Qualquer pessoa parece poder, a qualquer
momento, desistir de buscar saber sobre o que se passa, ou cansar de se conter,
deixar transbordar instintos obscuros e passar a vociferar e agir como
gladiador. Em “debates” viralizados em rede, o verbo torna-se veneno e lava. A
intervenção seguinte dobra a aposta antecedente na mobilização aguda de
ressentimentos estéreis. Usa-se emoções - autênticas ou encenadas, não importa
- como armas para abortar chances de um antagonista vir a ser interlocutor.
À medida em que relatos de atrocidades, com devido registro seletivo de algozes e vítimas, se repetem e entrelaçam, mais pessoas escolhem um lado e adensam a polarização entre “israelenses” e “palestinos”. Há escolhas por boa-fé, uma empatia desatenta, que não pergunta se o lado escolhido está realmente numa guerra movida por entes geopoliticamente situados ou se é ator e vítima de violência desregrada.
Mas também é comum escolhas serem feitas por
motivações que denunciam um epidêmico rebaixamento cognitivo e moral. Em
ambientes nos quais esse tipo de escolha prolifera, narrativas têm mais chance
de serem vistas como idôneas quando são feitas em tom de depoimento, a partir
de determinado “lugar de fala”, como se fosse preciso ter identidade individual
ou grupal de vítima para apreender o sentido da violência. Já o “estilo de
fala” mais crível para denunciar crimes e pedir justiça é aquele ocupado por retóricas
implacáveis. Pouca gente escapa do maniqueísmo que se alastra. A pessoa
prudente precisa beliscar-se todo dia para saber se ainda está em si ou se
rendeu-se e foi tragada.
Compartilhando esse sentimento de exaustão,
cedo e volto a tratar da santa pauta em cartaz, desde que possa negociar uma
zona neutra para continuar a fazer isso do ponto de vista profano da política.
Até quando será possível não sei, mas aproveito enquanto acho que dá. Peço
vênia a analistas e estudiosos de relações internacionais, pessoas que dedicam
anos a entendê-las. Sem ser uma delas, arrisco-me nessa praia, porque tão
pública tornou-se a questão que amadores são levados às teclas. Interpelações,
reptos, correções serão bem vindas, seja de quem tem lugar de fala legitimado
pelo conhecimento, seja de intelectuais e outras pessoas que buscam e emitem
luzes no breu, partindo de uma atitude moral. Por exemplo, já ia longe este
artigo quando me caíram na mão textos que, por razões distintas, fizeram-me
girar sobre meus próprios pensamentos. Citá-los não é adorno. É imperativo: “O
alcance do luto”, de Judith Butler (https://revistarosa.com/8/israel-palestina/o-alcance-do-luto)
e “Da Guerra dos seis dias à guerra das seis frentes em Israel”, de Thomas
Friedman (Estadão/Internacional, 26.10.23).
Agradecendo as luzes que essas duas leituras
acrescentaram, começo minha esgrima por pontuar que violências odiosas contra
cidades e populações civis em Gaza não partem apenas de Israel. Cabe à sua
política estatal grande parte da responsabilidade por elas e também pela
extensão da violência à Cisjordânia, onde, ao contrário de em Gaza, existe e
está em vigor uma autoridade política palestina reconhecida internacionalmente.
Mas, certamente ao menos em Gaza, não são desprezíveis também padecimentos
civis derivados do domínio fático do seu território por um grupo terrorista,
inimigo especifico de Israel, mas cuja gramática antipolítica é ameaça às
civilizações, quaisquer que sejam.
É preciso resistir a qualquer acusação
unilateral, porque não há metro legítimo para comparar as violências
recíprocas. Se cada ação de retaliação israelense que atinge a população
palestina é ou não “necessária” é uma discussão sem sentido porque as necessidades
alegadas não são só politicamente controversas. Também são moralmente
indefensáveis. O mesmo vale para vidas de israelenses, ceifadas sem piedade ou
aviso. Comparar é amoral e inútil, seja o cálculo político, ou
aritmético.
Pelo mesmo motivo é preciso moderar juízos de
caráter histórico num momento de se fazer parar uma violência atual. Antes de
ler o texto de Butler havia escrito “evitar”, não moderar. Ela me alertou para
implicações potencialmente obscuras de fuga prévia à contextualização, quando o
tema é violência. Embora perigosa, pela porta que pode abrir a relativizações
de fatos absolutos (como o ataque do Hamas em 7 de outubro), ela é
imprescindível para não relativizar valores. Por essa sugestão posso completar,
de maneira mais satisfatória, sem alterar seu sentido original, uma reflexão
que proponho sobre o discurso do secretário-geral da ONU, em 23.10, que ensejou
reação irada do governo de Israel.
