Espírito do Plano Real é inspiração para outros desafios
O Globo
Derrota da hiperinflação mostra que soluções
de problemas aparentemente intratáveis estão ao alcance do Brasil
O aniversário de 30 anos do Plano Real,
amanhã, prova que o Brasil, quando unido em torno de uma meta, tem plena
capacidade de superar a realidade mais adversa. A comemoração desmente a crença
derrotista, popular em alguns círculos, de que os avanços por aqui são de pouca
monta. Um exame do passado ensina que o maior dos problemas pode ser vencido se
houver clareza de propósito e determinação. É preciso resgatar o espírito que
animou o Real para encarar os desafios do futuro, independentemente da
dificuldade que aparentem. Seu maior legado é comprovar o poder das ideias e da
perseverança.
A nova moeda entrou em circulação em 1º de julho de 1994. Nos 12 meses anteriores, a inflação alcançara inacreditáveis 4.922%. Para as novas gerações, o número — mais de mil vezes o atual — pode soar abstrato. Na época, era bem concreto. A maioria dos assalariados, sem a proteção das aplicações financeiras, corria aos supermercados depois de receber, pois comida e itens básicos estariam mais caros no dia seguinte. Estocar alimentos era uma espécie de poupança. Passado o dia de pagamento, os varejistas ficavam vazios.
Usar cheques era comum depois das 16h. Com os
bancos fechados, o desconto só viria no dia seguinte, abrindo espaço para
ganhar uma vantagem extra na transação. Motoristas faziam fila em frente a
postos de gasolina antes das repetidas remarcações de preço. A falta de
referência de valor tornava difícil planejar a compra de imóveis e todo tipo de
investimento. Nas empresas, o planejamento era uma abstração. Isso derrubava o
crescimento da economia e a geração de empregos. No exterior, brasileiros eram
questionados sobre como era viver num lugar com hiperinflação. Éramos uma
atração bizarra.
Nada parecia dar conta do problema. Logo
depois da redemocratização, o Plano Cruzado apostara numa nova moeda e no
congelamento de preços. Fugaz e enganador. Ainda em 1986, foi anunciado o
Cruzado 2. Em seguida, viriam os planos Bresser (1987), Verão (1989), Collor 1
(1990) e Collor 2 (1991). Houve todo tipo de tentativa. Do aumento das taxas de
juros ao absurdo de confiscar os depósitos bancários. Em comum, todos deram
errado. A sensação de incapacidade para derrotar a alta cotidiana dos preços
era indiscriminada. A inflação parecia ser parte inseparável da cultura
nacional.
No governo Itamar Franco,
economistas escolhidos pelo então ministro da Fazenda, Fernando
Henrique Cardoso, enfim adotaram a estratégia certa para quebrar
esse passado. Antes do lançamento do real, foi criado um sistema de conversão,
a Unidade Real de Valor (URV). Enquanto esteve em vigor, foram necessários mais
e mais cruzeiros reais para atingir o valor de uma URV, mas esta se mantinha
estável, garantindo a ancoragem dos preços. Quando entrou em circulação, um
real valia uma URV, ou CR$ 2.750.
Mesmo adotando uma estratégia inovadora, o Plano Real dependeu do Congresso para dar certo. De lá para cá, a moeda erradicou a hiperinflação, passou por altos e baixos, mas se impôs. O principal reflexo positivo foi a melhora no poder de compra dos mais pobres, evidente quando se comparam os indicadores sociais. Olhando para a frente, não faltam problemas que parecem insolúveis. Da crise fiscal à educação, da saúde à segurança pública, é preciso resgatar o espírito inspirador do Plano Real. Se o país venceu a hiperinflação, pode dar conta do resto também.
