Ajuste fiscal é a prioridade na Argentina
O Globo
Quem quer que vença o segundo turno precisará
angariar apoio para resgatar credibilidade do país
O segundo turno da eleição na Argentina, marcado para 19 de novembro, será decisivo não apenas para o país, mas para toda a América Latina. De um lado, o populista Javier Milei, ultraliberal antissistema que surpreendeu os argentinos ao vencer as primárias em agosto. Do outro, o peronista Sergio Massa, ministro da Economia de um país com inflação de quase 140%, dólar em disparada e dívida pública fora de controle, que também surpreendeu ao vencer o primeiro turno com 37% dos votos (Milei obteve 30%). Ambas as opções diante do eleitor argentino são ruins — mas são ruins de formas distintas.
Milei, frequentemente comparado a Donald Trump ou Jair
Bolsonaro, representa um risco institucional evidente. Demagogo,
histriônico, falastrão, defende o esvaziamento radical do Estado, com ideias
descabidas como dolarizar a economia ou fechar o Banco Central. Entrou nas
guerras culturais defendendo liberação de armas, restrição ao aborto e causas
do tipo. Aliou-se a revisionistas que pretendem reescrever a história da
ditadura argentina numa tentativa de redimir os militares. Também obteve apoio
da candidata da centro-direita derrotada no primeiro turno, Patricia Bullrich,
embora isso tenha efeito incerto no segundo. Como a maior parte das propostas
dele é inexequível, um eventual governo Milei seria uma incógnita, um mergulho
no desconhecido.
Massa, em contrapartida, é o conhecido.
Representa a tradição peronista que, por não reconhecer a existência de limites
aos recursos do Estado, levou a Argentina à bancarrota repetidas vezes. Nos 40
anos desde a redemocratização, seu partido ocupou a Casa Rosada em 28, dando
sucessivos calotes no Fundo Monetário Internacional (FMI).
Acordos com o fundo têm sido assinados e sistematicamente descumpridos pouco
depois.
A Argentina tem uma dívida de US$ 43 bilhões
com o FMI. Impagável. No plano fiscal, o Estado argentino é insustentável. Tem
apresentado rombos recorrentes nas contas públicas nas últimas décadas.
Diferentes avaliações estimam o déficit primário entre 2% e 5% do PIB. Só o pacote de
bondades que Massa distribuiu entre as primárias e o primeiro turno — com bônus
a aposentados, funcionalismo, beneficiários de programas sociais etc. — foi
avaliado em mais de 1% do PIB. Não é à toa que inflação e dólar não cedem.
Por qualquer ângulo que se olhe, o país está
quebrado e, a não ser que promova um ajuste fiscal robusto, despencará num
abismo. O único presidente peronista que pôs um mínimo de ordem nas contas
públicas foi Carlos Menem, nos anos 1990. No início deste século, elas ainda
estavam relativamente sadias. O principal responsável por deteriorá-las foi o
kirchnerismo. O interregno de Mauricio Macri entre 2015 e 2019 fracassou ao
renunciar à tentativa de resgatar o equilíbrio fiscal.
A desilusão na Argentina é tão grande que
tanto Massa quanto Milei podem vencer. Não seria impossível ao vitorioso
angariar apoio no Congresso para um programa sensato de ajuste. A estratégia já
foi usada por Menem para promover suas reformas liberais. Massa, ministro de
Fernández, é considerado uma voz da razão entre os peronistas e saiu como
favorito do primeiro turno. Embora sua vitória esteja longe de garantida, ela
lhe traria uma oportunidade de resgatar a credibilidade argentina e consertar o
estrago que seu próprio partido tem causado ao país.