Afirmar que palestinos vivem sob opressão há
décadas - ou há séculos, se o domínio otomano couber na noção de subordinação
política em que ainda vivem os palestinos, hoje atenuada porque há a ANP
(Autoridade Nacional Palestina) - não contribui imediatamente para desarmar
corpos e espíritos. Contra essa versão, Israel recorreria a argumento histórico
simétrico: desde seu primeiro dia de vida, o estado israelense, seu território
e população foram sendo invadidos e atacados por países árabes e/ou por grupos
terroristas. Ambas as acusações são verazes. A guerra de narrativas é parte do
impasse.
Risco talvez excessivo foi corrido no
discurso do secretário geral, tendo em vista a sua missão mediadora de uma
discussão, entre estados representantes de “nações unidas”, sobre como parar,
por razões humanitárias, um conflito entre um deles (Israel) e um grupo armado
que agrediu esse país. implicitamente, Guterres tratou o Hamas como ator
expressivo de outra nação implicada, no caso, a Palestina. E no manejo da
retórica deu lugar à interpretação de que admitia, ao menos em tese, conexão de
sentido entre o que seriam (do ponto de vista palestino) opressão continuada de
Israel e atos imediatos de violência criminosa de um grupo armado que declara
agir em nome desse ponto de vista.
Ainda que seja admitido como premissa, o
cativeiro palestino não justifica e também não explica de modo lógico o 7 de
outubro. Não haveria razão politicamente plausível para relativizar o ato do
Hamas, caso fosse essa a intenção de Guterres (e o conjunto do seu discurso
mostra que não foi), nem mesmo razão para contextualizá-lo, como parece ter
querido fazer. Igualmente, a agressão sofrida por Israel e seu direito legítimo
a defesa não justificam e também sequer explicam, logicamente, o cometimento,
na sequência, de crimes de guerra contra direitos humanos. Guterres rejeitou
corretamente essa segunda conexão de sentido que, se feita, relativizaria a
exorbitância e ilegalidade da retaliação israelense. Mas a rejeição foi ambígua
no caso da primeira, que “explicaria” o ataque do Hamas. Descuido retórico,
usado pela retórica belicista do governo israelense para denunciar parcialidade
do secretário-geral e, através da sua deslegitimação, desacreditar a ONU como
instância mediadora. No limite, mostrar a inviabilidade de mediação diplomática
e política numa situação que, a seu ver, só comportaria solução militar.
Detonada a crise, Guterres reafirmou sua
fala, já moderada por si mesma, mas inverteu as ênfases, para sanar qualquer
ambiguidade possível. Esse reenquadramento retórico faz sentido, porque faz
todo o sentido, para quem trabalha pela paz, apagar a fagulha de incêndio entre
Israel e a cúpula da ONU.
A expectativa de que uma recomposição possa
ocorrer é desqualificada tanto por extremismos - que, por princípio, descreem
da política - quanto por fatalismos de variados matizes que, por motivações
políticas também variadas, adotam, como diagnóstico, a inadequação, impotência,
inoperância, ou até mesmo perversão da ONU diante da “vontade de poder” de
governos extremistas ou dos estados com poder de veto. Esse tipo de juízo
pretensamente realista ganha ares de uma campanha imprudente de deslegitimação
da ONU. Flerta com um cenário de guerra sem freios entre estados nacionais
excitados, equivalente internacional à soberania sem freios de governos
despóticos sobres seus povos.
Vale convidar a duas reflexões. A primeira é:
se por vezes a ONU cede à pressão de potências ou da opinião pública e sai do
seu quadrado mediador, isso não lhe retira a condição de ser a mais legítima e
efetiva instância de entendimento multilateral que se tem à mão. A segunda é:
antes de falar de uma suposta ineficácia da ONU, deve-se pensar no que seria,
sem ela, o mundo atual, no qual a guerra está longe de ser o único desafio ou
flagelo a pedir cooperação internacional para ser enfrentado.
