Hamas se revela sem nuance como grupo terrorista
O Globo
Quanto mais os fatos vêm à tona, mais fica
claro que essa é a melhor definição para o movimento armado
Cenas chocantes como as testemunhadas em
Israel no fim de semana são capazes de deixar qualquer ser humano sem palavras.
Filhos mortos diante dos pais, centenas de jovens fuzilados a esmo numa festa,
idosos mantidos sob a mira de metralhadoras ou assassinados, indícios de
estupros, tortura psicológica, sequestros de adultos e crianças ainda em curso
— uma barbárie sem fim. Uma barbárie que ninguém gosta de descrever.
Nenhuma causa, por mais nobre, como a soberania palestina, serve de argumento para justificar a agressão bárbara que tenha como alvo inocentes, de qualquer idade, nacionalidade, etnia, religião, orientação sexual ou política. A palavra terrorismo foi cunhada no século XIX para definir um movimento na Rússia czarista que não se furtava a matar inocentes para amedrontar a população. É ela que melhor descreve os atentados cometidos contra civis em nome de pretextos políticos, ideológicos ou religiosos. O terrorismo costuma ser praticado por seitas escatológicas, como o Estado Islâmico, movimentos políticos ou de libertação nacional — caso do Hamas, que deflagrou a barbárie no fim de semana.
O Hamas é muitas coisas ao mesmo tempo.
Acrônimo em árabe de Movimento de Resistência Islâmico, surgiu em 1987 como
organização religiosa, filial palestina do grupo fundamentalista egípcio
Irmandade Muçulmana. É um partido político, que disputa a liderança palestina
com a Fatah (esta controla a Cisjordânia e,
por meio da Autoridade Palestina, representa oficialmente os palestinos em
fóruns internacionais). Vencedor das eleições na Faixa de Gaza em 2006, o Hamas
rompeu com a Fatah em 2007 e, desde então, comanda uma ditadura no território
isolado por Israel e Egito, mantendo serviços básicos como educação, saúde ou
coleta de lixo, com financiamento dos governos do Irã e do Catar.
O Hamas é tudo isso — mas duas
características o distinguem desde o início. Primeira, a rejeição a qualquer
acordo ou reconhecimento de Israel, passo essencial para qualquer iniciativa de
paz. Segunda, a ação violenta por meio de seu braço militar, as Brigadas Izz
al-Din al-Qassam. Além de promoverem bombardeios frequentes ao sul de Israel
nos últimos anos e de receberem treinamento e armamento iraniano, elas foram
responsáveis por atentados contra inocentes em locais tão diversos quanto
pontos de ônibus, uma pizzaria, um shopping center, um supermercado, um hotel
ou cafés.
O Brasil não mantém lista de organizações
terroristas, mas países como Estados Unidos, Reino Unido ou
a União Europeia classificam o Hamas como grupo terrorista em razão dos
atentados do passado. Os ataques do fim de semana, porém, atingiram um novo
patamar. Foram sem dúvida atos terroristas, e assim vêm sendo chamados pelo
GLOBO. Aqueles que os cometeram são sem dúvida terroristas. Mas os atentados
também deixaram claro, pela complexidade, organização e agressividade, que a
principal motivação do Hamas, mesmo de sua ala política, hoje não está no
futuro da população palestina ou no governo da Faixa de Gaza. Quanto mais os
fatos vêm sendo revelados, mais fica claro seu caráter terrorista. Se ele vinha
sendo classificado por veículos de imprensa do mundo todo, entre os quais O
GLOBO, como grupo extremista armado, agora não cabe outra definição. O Hamas se
revelou, sem nuances, um grupo terrorista. E assim deve ser chamado.
Nobel reconhece importância das mulheres no
mercado de trabalho
O Globo
Vencedora do prêmio, economista Claudia
Goldin explicou razões para baixa participação e diferença salarial
Com justiça, o trabalho da economista
americana Claudia Goldin, de 77 anos, foi reconhecido com o Nobel de Economia.
Ao longo de mais de três décadas, ela se dedicou a pesquisar a participação das
mulheres no mercado de trabalho. Suas descobertas não apenas permitem um novo
entendimento do passado, como apontam soluções para os problemas da atualidade.