Regulação de trabalho por aplicativo precisa
ser realista
O Globo
Nova legislação para atividade é necessária,
mas é um erro acreditar que a CLT pode ou deve inspirá-la
Há algum tempo se debate a natureza do
trabalho de motoristas e entregadores de aplicativos como Uber, iFood e
congêneres. Têm sido comuns jornadas exaustivas em cima de motos e bicicletas
ou dentro de carros, com remuneração quase sempre inferior à de quem tem
vínculo empregatício. Décadas atrás, sindicalistas defenderiam a simples
suspensão da nova modalidade de trabalho. Desta vez, o governo criou um grupo
com representantes das partes para elaborar regulamentação garantindo um mínimo
de direitos aos trabalhadores. Como não houve acordo, o Ministério do Trabalho
deverá encaminhar em breve sua proposta ao Congresso.
Excluindo os servidores públicos e os
militares, os brasileiros cuja renda principal é obtida com trabalho por
aplicativo já reúnem 2,4% da força de trabalho, ou 2,1 milhões, segundo estudo
da Unicamp e do Ministério Público do Trabalho com base na Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do IBGE. Desse total, 1,5 milhão
trabalham na prestação de serviços e 628 mil no comércio. A pesquisa constatou
que quem trabalha por aplicativo enfrenta jornada média de 46 horas semanais,
ante 39,5 horas dos demais trabalhadores. Ainda assim, ganha 37% menos do que
quem exerce a mesma função fora dos aplicativos. Apesar de, segundo a pesquisa,
61,3% terem ensino médio completo ou superior incompleto.
É verdade que há diferença substancial entre
a remuneração de um emprego com carteira assinada, dentro das regras da
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), e o trabalho por aplicativo. Mas a
pesquisa também constatou que a renda média mensal dos trabalhadores por
aplicativos (R$ 2.645) é 5,4% superior à do restante da população ocupada (R$
2.510). As jornadas de trabalho mais longas podem explicar parte da diferença.
O tamanho alcançado por esse mercado de
trabalho, cuja tendência é crescer, aconselha uma abordagem técnica e realista
da questão. Há necessidade de garantir acesso à Previdência e o cumprimento de
regras mínimas para segurança e saúde dos trabalhadores. Mas seria precipitado
concluir que a maioria recorre aos aplicativos porque não encontra emprego
noutras atividades. Uma característica desse mercado, a informalidade na
relação de emprego, atende a quem deseja definir seu próprio horário de
trabalho. Ou quer diversificar atividades sem horário fixo e compromisso com a
figura convencional do “patrão”. Por isso seria um erro acreditar que a CLT,
com seus pesados encargos, traz inspiração para a regulação. É essencial
preservar a flexibilidade garantida pelos aplicativos — tanto às empresas
quanto aos trabalhadores.
Não faz sentido demonizar tecnologias que
criam novos mercados ou ajudam a melhorar a qualidade de serviços. Diante da
inexorabilidade da digitalização, o mais indicado é, levando em conta a posição
das partes envolvidas, o governo definir regras de acesso a aposentadoria e
seguridade social para esses milhões de trabalhadores —e levá-las a debate no
Congresso.
Lula sabota o país
Folha de S. Paulo
Ao largar meta de déficit zero, presidente
cria problemas e força alta dos juros
O ministro Fernando Haddad (Fazenda) tem
trabalhado para conter o crescimento de déficit e dívida do governo. Ocupa-se
de convencer o Congresso a aprovar aumentos de impostos e de evitar que os
parlamentares explodam bombas que abram mais buracos no casco do navio fiscal.
Além disso, tenta evitar que seus colegas de ministério contribuam para a
detonação.
Haddad talvez não imaginasse que o próprio
presidente da República disparasse um torpedo contra o projeto já
não muito rigoroso de estabilização das contas públicas.
Luiz Inácio Lula da Silva (PT) parecia mais
contido e baixara o tom e o número de declarações que, desde a eleição,
contribuíram para a alta das taxas de juros. Nesta sexta (27), porém, decidiu
perturbar seu governo e o país.