À ONU cabe exercitar o multilateralismo e o
seu secretário faz bem em não se desvencilhar da inclinação evidente da
diplomacia mundial, que hoje é francamente crítica da postura de Israel, como
foi francamente crítica do ataque do Hamas. Uma coisa é censurar e derrotar o
Hamas, tratando-o, inclusive, como grupo terrorista. Isso tem sido feito sem
tergiversação, no limite do que é possível fazer contra um grupo que não é um
estado e, não o sendo, passa ao largo de regras de conduta internacional que
incidem sobre estados, Israel incluído. Outra coisa é calar diante da tragédia
humanitária em Gaza. Se ela tem a ver (e tem) com a tática terrorista do Hamas
de usar populações civis como instrumentos de propaganda e como escudos humanos
na guerra, a tragédia está intimamente ligada, também, a métodos usados por
Israel na sua retaliação ao ataque do dia 7 e não só. Liga-se a uma política
contínua de ocupação colonial de território reservado, por acordo bilateral e
internacional, à Autoridade Nacional Palestina. Ora, se por definição não é
possível à ONU deter, com suas resoluções, o braço armado de extremistas que
lhe são alheios, é correto que busque deter aqueles que agem no âmbito de
estados nela organizados. Isso é condição para que as Nações Unidas possam travar
essa batalha, como comunidade internacional, sem dizer a Israel que se vire
sozinho. Até porque não se sabe o que uma extrema-direita religiosa ensandecida
pode fazer, se acuada, no governo solitário de um estado com acesso a armas
nucleares. Talvez nesse cenário de radical isolamento de Israel (que Biden
tenta evitar, mantendo, a custo político alto, o apoio dos EUA) não se pudesse
mais levantar (como hoje ainda se pode) argumento crível para diferenciar ações
violentas do estado israelense do terrorismo do Hamas.
A expectativa de uma reacomodação entre
Israel e a ONU é mais plausível (ou menos implausível) do que a da não-inflexão
da atual postura de Israel vir a ser a tônica de conduta dos vários atores. Por
mais que o governo israelense diga que não há ponderações de ordem política a
fazer nesse instante, elas são incontornáveis. Os interesses em defender ou
destruir Israel afetam, mas não resumem, o que está em jogo no mundo. Israel
tem contas a prestar à ONU e, se tenta ignorá-la, não consegue. Se assim o
fizesse pagaria preços que um Hamas, ou um seu equivalente, não precisa pagar.
A responsabilidade e a sustentabilidade, internas e externas, de um estado
político não pode ser comparada à de um grupo miliciano que controla um
território com armas, sem institucionalidade e movido por delírio
identitário.
Terrorismo é filho da negação de
instituições, subproduto da antipolítica. Além de ser deslealdade retórica, é
imprudente usar essa palavra em sentido lato, ou metafórico. Por mais
autoritário e violento que seja um estado, sua violência repousa sempre num
sentido de autoridade que não é puro arbítrio. Isso distingue melhor
civilizações de barbárie do que supor necessário caráter pacífico das
primeiras. Civilização é o território mental da regra na vida pública e,
também, o horizonte cosmopolita, oposto aos absolutos identitários. É o
horizonte de resgate, num processo sem prazo, da humanidade em nós como uma
unidade na diversidade. A ONU é isso e Israel é filho da ONU, assim como a
futura Palestina.
Oposição entre civilização e barbárie não é a
narrativa israelense tradicional e sim a que opõe agredido e agressores. É ela
que move o país para a guerra e é simétrica à dos estados árabes, aliás. Se o
governo de Israel, hoje abrigo e teto de fundamentalistas, veicula o argumento
da civilização, é porque esse governo quer, ou melhor, precisa segurar o apoio
do ocidente. Um apoio que está visivelmente em discussão nesse momento, se
reparamos no humor da opinião pública europeia e de “outros ocidentes”, como o
Brasil. Opinião que converge com a rejeição ao governo Netanyahu pela
pluralista e cosmopolita sociedade israelense, posição essa que vem sendo
comunicada ao mundo por pesquisas de opinião, por vozes de intelectuais e da
imprensa israelense. O que não se mostrou ainda é uma equivalente disposição da
sua elite política de acionar o sistema democrático para ejetar o extremismo do
governo.
É dentro desse quadro adverso aos senhores da
guerra que devem ser interpretados os arreganhos do governo israelense na cena
internacional e não como se fossem sinal de um poder de anular o
multilateralismo que a ONU representa e que o seu secretário-geral encarna.