Goldin foi a primeira mulher a receber o Nobel de Economia sozinha, as outras
duas tinham dividido o prêmio.
Até a década de 1990, economistas acreditavam
que, quanto mais a economia crescia, mais mulheres entravam no mercado de
trabalho. Parecia ser a história do século XX. As investigações de Goldin
mostraram que os dados de censos antigos haviam sido interpretados
incorretamente. A designação “esposa” era vista como alguém dedicado somente ao
trabalho doméstico. Não levava em conta que muitas mulheres já ajudavam os
maridos em suas atividades, trabalhavam na indústria têxtil ou em casa com
costura e laticínios. Numa época em que a economia crescia pouco, elas já
trabalhavam muito. Caiu por terra a ideia de que era só esperar mais
crescimento para as mulheres conquistarem mais espaço. Para isso ocorrer,
descobriu Goldin, era necessário cuidar de fatores como nível educacional ou
mudanças legais.
No começo do século XX, era esperado que
mulheres trabalhassem poucos anos antes do casamento. A partir de 1950, elas
passaram a retornar ao mercado de trabalho depois de ser mães. A prioridade à
família afetava a decisão de quanto investir em educação. O ponto de virada
aconteceu nos anos 1970. Mais jovens começaram a estudar por mais tempo, a
parcela de mulheres aumentou nos cursos superiores, e métodos anticoncepcionais
permitiram retardar a maternidade.
Outro estudo de Goldin (de 2010) permitiu
entender a discrepância entre a remuneração de homens e mulheres. Ela percebeu
que, com educação superior semelhante, ambos entravam no mercado do trabalho
sem grande diferença salarial e assim permaneciam por anos. Isso mudava no
momento do nascimento do primeiro filho. Estudos posteriores confirmaram os
efeitos da maternidade.
A causa está na maneira como o trabalho é
organizado. Empresas tendem a valorizar funcionários que trabalham longas
horas, estão disponíveis em todos os turnos do dia, inclusive finais de semana.
Como o peso maior do cuidado das crianças recai sobre as mães, as mulheres têm
uma desvantagem momentânea, depois difícil de recuperar. “As alegações de que a
lacuna salarial se deve principalmente a preconceito no mercado de trabalho
atingiram um nível febril”, disse Goldin numa entrevista em 2019. “Não há
dúvida de que existe muito mau comportamento nem de que devemos fazer tudo o
que estiver ao nosso alcance para eliminá-lo, mas essa não é a principal causa
da desigualdade salarial entre homens e mulheres.” Ela defende uma mudança na
estrutura do trabalho, com mais flexibilidade e valorização de quem não pode
estar disponível 24 horas por dia.
Pandemia evidenciou a falta de investimento
em saúde
Valor Econômico
Qualquer programa com dinheiro público tem
ser acompanhado com atenção
As dificuldades enfrentadas pelos brasileiros
com a falta de medicamentos e insumos básicos durante a pandemia ainda estão
vívidas na memória. Apenas alguns dias depois da escalada da covid-19, não só
os preços saltaram, mas também era difícil encontrar máscaras simples e álcool
em gel. Pouco tempo depois, estavam em níveis perigosamente baixos os estoques
de equipamentos de proteção individual (EPIs) para o pessoal de atendimento nos
hospitais. Além das máscaras, faltavam aventais, óculos ou protetor facial,
máscaras cirúrgicas, gorros e luvas. Em algum tempo também escassearam
materiais para exames, curativos, para uso em unidades de tratamento intensivo
e até analgésicos para as intubações.
Mais de 80% das máscaras usadas no Brasil vêm
da Ásia. A produção se localiza na China, na Coreia do Sul e na Malásia, que
tiveram a demanda exponencialmente multiplicada com a pandemia. Segundo o
Ministério da Saúde, o déficit da balança comercial brasileira na área de saúde
cresceu 80% nos últimos dez anos e atingiu US$ 20 bilhões. É a segunda maior
fonte de déficit da balança comercial, depois dos eletroeletrônicos.
