domingo, 30 de junho de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Espírito do Plano Real é inspiração para outros desafios

O Globo

Derrota da hiperinflação mostra que soluções de problemas aparentemente intratáveis estão ao alcance do Brasil

O aniversário de 30 anos do Plano Real, amanhã, prova que o Brasil, quando unido em torno de uma meta, tem plena capacidade de superar a realidade mais adversa. A comemoração desmente a crença derrotista, popular em alguns círculos, de que os avanços por aqui são de pouca monta. Um exame do passado ensina que o maior dos problemas pode ser vencido se houver clareza de propósito e determinação. É preciso resgatar o espírito que animou o Real para encarar os desafios do futuro, independentemente da dificuldade que aparentem. Seu maior legado é comprovar o poder das ideias e da perseverança.

A nova moeda entrou em circulação em 1º de julho de 1994. Nos 12 meses anteriores, a inflação alcançara inacreditáveis 4.922%. Para as novas gerações, o número — mais de mil vezes o atual — pode soar abstrato. Na época, era bem concreto. A maioria dos assalariados, sem a proteção das aplicações financeiras, corria aos supermercados depois de receber, pois comida e itens básicos estariam mais caros no dia seguinte. Estocar alimentos era uma espécie de poupança. Passado o dia de pagamento, os varejistas ficavam vazios.

Usar cheques era comum depois das 16h. Com os bancos fechados, o desconto só viria no dia seguinte, abrindo espaço para ganhar uma vantagem extra na transação. Motoristas faziam fila em frente a postos de gasolina antes das repetidas remarcações de preço. A falta de referência de valor tornava difícil planejar a compra de imóveis e todo tipo de investimento. Nas empresas, o planejamento era uma abstração. Isso derrubava o crescimento da economia e a geração de empregos. No exterior, brasileiros eram questionados sobre como era viver num lugar com hiperinflação. Éramos uma atração bizarra.

Nada parecia dar conta do problema. Logo depois da redemocratização, o Plano Cruzado apostara numa nova moeda e no congelamento de preços. Fugaz e enganador. Ainda em 1986, foi anunciado o Cruzado 2. Em seguida, viriam os planos Bresser (1987), Verão (1989), Collor 1 (1990) e Collor 2 (1991). Houve todo tipo de tentativa. Do aumento das taxas de juros ao absurdo de confiscar os depósitos bancários. Em comum, todos deram errado. A sensação de incapacidade para derrotar a alta cotidiana dos preços era indiscriminada. A inflação parecia ser parte inseparável da cultura nacional.

No governo Itamar Franco, economistas escolhidos pelo então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, enfim adotaram a estratégia certa para quebrar esse passado. Antes do lançamento do real, foi criado um sistema de conversão, a Unidade Real de Valor (URV). Enquanto esteve em vigor, foram necessários mais e mais cruzeiros reais para atingir o valor de uma URV, mas esta se mantinha estável, garantindo a ancoragem dos preços. Quando entrou em circulação, um real valia uma URV, ou CR$ 2.750.

Mesmo adotando uma estratégia inovadora, o Plano Real dependeu do Congresso para dar certo. De lá para cá, a moeda erradicou a hiperinflação, passou por altos e baixos, mas se impôs. O principal reflexo positivo foi a melhora no poder de compra dos mais pobres, evidente quando se comparam os indicadores sociais. Olhando para a frente, não faltam problemas que parecem insolúveis. Da crise fiscal à educação, da saúde à segurança pública, é preciso resgatar o espírito inspirador do Plano Real. Se o país venceu a hiperinflação, pode dar conta do resto também.

Anúncio de novo estádio para o Flamengo é oportunismo eleitoral

O Globo

Melhor seria corrigir os erros que tornam a concessão do Maracanã pouco lucrativa para os clubes

Soa como oportunismo eleitoral o empenho do prefeito do Rio, Eduardo Paes (PSD), pré-candidato à reeleição, para erguer o novo estádio do Flamengo no terreno que abrigou o antigo gasômetro, na região portuária. Um decreto do Executivo permitiu desapropriar o imóvel, abrindo caminho ao projeto rubro-negro.

O Flamengo pretende construir lá uma arena para 80 mil torcedores. O projeto não decolava por impasses na negociação com o fundo administrado pela Caixa para investir na revitalização da área. Em ano eleitoral, Paes decidiu agradar à maior torcida do Rio. Ele alega que o empreendimento não erguerá apenas o estádio, mas também espaço de entretenimento e centro de convenções. A bem-vinda recuperação da Zona Portuária não implica, porém, a construção de outro estádio no Rio.

A despeito de interesses clubísticos e eleitorais, a cidade não carece de novo estádio, ainda mais a apenas 3 quilômetros do Maracanã. Está bem servida com os que tem. Palco das Copas de 1950 e 2014, dos Jogos Pan-Americanos de 2007 e da Olimpíada de 2016, o Maracanã passou por uma reforma de mais de R$ 1 bilhão para se adaptar ao padrão Fifa. Hoje comporta 80 mil torcedores. O Nilton Santos (Engenhão), administrado pelo Botafogo, recebeu obras de R$ 52 milhões para se tornar um estádio olímpico para 45 mil pessoas. Há ainda São Januário, que, pelo plano do Vasco, deverá ser reformado.

