O Estado de S. Paulo
Ao silenciar sobre o Hamas parte da esquerda esquece o compromisso com a democracia
O jornalista Robert Fisk contou certa vez que
seus vizinhos em Beirute, palestinos refugiados, mostraram-lhe a chave da casa
que outrora tiveram em Haifa, em Israel. O imóvel era então ocupado por judeus
nascido em Chzarnow, na Polônia. Por sua vez, a casa polonesa dos israelenses
era habitada por uma mulher repatriada de Lemberg, na Ucrânia, após a cidade
passar para a União Soviética.
Quem culpa só o “colonialismo britânico ou o sionismo” pela crise em Gaza parece esquecer os acontecimentos da Mitteleuropa, na 2.ª Guerra, e o Holocausto. Tudo se resumiria às origens ilegítimas do poder? Como observou Slavoj Zizek, a ideia de um “crime fundador” sobre o qual os Estados se baseiam seria acobertada por nobres mentiras a respeito da origem heroica das nações. “O infortúnio de Israel é ter-se estabelecido como Estado-nação com um ou dois séculos de atraso, em condições nas quais os crimes fundadores deixaram de ser aceitáveis.”
A aparente antinomia que torna possível
defender convincentemente as causas da Palestina e de Israel desaparece quando
surge o terrorismo. Não só pelo imperativo da condenação à violência na
política, mas em razão da característica do terror, que está além da discussão
sobre opressores e oprimidos.
Michael Walzer assim definiu o terrorismo: “A
aleatoriedade é característica crucial da atividade terrorista”. Para que o
medo se espalhe, ele deve matar não só autoridades e soldados. A morte precisa
chegar a qualquer indivíduo para que todos se sintam expostos e exijam que seus
governos negociem. Eis o plano e a lógica do Hamas.
Ao silenciar sobre esse método, parte da
esquerda no Brasil esqueceu até a lição de Lenin sobre os
socialistas-revolucionários: “Ao incluírem o terrorismo no seu programa e o
defenderem como um meio de luta política, estão causando os mais terríveis e
sérios danos ao movimento, destruindo os laços indissolúveis entre o trabalho
socialista e a massa”. Prefere-se Frantz Fanon e sua “violência libertadora do
colonizado”. Fanon queria o direito à retaliação.
Nos anos 1970, as Brigadas Vermelhas na
Itália atacavam os capatazes das fábricas. Atiravam nas pernas de quem os
“oprimia”. Chamavam a isso de gambizzare, algo como “pernalizar”. Os
brigadistas diziam colpirne uno per educarne cento, atingir um para educar uma
centena. Enrico Berlinguer, então secretário do PCI, ao saber do sequestro de
Aldo Moro fez o partido comunista dar o voto de confiança ao governo do
democrata-cristão Giulio Andreotti. Não cedeu ao terror. Em um mundo multipolar
é preciso um novo compromisso histórico pela democracia. E repudiar claramente
o terror e a sua violência.
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