Superado o auge da pandemia, as fragilidades
seguem expostas nas dificuldades para se pôr em dia exames e tratamentos que
foram adiados durante a crise sanitária. O Sistema Único de Saúde (SUS), que
atende pouco mais de 150 milhões de pessoas, ou cerca de 75% da população, pode
ficar vulnerável a oscilações do mercado externo. Em alguns momentos, pode ser
difícil obter insumos essenciais. Mais de 90% da matéria-prima usada no Brasil
para produção de vacinas e medicamentos, o insumo farmacêutico ativo (IFA), é
importada. Já na área de equipamentos médicos, a produção nacional atende 50%.
Em medicamentos prontos, o percentual é de cerca de 60%, e, em vacinas, um
pouco acima.
Para reduzir riscos, um dos caminhos para o
Brasil é estimular a expansão do setor, equivalente a 10% do PIB, sendo um
grande empregador e respondendo por um terço das pesquisas científicas do país.
No fim de setembro, o governo lançou a nova Estratégia Nacional para o
Desenvolvimento do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (Ceis), levando em
conta esse cenário. O plano é investir R$ 42 bilhões no setor até 2026, sendo
R$ 23 bilhões da iniciativa privada, R$ 9 bilhões do Novo Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC), R$ 6 bilhões do Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES) e R$ 4 bilhões da Financiadora de Estudos e Projetos
(Finep). O objetivo é fabricar localmente cerca de 70% dos insumos e produtos
do setor.
Entre os objetivos do programa estão ampliar
a produção nacional de insumos prioritários para o SUS, reduzindo a dependência
de fornecedores estrangeiros de itens básicos, medicamentos, vacinas e outros
produtos, além de reforçar a fabricação de produtos que auxiliem a prevenção, o
diagnóstico e o tratamento de doenças como tuberculose, doença de Chagas,
hepatites virais e HIV.
Para gerar resultados positivos, a iniciativa
requer acompanhamento detalhado dos gastos. É fundamental verificar se o volume
expressivo de investimentos previstos com recursos públicos será bem
direcionado e se as despesas são realmente necessárias. A maior fatia para o
projeto será de responsabilidade do setor privado, mas os recursos do setor
público previstos para desenvolver o complexo da saúde estão longe de serem
inexpressivos. Quanto às importações, um risco a ser evitado é a concentração
excessiva em poucos fornecedores, mas as compras externas não devem ser
estigmatizadas como negativas.
Estão envolvidos no projeto 11 ministérios,
coordenados pelas pastas da Saúde e do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e
Serviços, além de nove órgãos e instituições públicas. Há recursos para as
unidades de produção e pesquisa da Empresa Brasileira e Hemoderivados e
Biotecnologia (Hemobrás) e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), ambas do governo
federal. Também estão previstos o desenvolvimento nacional de vacinas, soros,
além de modernização e inovação na assistência prestada por entidades
filantrópicas.
Outros recursos do Novo PAC foram destinados
à área da saúde, além dos R$ 9 bilhões do Ceis, totalizando R$ 31 bilhões,
direcionados a ações de atenção primária e especializada, telessaúde e
preparação para emergências sanitárias. Para a saúde, o Novo PAC se traduz em
construção e finalização de obras de Unidades Básicas de Saúde (UBS), aumento
no número de policlínicas, maternidades e salas de parto, além de investimento
em políticas estratégicas como a universalização do SAMU, dos Centros
Especializados em Reabilitação (CER), das Oficinas Ortopédicas e dos Centros de
Atenção Psicossocial (CAPS). Ao fim do período, espera-se ampliar o número de
leitos hospitalares por mil habitantes. Isso será feito a partir da criação de
novos hospitais estaduais. O Brasil tem 2,13 leitos por mil habitantes quando a
OMS preconiza, como patamar mínimo, 3 leitos para cada mil pessoas.
Os objetivos são importantes, mas, novamente, é preciso avaliar com rigor as obras e se é necessário empregar volumes tão substanciais de recursos públicos, escassos num país que tem contas públicas deficitárias. Qualquer programa com dinheiro público tem ser acompanhado com atenção, para que não se repitam problemas em iniciativas que envolvem montantes bilionários de recursos do governo.