Porém, o cessar-fogo sem um simultâneo compromisso internacional de derrotar e
desarmar o Hamas não é proposta realista porque esse cessar-fogo entre estados
tem valor estratégico para o Hamas, pode interessar ao Irã e à Rússia, mas não
pode ter, por razões óbvias, a concordância de Israel. Claro que um cessar-fogo
vale por si só, porque permite continuidade segura da ajuda humanitária, mas
ele não faria os palestinos de Gaza viverem em paz, porque não viverão em paz
enquanto o Hamas controlar o território. Até mesmo o ato de migrar para outro
lugar mais seguro (em si mesmo uma violência, se for ato compulsório) é difícil
de praticar porque os palestinos de Gaza são reféns e continuarão a sê-lo,
enquanto ali prevalecer o Hamas.
A esfinge é mais desafiadora porque a
destruição militar do Hamas não parece possível, por ora, sem uma carnificina
que, por si só, bastaria para afastar esse caminho e que, além disso, isolaria
Israel ainda mais e não impediria que o Irã fizesse renascer o grupo a partir
do dia seguinte. Para derrotar o Hamas, resta a política. Pelo que dizem
especialistas no assunto, isso passaria por certas condições, algumas delas
prévias: a queda de Netanyahu, a mudança na correlação de forças na política
interna norte-americana (na qual a competitividade da extrema-direita é fato),
um intermitente socorro humanitário aos palestinos, uma efetiva e sustentada
ajuda econômica à Autoridade Palestina e defesa internacional ampla da
legitimidade do Estado de Israel, ao lado da criação definitiva de um estado
palestino.
Como amarrar o guizo ao gato? Parte do
problema parece decorrer do progressivo afastamento dos EUA da ONU. Nas últimas
décadas, ou talvez desde o fim da competição com a antiga URSS, os EUA -
algumas vezes por causa de Israel, mas quase sempre por razões próprias - vêm
agindo à revelia do multilateralismo. Isso é muito ruim, mas agora que a
hipótese de um mundo unipolar se dissolveu, pelo novo papel da China, os EUA
voltam a precisar da ONU. Biden tem dificuldades para girar a chave na direção
de uma atitude multilateral e um dos fatores dessa inibição é Israel - não o
ente estatal, mas a política que ele passou a praticar fortemente há, pelo
menos, duas décadas.
Claro que não tem sentido tratar o povo judeu
como invasor na antiga Palestina, nem o estado de Israel como terrorista ou um
“estado de ocupação”, ainda que se possa e deva reconhecer e encerrar práticas
como tortura e encarceramento ilegal e ocupação dos territórios tomados à ANP.
Em Gaza e na Cisjordânia existe, sim, ocupação israelense que é ilegítima e
também ilegal, do ponto de vista dos próprios acordos que Israel assinou e
pelos quais cumpre à ONU zelar. A política de recolonização, levada a cabo desde
Ariel Sharon e com mais intensidade desde que a direita israelense se tornou
governo, é um desafio ao caminho de entendimento aberto em Oslo, em 1993, em
direção à paz. De lá pra cá surgiu o Hamas, é verdade, mas antes disso, o
extremismo oposto já havia assassinado Rabin.
Porém, uma vez adotada a tese de que o caso
de Israel é apenas de ocupação, vingança e desumanidade - nivelando-se ao Hamas
no comum objetivo de exterminar o povo inimigo - não haveria solução pacifica
possível. Racionalidade bilateral entre Israel e Hamas só pode ser a da guerra
a serviço desse instinto comum. Nesse caso, se o mundo quisesse acabar com essa
guerra teria que aderir a uma das partes e ajudá-la a remover a outra, ou então
adotar a solução “clássica” de formar uma aliança militar, ocupar e dividir o
território entre estados estrangeiros para obrigar os litigantes a fazerem a
paz pela rendição. Como isso não é possível sem detonar antes uma guerra
mundial, seria a paz dos cemitérios.
Existe alternativa a essa morte da política.
Apesar do instinto de vingança da sua extrema-direita religiosa, Israel é uma
democracia, à diferença da ordem antipolítica que subjuga os palestinos.
Israelenses podem mudar governos pelo voto e isso não é um mero detalhe.