Em resumo, disse que sua gestão não chegará à
meta de déficit primário zero em 2024, o que é opinião quase geral. Mas Lula
afirmou que, entre outros motivos, a meta não
será cumprida pois não haverá cortes "em investimentos e obras".
Para piorar o estrago e demonstrar seu
desconhecimento do problema, disse ainda que "o mercado é ganancioso
demais e fica cobrando uma meta que eles sabem que não vai ser cumprida".
Trata-se de fantasia e desinformação
deliberada. Recusar mais déficit não é ganância; ganância com ganhos para os
mais ricos haverá com crescimento do déficit. O governo federal terá de
expandir a tomada de empréstimos a taxas elevadas —até mesmo por esse tipo de
declaração do presidente.
Os parlamentares, indiferentes ao destino do
país e certamente despreocupados com um fracasso do governo, têm proposto,
pautado ou aprovado leis para aumentar a despesa ou reduzir a receita.
Colocam, ou pretendem colocar, na conta
federal gastos com servidores estaduais. Prorrogam desonerações para empresas
ou benefícios regionais. Querem novos tipos de emendas de pagamento
obrigatório. A fala de Lula se junta a esse ímpeto parlamentar destrutivo.
O presidente parece se comportar como um
prefeito desinformado ou um deputado paroquial, para quem governar é inaugurar
obras, sem se importar com consequências. Ademais, ainda não parece ter
aprendido o efeito pernicioso desse tipo de declaração: governo e país pagarão
juros mais altos; a confiança econômica diminuirá.
De fato, fazer com que receita e despesa se
equilibrem no ano que vem, o déficit zero, será difícil. Desprezar uma meta
necessária e definida em projeto de lei, porém, cria e antecipa problemas.
Que fique claro: Lula não está propondo um
programa econômico controverso, está sabotando o próprio governo. Além de
danoso, é incompreensível.
Tratamento desigual
Folha de S. Paulo
Urge agilizar diagnóstico e tratamento para
elevar sobrevida de pacientes no SUS
A lei 12.732 de 2012 estipula que o
tratamento de pacientes com câncer no sistema público de saúde deve ter início
até no máximo 60 dias após o diagnóstico. A necessidade de se criar um diploma
com essa finalidade explicita um dos graves gargalos do SUS.
Segundo o Ministério da Saúde, em 2022, 59%
dos enfermos oncológicos da rede pública não conseguiram iniciar tratamento no
prazo.
O resultado desse atraso foi constatado em
pesquisa brasileira apresentada neste ano na conferência da Sociedade Americana
de Oncologia Clínica: pacientes com neoplasia maligna tratados no SUS vivem
menos do que aqueles que recebem cuidados na rede privada.
O estudo analisou casos de 132 mil pacientes
com 17 tipos de câncer mais comuns em 19 hospitais do Rio Grande do Sul e
verificou que, em 13
variedades da enfermidade, o índice de sobrevida dos doentes no sistema público
foi menor.
O câncer de tireoide apresentou maior
discrepância, com sobrevida 326% menor do que na rede suplementar, seguido pelo
de boca (66%) e de estômago (60%).
Além da demora no início do tratamento, outro
fator de risco é o diagnóstico tardio. De acordo com o estudo, 81,5% daqueles
tratados pelo SUS receberam verificação no estágio 4 do câncer, o mais
avançado, ante 51% na rede privada.
Também há precariedade no rastreamento, que
visa encontrar o câncer pré-clínico com exames de rotina em população-alvo sem
sintomas. É o que ocorre, por determinação legal de 2008, com exames para
câncer cervical e de mama. Deve-se expandir o rastreamento para outras
variedades da doença.
Outro entrave é a demora na incorporação de
novas drogas pelo sistema público. O caso
de três remédios inovadores contra o câncer de mama é um exemplo.
Há cerca de dois anos, o Conitec, órgão que
avalia drogas e tecnologias a serem incluídas no SUS, aprovou medicamentos que
aumentam a sobrevida de pacientes, mas, até julho, apenas mulheres com planos
particulares tinham acesso.