Farra das emendas
Folha de S. Paulo
Gastos definidos à base de clientelismo têm
peso crescente na política pública
O Congresso Nacional associou-se
prazerosamente ao programa gastador do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT),
sendo coautor da emenda constitucional que liberou desembolsos recordes desde
antes da posse do presidente. Deputados e senadores, não satisfeitos,
contribuem para a piora da qualidade da despesa pública.
Como noticiou
a Folha, as emendas parlamentares —incluindo uma nova
modalidade, informal— deverão somar R$ 46,3 bilhões no Orçamento inaudito deste
2023.
Pode-se ter a impressão de que o valor tem
pouca importância numa peça orçamentária de mais de R$ 2 trilhões, sem contar
os encargos da dívida pública. Cabe considerar, porém, que 90% desse total é
composto por pagamentos obrigatórios, como salários, aposentadorias e
benefícios sociais.
Assim, as emendas já representam mais de um
quinto dos recursos sobre os quais o governo federal tem maior margem de
escolha e manobra, proporção que seria inimaginável poucos anos atrás.
Outrora residuais e de execução incerta, elas
agora têm influência real em boa parte das políticas públicas. Deveriam, pois,
ser submetidas aos mesmos critérios de relevância, equidade e objetivos com os
quais se avaliam todas as despesas. Isso está longe de ocorrer.
As distorções mais escandalosas se dão nas
emendas individuais, uma peculiaridade do fisiologismo brasileiro pela qual
cada congressista tem direito a uma cota do Orçamento, a ser empregada conforme
sua preferência.
São mais de R$ 20 bilhões pulverizados em
ações de pequena monta, mais típicas de prefeituras —e não raro acompanhadas de
desvios e favorecimentos. A esse valor se somam quase R$ 10 bilhões em recursos
dos ministérios que o governo cedeu, mediante acordo político, ao comando do
Congresso.
A distribuição dessa dinheirama segue a
lógica do clientelismo. Cidades que dispõem de um padrinho em
Brasília recebem benesses, como acesso à água na aridez nordestina, negadas às
vizinhas.
"Ninguém conhece mais o Brasil do que o
parlamentar", diz o presidente da Câmara e expoente do centrão, Arthur
Lira (PP-AL), em defesa das emendas. É o Brasil, no entanto, que precisa
conhecer o destino dado pelos parlamentares ao dinheiro do contribuinte.
As contrapartidas ao maior poder do Congresso
sobre o Orçamento precisam ser transparência, fiscalização e prestação de
contas à sociedade sobre o uso das verbas —já que esperar boa definição prévia
das finalidades parece politicamente irrealista neste momento.
Muro da discórdia
Folha de S. Paulo
Em meio à crise imigratória, Biden retoma
barreiras que criticava na fronteira
Não bastasse o pouco
entusiasmo com a pré-candidatura à reeleição até entre pares
democratas, Joe Biden anunciou
que retomará as
obras do famigerado muro na fronteira entre EUA e México —um
símbolo divisionista do governo Donald Trump,
que novamente poderá ser o rival republicano na corrida presidencial de 2024.
O constrangimento é considerável. Atendendo a
uma promessa de campanha, um dos primeiros atos de Biden ao chegar à Casa
Branca, em 2021, foi interromper o avanço das barreiras que hoje perfazem, não
linearmente, pouco mais de um terço dos 3.142 km que separam os dois países.
Ele dizia, à época, que desfazia um
desperdício de dinheiro.
Movido ou não pelo recrudescimento da crise
imigratória, Biden capitulou. Por imposição legal, alega seu governo, recursos
já reservados ao muro em anos anteriores (cerca de US$ 190 milhões) não
poderiam ser realocados em outros projetos. Questionado se o investimento agora
seria mais eficaz, o mandatário foi categórico: "Não".
Faltam detalhes sobre o alcance da
empreitada. Sabe-se, entretanto, que parte da construção atenderá o condado de
Starr, no Texas —a pequena cidade de Eagle Pass chegou a
receber 2.500 migrantes em apenas um dia, o que fez o prefeito
declarar estado de emergência.
Não é de hoje que Biden tem sofrido pressões,
inclusive entre aliados, para conter o crescente fluxo imigratório ilegal.
Exemplo prático é a volta das deportações de venezuelanos para
Caracas após acordo com a ditadura sul-americana.
