sábado, 28 de outubro de 2023

Eduardo Affonso -O último de nós

O Globo

Os novos ‘progressistas’ e os novos ‘conservadores’ ainda não queimam pessoas, mas já acenderam suas fogueiras

Em artigo recente, João Pereira Coutinho convoca Sebastian Castellio, teólogo francês do século XVI, para falar da intolerância dos nossos tempos:

— Queimar uma pessoa não quer dizer defender uma doutrina, mas sim matar uma pessoa.

Meio milênio separa a Genebra calvinista, contra a qual se bateu Castellio, do Afeganistão talibã, do Irã dos aiatolás, da Coreia do Norte da dinastia Kim, da Faixa de Gaza sob a tirania do Hamas. Em todos esses lugares, pessoas são oprimidas — e mortas — a pretexto de uma fé ou ideologia (o que, no fim das contas, dá na mesma: é só uma escusa para os piores instintos de quem detém o poder).

Não é só ali que o obscurantismo faz vítimas. À direita e à esquerda — com métodos distintos e idêntico objetivo —, o Ocidente engatou marcha a ré e acelera para atropelar um dos seus pilares, o Iluminismo, quebrando-lhe as duas pernas: a liberdade e o uso da razão.

Os novos “progressistas” (em franco retrocesso) e os novos “conservadores” (para quem conservar implica desfazer) ainda não queimam pessoas, mas já acenderam suas fogueiras. E vão alimentando as chamas com livros, ideias, reputações.

Entre nós, o “conservadorismo” tenta reverter o direito ao aborto legal e ao casamento homoafetivo — e embarcou na contrarrevolução sexual, com um neopuritanismo que, sob o argumento de “proteger nossas crianças”, quer acabar com a ainda precária educação sexual nas escolas. Reprimido e repressor, busca o futuro no retrovisor, na moral vitoriana.

O “progressismo”, com o álibi das pautas identitárias, se empenha em moldar a linguagem e reescrever o passado — ou seja, controlar o pensamento e fraudar a História.

Impedir que, nas novelas, vilões ostentem sua vilania não tornará o mundo menos misógino, homofóbico, aporofóbico ou racista. Vai é desossar a dramaturgia. Uma nova Odete Roitman com papas na língua não fará deste país um lugar melhor, apenas formará telespectadores menos críticos — e mais propensos a mudar de canal.

“Ponderar” que todas as vidas importam — quando alguém lembra o descaso para com a vida de pessoas negras — não iguala em importância essas vidas, só esvazia a demanda por mais respeito àqueles cujos direitos vêm sendo menosprezados.

Coutinho deu a seu artigo o provocativo título de “Morte cerebral”. Penso noutra metáfora: o Cordyceps, fungo que, na série “The last of us”, infecta os humanos e, por meio de neurotoxinas, os transforma em zumbis. A morte do cérebro nos paralisa — o fungo, ao contrário, nos torna transmissores ativos da doença.

Aí estão os teleguiados (gente “de Humanas”...), arrancando cartazes de solidariedade a reféns e bebês sequestrados, fazendo postagens de ódio, insuflando novo ânimo ao ancestral antissemitismo — que os horrores do nazismo pareciam ter condenado ao repúdio universal.

A esquerda conseguiu a façanha de convencer mulheres, gays, lésbicas, trans e minorias étnicas — que se expressam livremente nas democracias — a apoiar regimes que não hesitariam em massacrá-los. A direita, fazer famílias sonharem em retornar a um modelo que só gerou neuroses e infelicidade.

Os Cordyceps estão aí — nas universidades, na imprensa, nas igrejas, nas redes sociais. Se não reagirmos, ainda escravizarão até o último de nós.

 

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