O Ministério da Saúde informou que pretende
melhorar a situação com 82 obras incluídas no Novo PAC (Programa de Aceleração
do Crescimento), que ampliarão os serviços de radioterapia.
Contudo, não se trata apenas de uma questão de infraestrutura. No curto prazo, é urgente alocar recursos com inteligência, priorizando áreas sensíveis, e destravar a burocracia. Afinal, há vidas em jogo.
O que Lira quer, Lira consegue
O Estado de S. Paulo
Há pouca gente ingênua o bastante no País
para achar que o interesse do presidente da Câmara na Caixa e em outros órgãos
federais está remotamente associado ao melhor interesse público
O presidente Lula da Silva, mais uma vez, não
conseguiu ou não quis se esquivar da cobiça do Centrão, em particular do
presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), por recursos e cargos federais. Ao
que parece, cedo ou tarde, o que Lira quer, Lira consegue, o que revela uma
relação totalmente desequilibrada entre o Legislativo e o Executivo. Até
quando? A pergunta, claro, é retórica. Enquanto Lira estiver aboletado na
cadeira de presidente da Câmara e, portanto, detiver o poder de definir o rumo
da agenda legislativa, é assim que a banda tocará em Brasília.
O alvo da vez foi a presidente da Caixa, Rita
Serrano, tida como uma profissional da cota pessoal de Lula. Se esse foi o
destino de alguém tão ligado ao presidente da República, outros sem essa
proximidade, por mais competentes que sejam, devem se preparar para o pior.
Ademais, a demissão da sra. Serrano, a terceira mulher sacrificada por Lula no
altar de suas conveniências políticas, revela de uma vez por todas que a
paridade de gênero tão vocalizada pelo petista durante a campanha não tinha
nada de política pública séria; era só oportunismo eleitoral.
O Centrão não parará por aí. A demanda da
hora é toda a direção da Caixa, não só a presidência do banco. Mas amanhã será
outra. Eis a dimensão do problema que Lula tem de resolver, pressupondo-se, é
claro, que o presidente esteja disposto a isso. Não há no horizonte próximo,
isto é, até o fim do mandato de Lira à frente da Câmara, uma linha de corte que
se possa vislumbrar como um ponto de equilíbrio nessa relação entre o
Legislativo e o Executivo, que não raro chega às raias da chantagem. Não haverá
um momento em que o Centrão dar-se-á por satisfeito e, enfim, passará a
entregar os votos de que o governo precisa para aprovar projetos de seu
interesse sem mais nada em troca.
É verdade que, tão logo foi anunciado o nome
do preposto de Lira no comando da Caixa, Carlos Antônio Vieira Fernandes, a
Câmara aprovou por folgado placar (323 a 119) o projeto de tributação dos
fundos offshore, uma das medidas que o governo considera essenciais para a
condução de sua política econômica. Outras matérias importantes, para o governo
e para o País, como o arcabouço fiscal e a reforma tributária, também foram
aprovadas pelos deputados. Porém, cada aprovação exigiu esforços pontuais do
governo. Novas votações, portanto, implicarão novas barganhas, só não se sabem
quais.
A razão para esse estado lamentável do que um
dia já foi classificado como “presidencialismo de coalizão”, por pior que seja
para o País, é relativamente simples de ser entendida: não há um projeto
estratégico para o País que una o governo e o Congresso em pontos de consenso
sobre os quais dar-se-iam as trocas republicanas entre o Executivo e os
parlamentares. Assim são formadas coalizões de governo democráticas,
republicanas.