Nada menos que 2,2 milhões de pessoas foram
detidas, de outubro de 2022 a agosto passado, cruzando a fronteira sul dos EUA.
A questão, não há dúvida, será central nas eleições que
se avizinham.
Adversários republicanos, Trump incluído, vão
além do muro e defendem ocupação militar em áreas críticas, também com o
intuito de neutralizar os cartéis do tráfico.
Edificações do tipo são, no máximo, paliativos arcaicos para um colossal desafio
deste século.
Deslocamentos humanos, de imigrantes ou refugiados,
ganham impulso em todo o planeta provocados por razões sociais e econômicas,
violações de direitos humanos, instabilidade política, conflitos armados e,
mais recentemente, desastres naturais e mudanças climáticas.
É complexa a tarefa de equilibrar segurança nacional com valores humanitários,
o que inclui reformas nas políticas imigratórias e de acolhimento e ampla
cooperação internacional. Lidar com a questão, contudo, exige transpor
barreiras, não erguê-las.
Cada Poder no seu quadrado
O Estado de S. Paulo
Congresso e STF parecem estar em rota de
colisão. A saída republicana para os impasses não é outra senão a Constituição,
em particular a autocontenção dos Poderes
O Congresso e o Supremo Tribunal Federal
(STF) parecem ter entrado em rota de colisão nas últimas semanas. Não é a
primeira vez que isso ocorre e decerto não será a última. No centro da contenda
da vez está o avanço da Corte sobre temas que deveriam ser tratados
exclusivamente pelo Legislativo, como, por exemplo, a definição do marco
temporal para a demarcação de terras indígenas, a legalização do aborto e a
descriminalização da posse de maconha para uso pessoal. A essa usurpação de
competência correspondeu uma forte reação de um grupo de parlamentares, que
resgataram uma série de projetos que visam a limitar o campo de atuação dos
ministros do STF.
De início, deve-se ter claro que é normal na
democracia haver embates entre os Poderes. E, quando isso acontece, não
necessariamente uma crise se instala no País. O sistema de freios e contrapesos
opera por meio de um conjunto bem definido de regras objetivas, previstas no
ordenamento jurídico, mas não só. O debate público entre autoridades, por mais
acalorado que seja, e a disputa pelo poder de influenciar a opinião pública
também são mecanismos legítimos à disposição dos representantes do Executivo,
do Legislativo e do Judiciário para fazer valer suas posições e interesses.
Como bem notou o cientista político Carlos Pereira em sua coluna neste jornal,
publicada no dia 2 passado, esse é um “conflito virtuoso” na medida em que “não
permite que nenhuma força política consiga, sozinha, ser majoritária”.
Evidentemente, esse embate será normal, até
esperado, desde que travado nos exatos termos estabelecidos pela Constituição.
Vale dizer, tudo pode ser objeto de debate, até mesmo os limites de atuação do
STF, como o Congresso tem se dedicado a discutir. O que é inaceitável é a
tentativa de interferência de um Poder no outro. Não só as instituições perdem
por si sós, mas o País perde quando o STF se imiscui em questões que devem ser
debatidas pela sociedade por meio de seus representantes eleitos; ou quando o
Congresso se lança numa cruzada revanchista contra a Corte.
Por exemplo: no fim de setembro, um grupo de
deputados apresentou à Mesa Diretora da Câmara a Proposta de Emenda à
Constituição (PEC) 50/2023, que inclui entre as competências exclusivas do
Congresso o poder de sustar, por maioria qualificada dos membros das duas Casas
Legislativas, “decisão do Supremo Tribunal Federal transitada em julgado que
extrapole os limites constitucionais”. O conteúdo da proposta é profundamente
equivocado, como se a política fosse a instância de interpretação do direito.
Não é.
Numa democracia, esse papel cabe ao
Judiciário.
Há outras medidas em discussão no Congresso
para, de alguma maneira, limitar o campo de atuação do STF, como a PEC que
institui mandato para os ministros da Corte ou a que restringe o alcance de
decisões monocráticas, esta já coberta pelo próprio regimento interno do STF. À
sua maneira, o presidente do STF fez bem ao recomendar prudência na discussão
dessa e de outras questões. “Não vejo com simpatia (o mandato para ministros do
STF), embora veja com todo respeito a vontade de discutir esse tema”, disse
Luís Roberto Barroso, lembrando que o Supremo, como os outros dois Poderes, é
parte legítima nesse debate e, portanto, deve ser ouvido.