Anúncio de novo estádio para o Flamengo é oportunismo eleitoral
O Globo
Melhor seria corrigir os erros que tornam a
concessão do Maracanã pouco lucrativa para os clubes
Soa como oportunismo eleitoral o empenho do
prefeito do Rio, Eduardo Paes (PSD),
pré-candidato à reeleição, para erguer o novo estádio do Flamengo no
terreno que abrigou o antigo gasômetro, na região portuária. Um decreto do
Executivo permitiu desapropriar o imóvel, abrindo caminho ao projeto
rubro-negro.
O Flamengo pretende construir lá uma arena
para 80 mil torcedores. O projeto não decolava por impasses na negociação com o
fundo administrado pela Caixa para investir na revitalização da área. Em ano
eleitoral, Paes decidiu agradar à maior torcida do Rio. Ele alega que o
empreendimento não erguerá apenas o estádio, mas também espaço de
entretenimento e centro de convenções. A bem-vinda recuperação da Zona
Portuária não implica, porém, a construção de outro estádio no Rio.
A despeito de interesses clubísticos e
eleitorais, a cidade não carece de novo estádio, ainda mais a apenas 3
quilômetros do Maracanã.
Está bem servida com os que tem. Palco das Copas de 1950 e 2014, dos Jogos
Pan-Americanos de 2007 e da Olimpíada de 2016, o Maracanã passou por uma
reforma de mais de R$ 1 bilhão para se adaptar ao padrão Fifa. Hoje comporta 80
mil torcedores. O Nilton Santos (Engenhão), administrado pelo Botafogo, recebeu
obras de R$ 52 milhões para se tornar um estádio olímpico para 45 mil pessoas.
Há ainda São Januário, que, pelo plano do Vasco, deverá ser reformado.
Com mais um estádio, o maior impacto recairá
sobre o Maracanã, um dos mais tradicionais do mundo. Propriedade do governo
estadual, ele hoje é administrado por Flamengo e Fluminense em
regime de concessão. O Flamengo tem dito que não o abandonará, mesmo com a nova
casa. Mas é improvável que erga uma estrutura orçada em R$ 2 bilhões para jogar
apenas de vez em quando. Dificilmente um único clube teria condições de manter
o Maracanã sozinho.
Como mostrou
reportagem do GLOBO, a manutenção do complexo é cara. Um dos
principais desafios da concessão tem sido torná-la economicamente viável diante
das limitações comerciais e do pagamento de outorga ao estado. O custo de uma
partida absorve até 60% da bilheteria. Pelo contrato, Flamengo e Fluminense
terão de desembolsar R$ 400 milhões em obras de recuperação do Maracanã e do
Maracanãzinho, além de construir um novo museu. Hoje o modelo de concessão
dificulta o uso para entretenimento.
Em vez de erguer um novo estádio, o melhor
seria o governo rever as regras da concessão do Maracanã — que acaba de ser
renovada por 20 anos —, a fim de corrigir os problemas e de torná-lo um bom
negócio para os clubes. Seria péssimo para a cidade e para o país se o Maracanã
se tornasse mais um elefante branco, como acontece com estádios construídos ou
reformados para a Copa de 2014, que passam a maior parte do tempo às moscas. Um
dos melhores e mais populares estádios do mundo não pode ser palco apenas de jogos
ou shows eventuais. Com queda no público, a conta da manutenção sobrará para o
estado. Para todas as torcidas, portanto.
Real, 30 anos, instituiu o respeito à moeda
Folha de S. Paulo
Plano foi sustentado por avanço institucional
e reformas, ainda incompletas; repúdio à inflação se consolidou no Brasil
O passar do tempo acentua a importância
histórica da reforma
monetária que, há 30 anos, debelou a inflação galopante e abriu
espaço para a modernização econômica ainda incompleta do país.
O bem-sucedido Plano Real demonstrou as
possibilidades de avanço, mesmo em condições adversas, quando se combinam
clareza de propósitos, competência técnica e liderança política.
O ambiente naquele momento, de fato, não
parecia propício. A Presidência do instável Itamar Franco, resultante de
um impeachment,
e uma sucessão de três ministros da Fazenda em poucos meses não autorizavam
otimismo.