Nada há de imoral na troca de cargos e na
abertura de acesso a recursos do Orçamento, em particular por meio de emendas
parlamentares, em troca da chamada governabilidade se essa relação não se
desvia do interesse público. No entanto, há pouca gente ingênua o bastante no
País para achar que todo esse interesse de Lira e seu grupo político em
abarrotar de aliados a Caixa, alguns Ministérios, agências reguladoras e a
Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba
(Codevasf), entre outros órgãos federais, tem alguma coisa remotamente
associada ao melhor interesse público. Ora, tudo faz parte de um sistema muito
bem montado e gerido para usar essas posições na administração pública como
meio de obtenção de poder e recursos financeiros, e não necessariamente para
corrupção.
A manipulação eleitoral desses ativos,
valiosíssimos, tende a favorecer os que já detêm mandato eletivo, perpetuando
os membros do grupo no poder, o que retroalimenta uma engrenagem que se revela
como um fim em si mesma. Quando o interesse nacional se coaduna com o interesse
desses cupins da República, muito bem; quando não, o País que se dane.
Nada além de respeito a contratos
O Estado de S. Paulo
Ao decidir que imóveis dados em garantia a
financiamentos podem ser retomados pelos bancos extrajudicialmente em caso de
inadimplência, STF segue a lei e garante segurança contratual
A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF)
que reconheceu a licitude da retomada extrajudicial de imóveis dados em
garantia a financiamentos bancários em caso de inadimplência nada mais é do que
a ratificação do respeito aos contratos. É o mínimo a esperar entre as partes
que celebram o fechamento de uma negociação. O STF apenas avalizou o que está
previsto em lei há 26 anos, quando foi criado o instrumento de alienação
fiduciária de imóveis para incentivar o avanço do crédito habitacional.
Por 8 votos a 2, a Corte decidiu não a favor
dos bancos ou contra os mutuários do Sistema Financeiro Imobiliário (SFI), mas
a favor da lei e da segurança jurídica dos contratos. A Lei 9.514/97 prevê a
livre pactuação do financiamento de imóveis entre instituições financeiras e
seus clientes e permite que o próprio bem seja utilizado como garantia de
pagamento da dívida. Ao minimizar o risco da operação para os credores, também
visa a reduzir juros e tornar economicamente mais vantajoso o financiamento para
os devedores.
Quando propuseram o projeto, durante o
governo Fernando Henrique Cardoso, os então ministros da Fazenda, Pedro Malan,
e do Planejamento, Antonio Kandir, destacaram que a experiência de crescimento
habitacional em diversos países estava intimamente ligada à existência de
garantias firmes de retorno dos recursos investidos. A alienação fiduciária
surgiu para suprir esta lacuna no mercado brasileiro. Até a dívida ser
totalmente quitada, o imóvel dado em garantia é propriedade do banco, mas pode
ser usado pelo mutuário.
Ao tornar incontestáveis acordos firmados,
forma-se no País uma orientação para abolir a cultura de quebra de contratos,
que tantas vezes torna mais difíceis, incertas e onerosas decisões de crédito e
de investimento. A lei prevê, sim, recursos judiciais para mutuários que se
sintam prejudicados, mas em casos de ilegalidade ou quaisquer abusos por parte
do agente financiador, não para contestações sobre taxas, prazos e garantias
que ambas as partes julgaram convenientes quando assinaram o contrato.
Assim, prevaleceu no julgamento o voto do
relator, ministro Luiz Fux, que observou justamente não estar afastada a
possibilidade de controle judicial caso se verifique alguma irregularidade. A
Justiça pode e deve ser acionada se for necessário proteger os direitos do
devedor em procedimentos que não tiveram seu consentimento. Foram votos
divergentes os ministros Edson Fachin e Cármen Lúcia. Fachin justificou seu
voto alegando que a execução extrajudicial da garantia não é compatível com a
proteção do direito de moradia. Mas o respeito ao contrato também é um direito
que, por ter sido acordado de forma consensual, num acerto legalmente válido,
deve se sobrepor aos demais.
