiência na arrecadação de impostos. E nesse caso a conta é simples e o próprio governo tem os cálculos. A ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet, já estimou que o combate à sonegação fiscal pode render receitas de mais de R$ 120 bilhões ao ano. Isso significa que, enquanto parte da sociedade tem seu orçamento estrangulado com a alta carga de impostos, outra parcela dribla a exigência fiscal, afetando a concorrência e a produtividade da economia brasileira.

Com reservas cambiais elevadas e de mais de US$ 300 bilhões e um superávit comercial que chega a US$ 71,309 bilhões até setembro, o Brasil está hoje menos exposto a crises internacionais. Na atual, a apreensão é de que o Federal Reserve – Banco Central dos Estados Unidos – possa elevar novamente a taxa de juros, o que os colocaria no maior patamar em mais de 20 anos, pressionando para cima a cotação do dólar. Essa pressão sobre o câmbio, se for contínua e prolongada, exigirá que o BC brasileiro mantenha a taxa de juros em patamar elevado, podendo interromper os cortes de 0,5 ponto percentual e frustrando a expectativa de um aumento do consumo no fim do ano e consequente aceleração da atividade econômica.

 

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