Os rumos começaram a mudar com a ascensão ao
comando da economia de Fernando
Henrique Cardoso (PSDB),
que montou uma equipe coesa, com diagnóstico claro e capaz de aproveitar os
aprendizados dos fracassos de planos anteriores. Com transparência,
conquistou a confiança da sociedade e obteve maioria política.
O objetivo imediato do programa era o
controle da inflação com a
engenhosa Unidade Real de Valor (URV), que indexou preços e contratos em
base diária e depois foi transmutada na nova moeda.
Naquele 1994, o país também concluiu a
renegociação da dívida externa —que havia se tornado impagável na chamada
década perdida de 1980, quando o modelo estatista de crescimento do Produto
Interno Bruto entrou em colapso.
A troca da moeda se deu em consonância com um
esforço de equilíbrio das contas públicas, que depois se mostrou insuficiente
conforme foram sendo reveladas as mazelas do Orçamento antes obscurecidas pela
inflação.
O mesmo ocorreu com o sistema financeiro, o
que demandou grande esforço de ajuste e mesmo liquidação de bancos estaduais e,
mais adiante, de instituições privadas.
A queda instantânea da inflação teve enorme
impacto social ao proteger, depois de décadas, o poder de compra da população
mais pobre —o que levou FHC ao Planalto.
Reformas importantes se sucederam, como o
combate à indexação, a quebra de monopólios estatais e privatizações
essenciais, casos de telefonia e setor bancário.
Novas dificuldades não tardaram a aparecer,
porém. A piora do ambiente externo a partir de 1995 e a tentativa inglória de
manter a todo custo o real sobrevalorizado ante o dólar,
em meio a juros altos
e déficit do Tesouro, levaram a um esgotamento da estratégia inicial de
sustentação da moeda.
A partir de 1999, a política econômica ganhou
contornos mais sólidos e duradouros, o que foi decisivo para que o país
ingressasse no período de maior estabilidade monetária desde sua
industrialização a partir do século 20.
A taxa de câmbio passou
a flutuar com os movimentos de mercado, pondo fim à tradição de
intervencionismo governamental que resultou em sucessivas crises de falta de
divisas. Graças à bonança internacional dos anos 2000, acumularam-se fartas
reservas em dólar.
Instituiu-se o regime de metas de inflação,
que propiciou transparência e prestação de contas na política de juros.
No Banco Central,
criou-se o Comitê de Política Monetária; mais tarde, seus dirigentes viriam a
ganhar autonomia formal.
Elevou-se a carga tributária até excessivos
33% do PIB e aprovou-se a Lei de Responsabilidade Fiscal, o que permitiu um
período de relativo equilíbrio orçamentário até o início dos anos 2010.
Remanescem, entretanto, as
distorções de um Estado perdulário e tomado por interesses de
setores influentes.
Apesar dos avanços institucionais dos últimos
30 anos, é preciso apontar que a ambição maior pós-estabilização monetária —o
crescimento econômico sustentado e a superação da pobreza— ainda não foi
concretizada.
O fechamento ao mundo impede a modernização
produtiva, e a fragilidade das contas públicas não permite o afastamento
definitivo do risco de instabilidade. Redesenhar o Orçamento em prol dos mais
carentes, contendo o excesso de gastos obrigatórios, é tarefa inconclusa.
Indiscutível é que o real instituiu o respeito à moeda na sociedade brasileira. Foram esvaziadas as velhas teses populistas favoráveis à tolerância com a inflação em nome de mais atividade econômica no curto prazo. Mesmo com idas e vindas, as reformas econômicas contam com um incentivo poderoso.