O julgamento no STF ocorreu em atendimento ao
questionamento de um devedor que fez financiamento imobiliário pelo SFI, um
regime alternativo ao Sistema Financeiro de Habitação (SFH). A principal
diferença é que, enquanto o SFH utiliza recursos da poupança e do FGTS, o
capital usado no SFI provém das próprias instituições financeiras, embora
recentemente tenha sido liberado o uso do FGTS para contratos a partir de junho
de 2021.
Outro ponto que distingue os dois modelos é
que o SFH limita o valor dos imóveis a R$ 1,5 milhão, enquanto no SFI pode ser
concedido crédito para imóveis acima desse valor. De qualquer forma, os
ministros do Supremo também já haviam declarado a constitucionalidade da
retomada de imóveis inadimplentes do SFH.
De acordo com dados da Federação Brasileira
de Bancos (Febraban), 99% dos financiamentos bancários para aquisição de
imóveis preveem alienação fiduciária. Espera-se que a jurisprudência firmada
pelo STF, que não deixa dúvidas sobre a legalidade da execução em cartório, sem
necessidade de processo judicial, tenha reflexo também sobre as taxas de juros
cobradas atualmente, que variam de acordo com cada instituição, entre 9,6% e
12,3% ao ano. Afinal, além do risco reduzido na concessão do empréstimo, a dispensa
de execução judicial também torna os custos menores.
Cabulando aula
O Estado de S. Paulo
Faz bem a USP ao mandar marcar falta de
alunos que insistem numa greve que já acabou
A Universidade de São Paulo (USP) tomou
medida acertada diante da continuidade de uma minguada greve de estudantes,
cujo sentido se perdeu com os compromissos já assumidos pela reitoria. Ao
determinar a suas unidades a preservação do cronograma letivo do semestre até
22 de dezembro e ao desautorizar o abono integral das faltas dos discentes
durante a paralisação, a USP correspondeu à sua essência como instituição
pública de ensino zelosa de seus critérios de formação acadêmica e aos anseios
dos que a financiam, os contribuintes paulistas. Com complacência maternal,
ainda deixou aos estudantes ociosos a liberdade de escolha entre o retorno às
salas de aulas ou a correta reprovação.
Nada mais justo, levando-se em conta uma
greve descabida que se arrasta desde 20 de setembro. O dever mínimo de todos os
beneficiados pela educação gratuita na única universidade brasileira listada
entre as 100 melhores do mundo em dois rankings internacionais é a frequência a
70% da carga horária de cada disciplina. Ainda que, por benevolência, a
reitoria tenha adotado um cálculo mais flexível de faltas aos grevistas, os que
prosseguirem com a paralisação na semana que vem terão o semestre perdido – um
custo não só para eles, como também para a universidade.
Não surpreende que meia dúzia de estudantes
persista no caminho da intransigência mesmo depois que a reitoria atendeu à
maior parte das reivindicações. É uma turma que encontrou na “greve” o pretexto
ideal para cabular aula.
O grupo manteve sua tônica agressiva ao
invadir um prédio da Administração Central do campus do Butantã no último dia
26. Não há como apagar da memória da USP as barricadas levantadas para impedir
o acesso de colegas e professores às salas de aula em setembro – flagrante
desrespeito ao direito constitucional de ir e vir de todo cidadão, à
instituição e aos contribuintes. Não obstante, a reitoria rejeitou as hipóteses
de intervenção policial e de jubilação dos líderes.
Era legítima a pauta original de
reivindicações apresentada pelos estudantes, reiterada pela associação de
docentes da USP. Fazia sentido cobrar a contratação de novos professores para
ocupar as mais de 800 vagas em aberto nos últimos nove anos. E a reitoria deu
razão aos grevistas, assumindo o compromisso de realizar as necessárias
contratações, dentro das regras da universidade e dos pré-requisitos
acadêmicos.