Não há democracia sem um Judiciário livre e
independente; e não há paz social quando o Judiciário não é visto e respeitado
pelos cidadãos como a instância para a resolução pacífica de conflitos. De
igual forma, não há que se falar em democracia quando o Congresso é alijado da
apreciação de temas que, fundamentalmente, devem ser decididos pelos
parlamentares como legítimos representantes da sociedade e da Federação.
A saída para quaisquer desses impasses,
presentes ou vindouros, não é outra senão a Constituição – em particular a
autocontenção dos Poderes. O STF não deve se imiscuir em temas próprios da
política, temas sobre os quais cabe aos cidadãos decidirem. E o Congresso, à
guisa de reação, não pode abusar de seu legítimo direito de tratar desses temas
adentrando o terreno da vendeta.
Um Nobel para valorizar as mulheres
O Estado de S. Paulo
Estudos de Claudia Goldin sobre as raízes das
desigualdades entre homens e mulheres no mercado de trabalho apontam caminhos
para elevar presença feminina e equiparar salários
A economista Claudia Goldin, de 77 anos,
recebeu o Prêmio Nobel de Economia nesta semana. Professora titular da
Universidade Harvard, ela é autora de várias pesquisas que trouxeram luz a
questões sobre a participação das mulheres no mercado de trabalho e a
disparidade de renda entre trabalhadores e trabalhadoras. Em busca de suas
causas, as desigualdades foram escrutinadas pela pesquisadora com dados sobre o
mercado de trabalho norte-americano ao longo de um período de mais de 200 anos.
Suas descobertas revelaram que, ao contrário
do que se esperava, a participação feminina no mercado de trabalho não seguiu
uma evolução contínua e ascendente, mas partiu de uma base elevada no começo do
século 19, refluiu até o início do século 20 e só depois voltou a crescer de
forma mais consistente.
Na Filadélfia do fim do século 18, quase 60%
das mulheres casadas trabalhavam em casa, na agricultura ou em indústrias
artesanais – não por aspirações profissionais, mas para complementar a renda
familiar. O quadro mudou quando a região se tornou parte do chamado “cinturão da
ferrugem” nos EUA, nos séculos 19 e 20. Como se sabe, longas jornadas de
trabalho ininterruptas em fábricas dificultam, quando não inviabilizam, o
cumprimento de tarefas domésticas e familiares.
O crescimento da relevância do setor de
serviços na economia reverteu parcialmente esse cenário. Legislações que
proibiam mulheres casadas de trabalhar fora foram derrubadas, ampliando a
participação de trabalhadoras em escritórios e escolas. No entanto, ao mesmo
tempo que a presença de mulheres no mercado de trabalho aumentava, as
diferenças salariais mais que dobraram, destacou a economista.
Segundo Goldin, isso se deve ao fato de que a
maioria das empresas continuou a preferir a remuneração por salários mensais em
detrimento dos pagamentos por tarefa. O modelo tende a recompensar quem
permanece mais tempo na mesma companhia e mais horas no trabalho, o que é
sempre mais desafiador para mulheres com filhos.
Ao abordar o impacto de papéis sociais como
casamento e maternidade na vida das mulheres, os estudos da economista
mostraram a revolução que o advento da pílula anticoncepcional e o acesso a
eletrodomésticos, nas décadas de 1960 e 1970, representaram na construção da
identidade feminina.
Ter controle sobre o planejamento familiar e
gastar menos horas nas tarefas de casa garantiu a elas o tempo necessário para
se dedicar a estudos e trabalhos que alavancaram suas trajetórias profissionais
e seus salários. Porém, até hoje, mulheres mais escolarizadas e qualificadas
raramente alcançam a remuneração paga a homens que cumprem a mesma função.