Um apelo à ‘virtude da parcimônia’ no STF
O Estado de S. Paulo
Espanta a recalcitrância de alguns ministros em reavaliar comportamentos antirrepublicanos e ignorar críticas de boa-fé feitas à Corte, mas a Constituição tem antídoto para abusos
Alguns ministros do Supremo Tribunal Federal
(STF) têm se mostrado recalcitrantes em reavaliar condutas em tudo contrárias à
ética pública e aos princípios republicanos. Carecem da “virtude da
parcimônia”, nas sábias palavras do ministro Edson Fachin. Um perigo, pois para
membros do Poder Judiciário, prosseguiu Fachin, “abdicar de limites é um
convite para pular no abismo institucional”.
Como se pairasse acima do bem e do mal, uma
ala da Corte repele até mesmo as críticas de boa-fé feitas por cidadãos,
organizações da sociedade civil e veículos de imprensa, como este jornal, que,
inequivocamente, estão comprometidos com a democracia e, portanto, são aliados
do STF em sua defesa contra seus verdadeiros inimigos.
A já conhecida falta de comedimento desses
ministros agora se soma à soberba. Essa combinação perniciosa sugere que, para
esses magistrados, o Supremo e seus integrantes, por se considerarem esteio da
democracia, deveriam estar isentos de críticas e de sanções por seus atos, algo
que não combina com uma república democrática, e sim com um Estado absolutista.
Como o Brasil é uma república democrática,
ninguém aqui está acima da lei, e todos os que ocupam cargos públicos, sem
exceção, devem satisfações aos cidadãos por seus atos e omissões. Tal exigência
aplica-se particularmente aos ministros do Supremo, que têm como tarefa
determinar a constitucionalidade das leis e, portanto, dar a palavra final
sobre o ordenamento jurídico do País.
Exatamente porque têm essa missão é que os
ministros do Supremo devem ter especial cuidado com sua imagem. Não podem dar a
impressão de que são parciais. Isso deveria ser óbvio, mas aparentemente não é.
Alguns ministros parecem não entender que há rígidos limites éticos que devem
ser respeitados por aqueles que estão no Supremo e se queixam de quem lhes
censura o comportamento e levanta suspeitas sobre suas motivações.
Tais queixas têm adquirido um tom que trai um
ânimo intimidatório. O presidente do STF, Luís Roberto Barroso, por exemplo, já
se referiu aos críticos da Corte como “implicantes”. O decano, Gilmar Mendes,
argumentou com naturalidade espantosa que os evidentes conflitos de interesse
presentes nos encontros que organiza entre seus colegas e empresários com ações
em curso na Corte inexistem. Dias Toffoli, por sua vez, tem certeza de que o
inferno são os outros. Se há protagonismo excessivo do STF, disse o ministro
durante palestra na festa lisboeta organizada por Gilmar Mendes, isso decorre
da “falência dos outros órgãos decisórios da sociedade”.
Mais recentemente, o ministro Flávio Dino
uniu-se ao coro e chamou de “esdrúxulas” as críticas à participação de
ministros em eventos no estrangeiro regados a altas doses de lobby. “(A crítica)
soa muito mal nos meus ouvidos, porque parece uma reminiscência de um tempo em
que os magistrados se fechavam num isolamento negativo para sua própria
reflexão sobre seu papel e sobre sua legitimidade”, disse Dino, ignorando que o
tal “isolamento negativo” de negativo nada tem. É da blindagem de um juiz à
mera suspeição de parcialidade que deriva a sua legitimidade.
Já o ministro Alexandre de Moraes descartou
peremptoriamente a necessidade de um código de conduta para os ministros do
STF, nos moldes do que os ministros da Suprema Corte dos EUA foram compelidos a
editar após virem a público as relações antirrepublicanas de alguns juízes.
Se os ministros do STF não estão sujeitos à
Lei Orgânica da Magistratura, como sustenta Gilmar Mendes, e não precisam se
submeter a um código de conduta, como diz Alexandre de Moraes, quem, afinal,
haverá de moderar o comportamento de Suas Excelências? Apenas seus próprios
freios éticos internos? Seus autoexames de consciência? Ora, não é assim que
funciona uma República.
