O Globo
Os novos ‘progressistas’ e os novos
‘conservadores’ ainda não queimam pessoas, mas já acenderam suas fogueiras
Em artigo recente, João Pereira Coutinho
convoca Sebastian Castellio, teólogo francês do século XVI, para falar da
intolerância dos nossos tempos:
— Queimar uma pessoa não quer dizer defender
uma doutrina, mas sim matar uma pessoa.
Meio milênio separa a Genebra calvinista, contra a qual se bateu Castellio, do Afeganistão talibã, do Irã dos aiatolás, da Coreia do Norte da dinastia Kim, da Faixa de Gaza sob a tirania do Hamas. Em todos esses lugares, pessoas são oprimidas — e mortas — a pretexto de uma fé ou ideologia (o que, no fim das contas, dá na mesma: é só uma escusa para os piores instintos de quem detém o poder).
Não é só ali que o obscurantismo faz vítimas.
À direita e à esquerda — com métodos distintos e idêntico objetivo —, o
Ocidente engatou marcha a ré e acelera para atropelar um dos seus pilares, o
Iluminismo, quebrando-lhe as duas pernas: a liberdade e o uso da razão.
Os novos “progressistas” (em franco
retrocesso) e os novos “conservadores” (para quem conservar implica desfazer)
ainda não queimam pessoas, mas já acenderam suas fogueiras. E vão alimentando
as chamas com livros, ideias, reputações.
Entre nós, o “conservadorismo” tenta reverter
o direito ao aborto legal e ao casamento homoafetivo — e embarcou na
contrarrevolução sexual, com um neopuritanismo que, sob o argumento de
“proteger nossas crianças”, quer acabar com a ainda precária educação sexual
nas escolas. Reprimido e repressor, busca o futuro no retrovisor, na moral
vitoriana.
O “progressismo”, com o álibi das pautas
identitárias, se empenha em moldar a linguagem e reescrever o passado — ou
seja, controlar o pensamento e fraudar a História.
Impedir que, nas novelas, vilões ostentem sua
vilania não tornará o mundo menos misógino, homofóbico, aporofóbico ou racista.
Vai é desossar a dramaturgia. Uma nova Odete Roitman com papas na língua não
fará deste país um lugar melhor, apenas formará telespectadores menos críticos
— e mais propensos a mudar de canal.
“Ponderar” que todas as vidas importam —
quando alguém lembra o descaso para com a vida de pessoas negras — não iguala
em importância essas vidas, só esvazia a demanda por mais respeito àqueles
cujos direitos vêm sendo menosprezados.
Coutinho deu a seu artigo o provocativo
título de “Morte cerebral”. Penso noutra metáfora: o Cordyceps, fungo que, na
série “The last of us”, infecta os humanos e, por meio de neurotoxinas, os
transforma em zumbis. A morte do cérebro nos paralisa — o fungo, ao contrário,
nos torna transmissores ativos da doença.
Aí estão os teleguiados (gente “de
Humanas”...), arrancando cartazes de solidariedade a reféns e bebês
sequestrados, fazendo postagens de ódio, insuflando novo ânimo ao ancestral
antissemitismo — que os horrores do nazismo pareciam ter condenado ao repúdio
universal.
A esquerda conseguiu a façanha de convencer
mulheres, gays, lésbicas, trans e minorias étnicas — que se expressam
livremente nas democracias — a apoiar regimes que não hesitariam em
massacrá-los. A direita, fazer famílias sonharem em retornar a um modelo que só
gerou neuroses e infelicidade.
Os Cordyceps estão aí — nas universidades, na
imprensa, nas igrejas, nas redes sociais. Se não reagirmos, ainda escravizarão
até o último de nós.
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