A política do atual governo de Israel tem
raízes anteriores à hegemonia do Likud, partido de Netanyahu. Até onde pude
saber, foi coetânea à de Bush e com ela estabeleceu sintonia inaugural. Por
algum motivo (que admito desconhecer), sob Obama o quadro não se alterou o
bastante, embora fosse preciso. Agora é fundamental para Biden que a atitude de
Israel mude. Nesse sentido, a fala de Guterres tem uma propensão positiva a
reforçar a pressão de Biden sobre Netanyahu para que se desligue dos
extremistas que colocou no governo ou, caso não queira ou não possa fazer isso,
peça o boné, como deseja a maioria da sociedade israelense, que parece ter
compreendido que o Hamas só será derrotado quando mudar a política do governo
de Israel para uma linha que busque reverter seu relativo isolamento
internacional.
A linha não pode ser outra, senão retomar
entendimentos bilaterais entre Israel e ANP. Há quem argumente com a
"incapacidade" da ANP e da Fatah pós OLP de representarem a nação
palestina. Mas a ANP é a reconhecida representante palestina na ONU e quem põe
isso em dúvida faz o jogo do Hamas. Essa representação laica é legítima,
conforme regras internacionalmente fixadas. Problema é a relativa interdição do
exercício dessa representação pela ação de grupos religiosos extremistas e
armados.
Dito isso, é preciso considerar que Israel
também tem, obviamente, interesse em interditar aquela representação. Mas se
trata de motivações geopolíticas, discutíveis, censuráveis, mas de modo algum
equiparáveis ao tipo de interdição buscada pelo terrorismo. O papel de Israel é
comparável ao de vários estados árabes, igualmente hostis à autonomia nacional
palestina, desde 1948. Basta ver a conduta histórica da Jordânia, do Egito e do
não árabe Irã. É extensa a lista de adversários da ANP e maior ainda se acrescentarmos,
aos hostis, os indiferentes da região. Difícil encontrar um aliado ali. Aliados
da causa palestina encontram-se mais, a rigor, em sociedades e governos do tão
demonizado ocidente.
Faixas importantes do eleitorado
norte-americano trafegam em mão inversa, em descompasso com a opinião do centro
e da esquerda na Europa. A afinidade com o sentimento de insegurança nacional
que empoderou a extrema-direita em Israel parece contar ainda como fator de
força eleitoral para Trump. Esse ponto diz respeito diretamente a nós,
brasileiros e não pode ser subestimado. O pendor anti-imperialista da esquerda
latino-americana a faz brincar com fogo tratando o veto americano pró Israel
como indicador de belicismo e conivência com supremacismo. Não é. Em vez disso,
é agrura centrista.
O apoio americano a Israel é incondicional
apenas retoricamente. A política do presidente Biden no Oriente Médio tem sido,
desde antes do 7 de outubro, de pressão sobre o governo israelense para mudar
sua diretriz colonizadora, parar de ocupar a Cisjordânia e de pressionar Gaza e
para fazer acordos de paz com países árabes. O veto no Conselho de Segurança
não foi dado por afinidade política com o governo israelense. Ele tem alto
custo político externo para Biden, tem menos a ver com apoio incondicional e mais
com realismo doméstico e com o receio da influência do Irã no Oriente Médio. Um
receio, aliás, que também devemos compartilhar, assim como o da resiliência do
fator Trump nos EUA.
Quanto mais progressistas, mundo afora,
baterem injustamente em Biden, por causa de uma justa aversão à política
extremista do estado israelense, maior será a possibilidade de se afrouxar, à
esquerda, a aliança política que sustenta seu governo e mais ele dependerá, em
seu pais, de eleitores conservadores para espantar o fantasma da
extrema-direita que hoje é, do ponto de vista eleitoral, mais forte nos EUA do
que em Israel. É incerto se até as eleições norte-americanas do ano que vem o
desencanto israelense com a fórmula política de Netanyahu poderá produzir
antídotos para esse eleitorado conservador da América e liberar o presidente
para agir na ONU de um modo mais coerente com os princípios que tem afirmado. O
que se aprende com essas inseguranças, incertezas e ambiguidades todas é que
paz e democracia são horizontes sempre entrelaçados e hoje nublados pela vaga
da antipolítica. Convém pensar nisso sempre que o noticiário de guerra nos
induzir a pensar e agir como gladiadores. Na cena internacional, tanto quanto
na política interna brasileira, o centro moderado é, nesse tempo maniqueísta, o
preciso lugar onde se pode encontrar o melhor do humano em nós.
* Cientista político e professor da UFBa
Um comentário:
Longo e honesto, mas faltou reconhecer Israel como estado terrorista. Esteve perto, mas de forma contraditória evitou explicitamente. Faltou o quê?
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