Um poder sem controle é um poder ilegítimo, e
a Constituição tem antídotos para isso. A mesma Constituição que deu ao Supremo
o poder de impor limites ao Executivo durante o turbulento governo de Jair
Bolsonaro é a que dá ao Senado o poder de impor limites aos ministros do
Supremo, se for necessário.
A tentação do Grande Irmão
O Estado de S. Paulo
Através da tecnologia digital, China
implementa maior sistema de controle social e manipulação da opinião pública da
história humana. Mas esta distopia está menos distante do que parece
Uma das motivações mais poderosas para o
surgimento das democracias liberais foi a revolta contra a vigilância intrusiva
dos monarcas absolutistas. Isso não significa que toda vigilância seja ruim. Ao
contrário. Se o fundamento do Estado de Direito é a igualdade de todos perante
a lei, mecanismos para vigiar a observância da lei por todos são
indispensáveis.
Qualquer discussão sobre vigilância deve
reconhecer uma ambivalência congênita entre “vigiar um indivíduo ou indivíduos
para mantê-los seguros, mas também vigiá-los para garantir que observem um
certo padrão de comportamento”, como disse o constitucionalista Lawrence
Cappello em seu livro sobre o direito à privacidade, None of Your Damn
Business (Não é da sua conta, em tradução livre). “Conceitualmente, a
vigilância emancipa e também constrange. É usada tanto para proteger quanto
para controlar.”
Toda geração precisa equilibrar, por meio de
suas instituições, segurança e liberdade, vigilância e privacidade. Se alguém
quiser um vislumbre do que acontece quando esse equilíbrio é rompido, basta
olhar para a China. A pretexto de proteger os cidadãos, o Partido Comunista
está empregando a tecnologia digital para implementar o maior aparato de
controle social e manipulação da opinião pública da história humana. Há dezenas
(provavelmente centenas) de milhões de câmeras com reconhecimento facial pelo
país. A internet é cercada por uma muralha digital, dentro da qual redes
sociais, e-mails e conversas no WeChat (o WhatsApp chinês) são monitorados.
Desde a pandemia, os cidadãos foram obrigados a baixar um aplicativo que
rastreia seus movimentos.
As delegacias monitoram milhões de indivíduos
com ficha na polícia, mas também suspeitos de ameaçar a “segurança do Estado”,
incluindo ativistas, fiéis religiosos e pessoas que peticionam contra o
governo. Informantes são recrutados para denunciar colegas e vizinhos
insatisfeitos com as autoridades. Está em curso a implementação de um “sistema
de crédito social” que ranqueia cidadãos de acordo com seus comportamentos
“antissociais”. Quem pisa fora da linha pode esperar a qualquer momento uma
visita da polícia.
Como constatou uma reportagem do New
York Times, publicada no Estadão, sobre a “repressão preventiva” chinesa:
“O objetivo não é mais apenas lidar com ameaças específicas, como vírus ou
dissidentes. É incorporar o Partido tão profundamente na vida diária que nenhum
problema, por mais irrelevante ou apolítico que pareça, possa sequer surgir”.
Para os que veem nisso uma distopia, cabe
lembrar que o presidente Lula da Silva disse em 2021 que a China só conseguiu
combater o coronavírus rapidamente na pandemia “porque tem um partido político
forte e um governo forte, porque o governo tem controle e poder de comando”. “O
Brasil não tem isso, nem outros países”, lamentou. A presidente de seu partido,
Gleisi Hoffmann, celebrou, em Pequim, o que chamou de “democracia efetiva”: “O
que eu vejo aqui, inclusive na organização do partido e da sociedade, é uma
democracia e uma participação nos estratos mais baixos da sociedade aos mais
altos no desenvolvimento do país”.
A Polícia Federal apura indícios de que o
ex-presidente Jair Bolsonaro teria aparelhado a Agência Brasileira de
Inteligência para rastrear celulares de políticos, magistrados e jornalistas.