Mas a coisa saiu do terreno do razoável. Os
grevistas, a cada nova exigência atendida, apresentavam uma nova, empilhando
reivindicações absurdas e demonstrando, com isso, que a greve havia se tornado
somente uma arma para constranger a direção da USP. Era a greve pela greve –
que agora só serve mesmo aos propósitos de quem nunca precisou de uma boa
desculpa para o gozo do ócio.
Nesse contexto, a USP fez valer sua respeitabilidade acadêmica ao enquadrar estudantes obcecados com uma greve sem sentido. A universidade precisa deixar claro que não tolerará quem confunde liberdade acadêmica e de manifestação com baderna e desrespeito aos colegas, aos professores e à instituição.
Valorizar e respeitar o servidor público
Correio Braziliense
Graças à atuação dos profissionais do Sistema
Único de Saúde (SUS), nosso país conseguiu controlar e conter a expansão da
pandemia, muitas vezes ao pôr em risco as próprias vidas.
Hoje é o dia dos servidores públicos, que
merecem ser enaltecidos por seus serviços prestados à sociedade. Sem eles, por
exemplo, não teríamos enfrentado a pandemia da covid-19 com o mesmo êxito,
diante de uma onda negacionista, cujo vértice era o próprio presidente da
República. Graças à atuação dos profissionais do Sistema Único de Saúde (SUS),
nosso país conseguiu controlar e conter a expansão da pandemia, muitas vezes ao
pôr em risco as próprias vidas.
Para se ter uma ideia do esforço heróico
feito pelos profissionais da saúde durante a pandemia, entre março de 2020 e
março de 2021, morreram 622 médicos, 200 enfermeiros e 470 técnicos e
auxiliares de enfermagem. O SUS atendeu 37,9 milhões de pessoas na pandemia,
das quais 706, 5 mil faleceram. Esse número poderia ter sido reduzido pela
metade se não houvesse atraso na compra de vacinas; e teria se multiplicado sem
a atuação do SUS.
O SUS é um exemplo de serviço público
dedicado, efetivamente, à população, essencial para a garantia do direito à
vida e à saúde. Apesar de todas as dificuldades e carência de recursos, atende
sobretudo àqueles setores que não contam com sistema de saúde privada. No caso
da vacinação, porém, seus serviços são universais, beneficiam pobres e ricos
igualmente.
Entretanto, nossas homenagens não são
destinadas apenas aos servidores que atuam na área fim da administração
pública, como é o caso do SUS. A existência de uma burocracia profissional,
qualificada e constituída por meio de concurso público, como determina a
Constituição federal de 1988, em todos os níveis da administração pública, é
uma conquista democrática que deve ser valorizada.
Os servidores públicos, às vezes, são
injustamente estigmatizados como privilegiados, preguiçosos e incompetentes,
por ineficiências administrativas cujas responsabilidades, na verdade, deveriam
ser procuradas na qualidade da gestão e da aplicação dos recursos públicos.
Eventuais desvios de conduta e inadequações ao serviço são corrigidos pelos
órgãos de controle, com base nos compromissos éticos assumidos por todos quando
ingressam na carreira pública.
São os servidores públicos que zelam pela
legitimidade dos meios utilizados na ação política. A ética da responsabilidade
é inerente à própria existência da burocracia de carreira. Basta ver a atuação
dos órgãos de controle e coerção do Estado no combate aos desvios de conduta e
inconformidades administrativas. Policiais federais, auditores fiscais,
procuradores e gestores públicos, no plano federal, por exemplo, são carreiras
reconhecidas pela alta competência de seus quadros e pelo estratégico desempenho
na defesa do interesse público e da moralidade.
A existência do Estado de direito democrático, para se legitimar perante a sociedade, não pode prescindir de uma burocracia qualificada e bem remunerada, que leve em conta os interesses da sociedade e preste serviços de qualidade. Por isso mesmo, os servidores públicos devem ser valorizados e respeitados por toda a sociedade, seja os de baixo da pirâmide social, seja os de cima.
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