Os estudos de Goldin são ouro para
formuladores de políticas públicas. Eles evidenciam a importância de leis e
regras que protejam as mulheres, combatam a discriminação nas empresas,
derrubem barreiras de acesso e criem um ambiente mais favorável ao retorno ao
mercado de trabalho após a gravidez. Até agora, as medidas não têm sido
suficientes para reduzir as desigualdades. Após o nascimento do primeiro filho,
as diferenças salariais se acentuam ainda mais, segundo a economista.
Há muito a ser feito. Como Goldin destaca,
trabalhos híbridos, com horários flexíveis, talvez sejam um dos únicos legados
positivos da pandemia de covid-19. Isso pode fazer toda a diferença entre
continuar em um emprego ou abandoná-lo por absoluta incompatibilidade com as
tarefas de uma mãe de filhos pequenos.
Preservar o trabalho remoto e adotálo também
em setores com remuneração historicamente mais elevada, como o mundo
corporativo, o universo jurídico e o mercado financeiro, é um caminho para
fomentar a equidade. Do contrário, restará às mulheres continuar a “escolher”
faculdades e profissões associadas a salários menores, como sugerem estudos
felizmente não laureados com o Prêmio Nobel.
Além de políticas públicas, é fundamental que
os homens assumam responsabilidades como parceiros também dentro de casa.
“Nunca teremos igualdade de gênero até que tenhamos igualdade entre os casais”,
afirmou Goldin – que foi apenas a terceira mulher a levar o Nobel de Economia,
entre 93 premiados.
Uma operação complexa
O Estado de S. Paulo
Repatriação de brasileiros de Israel e de
Gaza dependerá da dinâmica movediça do conflito
O Brasil reagiu com presteza diante do brutal
ataque do Hamas a civis em Israel, iniciado no último sábado, ao priorizar o
resgate de seus nacionais. Nada menos do que isso seria esperado dos
Ministérios das Relações Exteriores e da Defesa, experientes na complexa tarefa
de repatriar brasileiros pegos de surpresa em zonas de guerra. A descomunal
violência do grupo terrorista atingiu diretamente o País com a morte de dois de
seus cidadãos, durante um festival de música, e a incerteza sobre o destino de
outro, ainda desaparecido. A obrigação mínima do Estado brasileiro é resgatar
os seus.
O êxito do Brasil no passado denota o elevado
grau de profissionalismo de militares e diplomatas no planejamento e execução
de operações similares que, como a atual, envolveram altos riscos tanto aos
resgatados como às equipes envolvidas. A retirada bem-sucedida de cerca de
3.000 brasileiros do Vale do Bekaa, no Líbano, durante o conflito entre o grupo
extremista Hezbollah e Israel em 2006 deixou como legado a adaptação dos planos
originais a mudanças repentinas causadas pelo acirramento da violência no
terreno. Tal experiência foi valiosa para o resgate, em março de 2022, de 42
brasileiros e 26 estrangeiros surpreendidos pela invasão militar da Rússia à
Ucrânia.
O primeiro dos seis aviões escalados pela
Força Aérea Brasileira (FAB) para a operação de resgate decolou de Israel com
211 brasileiros a bordo ontem. A expectativa do Itamaraty e da Força Aérea
Brasileira é repatriar os 2.300 cidadãos residentes no Brasil que solicitaram o
retorno, sobretudo turistas cujos voos foram suspensos pelas companhias aéreas.
As estimativas atestam ser esta uma das maiores missões de resgate executadas
pelo País. Como nas anteriores, porém, exigirá atualização em tempo real em
função dos riscos no terreno e de novas ameaças latentes.
Na Faixa de Gaza, cerca de 30 brasileiros
aguardam negociações diplomáticas mais complexas, sobretudo em um Conselho de
Segurança das Nações Unidas inerte diante de emergências. Por certo, uma
eventual autorização para cidadãos brasileiros e de outros países cruzarem a
única saída do território palestino – a fronteira com o Egito – dependerá do
tirânico Hamas e de fatores de segurança elencados por Israel. Tais obstáculos
não podem limitar a pressão do Itamaraty e da comunidade internacional em prol
desse salvo-conduto de caráter humanitário.