Em 2020, o Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional a contratação de
serviços de monitoramento das redes pelo governo. Agora, a própria Corte abriu
licitação para contratar serviços de rastreamento, inclusive com
georreferenciamento de usuários, para monitorar “práticas que afetam a
confiança das pessoas no Supremo” e “distorcem ou alteram o significado das
decisões”. Dada a ficha corrida de abusos que a Corte tem praticado sob a capa
de inquéritos secretos para apurar fake news e milícias digitais, é uma
iniciativa no mínimo inquietante.
Democracias liberais precisam de autoridades
que vigiem o cumprimento de suas regras. Mas o preço da liberdade é a eterna
vigilância sobre os vigilantes.
Balbúrdia em La Paz
O Estado de S. Paulo
Golpe de Estado ou golpe de cena, a
quartelada aprofunda o descrédito da Bolívia
Pelas estimativas de Jonathan Powell e
Clayton Thyne, que pesquisam golpes de Estado, revoltas e insurreições, a
Bolívia é não só o país que mais sofreu golpes de Estado desde 1950, mas também
o que mais os frustrou: foram 23 no total, 12 malogrados. Na última
quarta-feira, essa história de tragédias e farsas se repetiu mais uma vez.
Por volta das 14h, os transeuntes da Plaza
Murillo foram surpreendidos por um destacamento de soldados cercando o Palácio
do Governo. Um pequeno blindado marretou as portas, e o general Juan José
Zúñiga entrou cercado por câmeras, disparando palavras confusas sobre restaurar
a “verdadeira democracia” e libertar “presos políticos”. Não houve tentativa de
deter ministros ou fechar o Congresso. O presidente Luis Arce confrontou os
golpistas cara a cara e entrou em seu gabinete. Enquanto manifestantes protestavam
na praça, Arce instalou um novo Alto Comando que deu ordens de dispersão às
tropas. Elas partiram junto com Zúñiga, enquanto Arce saudava de um balcão os
manifestantes entre cantos de louvor à democracia. Eram 17h30. À noite, Zúñiga
foi detido por ordem do procurador-geral, protestando que a intentona foi
encomendada por Arce para “levantar sua imagem”.
O que aconteceu em La Paz? Tragédia malograda
ou farsa consumada? Qualquer afirmação categórica é temerária. As respostas a
duas perguntas acrescentam um grau a mais de desconcerto. Primeiro, quem apoiou
o golpe? Ninguém, nem as Forças Armadas, nem a facção rival do partido de Arce,
o Movimento ao Socialismo (MAS), liderada por seu ex-tutor, o ex-presidente Evo
Morales, nem a oposição e muito menos a população, que reagiu com uma enxurrada
de memes satíricos.
A segunda pergunta, e mais relevante, é quem
se beneficiará com o fracasso do golpe e seus efeitos de curto e médio prazos?
Aqui entram conjecturas. Mas, para emprestar alguma plausibilidade à “tese” de
Zúñiga, Arce de fato sofre com uma impopularidade exasperante e acusa a facção
de Morales no MAS de sabotar o seu governo. Morales protestou contra os
militares e em favor da democracia. Mas tanto seus apoiadores quanto líderes de
oposição relembraram que Zúñiga era um homem de confiança de Arce e foram às redes
denunciar um “autogolpe”, “teatro”, “cortina de fumaça”.
Os bolivianos esperam do processo judicial
contra Zúñiga novos dados que os ajudem a elucidar a charada. Qualquer que seja
a resposta, a pergunta sinaliza um mal-estar profundo. Como sugeriu o editorial
do jornal La Razón, “com todos os contornos de um ato orquestrado não para
tomar o poder, mas para enviar algum tipo de mensagem, a intentona é apenas um
sintoma”.
Enquanto Arce e Morales disputam o poder a um
ano das eleições gerais, a economia derrete a olhos vistos; as reservas de gás,
a principal fonte de recursos do país, se esgotam; faltam dólares e
combustível; o desemprego cresce, assim como os preços e os negócios do
narcotráfico e do contrabando.
O futuro dirá o que aconteceu em La Paz. Mas, depois de quarta-feira, a política da Bolívia está mais instável e sua economia, mais desacreditada.
Trump, Biden e a democracia
Correio Braziliense
Mais do que escolher entre um republicano e
um democrata para o cargo político mais importante do mundo, os
norte-americanos terão de decidir entre dois caminhos para a mais relevante das
democracias modernas
Realizado cinco meses antes da eleição, o
debate entre os dois pré-candidatos à presidência dos Estados Unidos — os
partidos Republicano e Democrata ainda não oficializaram Donald Trump e Joe
Biden como os indicados para a corrida à Casa Branca — revelou duas visões
antagônicas sobre democracia. Como de hábito, Trump manteve a postura niilista,
negando fatos e acusações de maneira peremptória e histriônica. Minimizou a
emergência climática, opôs-se ao que considera dispendiosa ajuda à Ucrânia da
invasão russa, satanizou imigrantes, desqualificou o juiz de Nova York que o
condenou por fraude bancária.
Ao direcionar sua munição contra o adversário
democrata, Trump manteve o estilo agressivo. Tachou o governo Biden de
"pior da história dos EUA", responsabilizou-o pela inflação
duradoura, acusou-o de frouxidão na guerra da Ucrânia. E, com a ironia típica,
colocou em dúvida a concatenação de ideias do chefe da Casa Branca, vocalizando
a preocupação cada vez maior sobre as condições de Biden para concorrer à
eleição.
O atual titular da Casa Branca, por sua vez,
também manteve um tom altivo. Chamou Trump de condenado pela Justiça, acusou de
entregar uma administração federal caótica, valorizou os avanços nos serviços
de saúde norte-americanos e justificou as ações de seu governo na guerra, com
apoio das Nações Unidas e do G7, o grupo das sete maiores economias. E disse
que o rival republicano incitou o ataque ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021.
A percepção generalizada do primeiro embate
entre os presidenciáveis é de que Trump saiu vitorioso do confronto com Biden.
E que a candidatura de Biden enfrenta sério perigo de fracasso. Ainda durante o
debate, os democratas já discutiam a possibilidade, cada vez mais evocada, de o
atual presidente abrir mão da reeleição. Enquanto isso, a Casa Branca
informava, em um comunicado sintomático, que o presidente estava se recuperando
de uma gripe, por isso, a voz estava frágil durante o debate.
O desempenho frustrante de Biden não
representou apenas um malogro para os democratas. Despertou, para muitos nos
Estados Unidos — e no mundo —, uma preocupação com o retorno de Donald Trump ao
comando da maior potência econômica e militar do planeta. O republicano é
sinônimo de tensionamento dentro e fora da América, com implicações nas
relações internacionais, na economia global e na geopolítica.
Mais do que escolher entre um republicano e um democrata para o cargo político mais importante do mundo, os norte-americanos terão de decidir entre dois caminhos para a mais relevante das democracias modernas. Uma vitória de Trump necessariamente redundará em novo estresse político e institucional em escala global, posto que o republicano não demonstra muito apreço pelo establishment, dando mais peso às suas convicções, consideradas populistas por muitos. Biden, por sua vez, tem o ônus de ser governo, e governos são frequentemente criticados por não responderem às demandas da sociedade com a devida rapidez. O democrata, porém, nunca deixou dúvida de que respeita o Estado Democrático de Direito e a Constituição dos Estados Unidos — compromisso não tão evidente na postura de Donald Trump. Na quinta-feira, após três tentativas dos debatedores, o republicano disse que respeitaria o resultado das eleições, contanto que fossem "justas" e "legais". Eis as condições do candidato que assusta multidões.
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