A extensão da atual missão dependerá da dinâmica movediça do conflito. O potencial recrudescimento da violência afetará, sem distinção, os cerca de 14 mil brasileiros que vivem em Israel e os 6.000 moradores da Faixa de Gaza. O governo Lula da Silva haverá de considerar o desdobramento de seus esforços, mesmo sob riscos crescentes, para fazer chegar assistência humanitária a essas comunidades. Em última instância, para a remoção de todos. Nenhum brasileiro deve ser desamparado em zona de guerra. Muito menos, deixado para trás.
É preciso aprovar as medidas econômicas
Correio Braziliense
O cenário adverso no mundo requer serenidade
por parte do governo, mas exige também maior rigor com os gastos públicos e
eficiência na arrecadação de impostos
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, está
certo ao cobrar a aprovação de medidas que possam ajudar o Brasil a enfrentar
um ambiente externo mais adverso, com guerras elevando os preços do petróleo e
pressionando a inflação, o que leva os Bancos Centrais dos Estados Unidos e da
Europa a manterem o ciclo de alta das taxas de juros. O apelo, que envolve a
aprovação da reforma tributária no Senado e medidas como o projeto de lei que
taxa fundos offshore e fundos exclusivos e o de taxação das grandes fortunas,
em tramitação na Câmara, podem ajudar a blindar o Brasil das intempéries
externas. As medidas são necessárias para assegurar recursos ao governo para
fazer frente aos desembolsos com educação, saúde e segurança pública, sempre
áreas que são afetadas pelo menor sinal de crise. É preciso quebrar esse
círculo vicioso.
Não se quer dizer com isso que o governo pode
gastar sem controle. É preciso manter o equilíbrio fiscal, ao qual se chega não
apenas com corte de gastos, mas com mecanismos de incremento da receita. E as
medidas representam muito mais a correção de distorções fiscais em benefício de
uma camada em detrimento da maioria dos contribuintes. O temor do mercado
financeiro é sempre de que os gastos do governo impactam as contas públicas,
mas é preciso cobrar do Congresso Nacional a votação da agenda econômica que
pode, sim, fazer face aos desafios sociais do Brasil, país que ainda convive
com uma desigualdade abissal.
Os recursos da tributação sobre grandes
fortunas, prevista no artigo 153 da Constituição Federal, assim como a
tributação dos fundos, podem gerar uma receita superior a R$ 40 bilhões e fazer
face a investimentos do governo no Minha casa, minha vida ou nos programas de
distribuição de renda, como o Bolsa-Família. Embora nunca seja agradável uma
mordida do fisco sobre recursos antes não tributados, é preciso lembrar que no
passado recente, mais precisamente em janeiro de 1998, no governo Fernando
Henrique Cardoso, a alíquota máxima do Imposto de Renda da Pessoa Física foi
elevada de 25% para 27,5%. Na época, a classe média pagou a conta do ajuste
necessário para o país enfrentar a crise dos “tigres asiáticos”, entre eles a
Coreia do Sul.
O cenário adverso no mundo nos próximos meses
requer serenidade por parte do governo, como prometeu o ministro Fernando
Haddad, mas exige também maior rigor com os gastos públicos e também maior
eficiência na arrecadação de impostos. E nesse caso a conta é simples e o
próprio governo tem os cálculos. A ministra do Planejamento e Orçamento, Simone
Tebet, já estimou que o combate à sonegação fiscal pode render receitas de mais
de R$ 120 bilhões ao ano. Isso significa que, enquanto parte da sociedade tem
seu orçamento estrangulado com a alta carga de impostos, outra parcela dribla a
exigência fiscal, afetando a concorrência e a produtividade da economia
brasileira.
Com reservas cambiais elevadas e de mais de US$ 300 bilhões e um superávit comercial que chega a US$ 71,309 bilhões até setembro, o Brasil está hoje menos exposto a crises internacionais. Na atual, a apreensão é de que o Federal Reserve – Banco Central dos Estados Unidos – possa elevar novamente a taxa de juros, o que os colocaria no maior patamar em mais de 20 anos, pressionando para cima a cotação do dólar. Essa pressão sobre o câmbio, se for contínua e prolongada, exigirá que o BC brasileiro mantenha a taxa de juros em patamar elevado, podendo interromper os cortes de 0,5 ponto percentual e frustrando a expectativa de um aumento do consumo no fim do ano e consequente aceleração da atividade econômica.
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