Com mais um estádio, o maior impacto recairá sobre o Maracanã, um dos mais tradicionais do mundo. Propriedade do governo estadual, ele hoje é administrado por Flamengo e Fluminense em regime de concessão. O Flamengo tem dito que não o abandonará, mesmo com a nova casa. Mas é improvável que erga uma estrutura orçada em R$ 2 bilhões para jogar apenas de vez em quando. Dificilmente um único clube teria condições de manter o Maracanã sozinho.

Como mostrou reportagem do GLOBO, a manutenção do complexo é cara. Um dos principais desafios da concessão tem sido torná-la economicamente viável diante das limitações comerciais e do pagamento de outorga ao estado. O custo de uma partida absorve até 60% da bilheteria. Pelo contrato, Flamengo e Fluminense terão de desembolsar R$ 400 milhões em obras de recuperação do Maracanã e do Maracanãzinho, além de construir um novo museu. Hoje o modelo de concessão dificulta o uso para entretenimento.

Em vez de erguer um novo estádio, o melhor seria o governo rever as regras da concessão do Maracanã — que acaba de ser renovada por 20 anos —, a fim de corrigir os problemas e de torná-lo um bom negócio para os clubes. Seria péssimo para a cidade e para o país se o Maracanã se tornasse mais um elefante branco, como acontece com estádios construídos ou reformados para a Copa de 2014, que passam a maior parte do tempo às moscas. Um dos melhores e mais populares estádios do mundo não pode ser palco apenas de jogos ou shows eventuais. Com queda no público, a conta da manutenção sobrará para o estado. Para todas as torcidas, portanto.

Real, 30 anos, instituiu o respeito à moeda

Folha de S. Paulo

Plano foi sustentado por avanço institucional e reformas, ainda incompletas; repúdio à inflação se consolidou no Brasil

O passar do tempo acentua a importância histórica da reforma monetária que, há 30 anos, debelou a inflação galopante e abriu espaço para a modernização econômica ainda incompleta do país.

O bem-sucedido Plano Real demonstrou as possibilidades de avanço, mesmo em condições adversas, quando se combinam clareza de propósitos, competência técnica e liderança política.

O ambiente naquele momento, de fato, não parecia propício. A Presidência do instável Itamar Franco, resultante de um impeachment, e uma sucessão de três ministros da Fazenda em poucos meses não autorizavam otimismo.

Os rumos começaram a mudar com a ascensão ao comando da economia de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que montou uma equipe coesa, com diagnóstico claro e capaz de aproveitar os aprendizados dos fracassos de planos anteriores. Com transparência, conquistou a confiança da sociedade e obteve maioria política.

O objetivo imediato do programa era o controle da inflação com a engenhosa Unidade Real de Valor (URV), que indexou preços e contratos em base diária e depois foi transmutada na nova moeda.

Naquele 1994, o país também concluiu a renegociação da dívida externa —que havia se tornado impagável na chamada década perdida de 1980, quando o modelo estatista de crescimento do Produto Interno Bruto entrou em colapso.

A troca da moeda se deu em consonância com um esforço de equilíbrio das contas públicas, que depois se mostrou insuficiente conforme foram sendo reveladas as mazelas do Orçamento antes obscurecidas pela inflação.

O mesmo ocorreu com o sistema financeiro, o que demandou grande esforço de ajuste e mesmo liquidação de bancos estaduais e, mais adiante, de instituições privadas.

A queda instantânea da inflação teve enorme impacto social ao proteger, depois de décadas, o poder de compra da população mais pobre —o que levou FHC ao Planalto.

Reformas importantes se sucederam, como o combate à indexação, a quebra de monopólios estatais e privatizações essenciais, casos de telefonia e setor bancário.

Novas dificuldades não tardaram a aparecer, porém. A piora do ambiente externo a partir de 1995 e a tentativa inglória de manter a todo custo o real sobrevalorizado ante o dólar, em meio a juros altos e déficit do Tesouro, levaram a um esgotamento da estratégia inicial de sustentação da moeda.

A partir de 1999, a política econômica ganhou contornos mais sólidos e duradouros, o que foi decisivo para que o país ingressasse no período de maior estabilidade monetária desde sua industrialização a partir do século 20.

A taxa de câmbio passou a flutuar com os movimentos de mercado, pondo fim à tradição de intervencionismo governamental que resultou em sucessivas crises de falta de divisas. Graças à bonança internacional dos anos 2000, acumularam-se fartas reservas em dólar.

Instituiu-se o regime de metas de inflação, que propiciou transparência e prestação de contas na política de juros. No Banco Central, criou-se o Comitê de Política Monetária; mais tarde, seus dirigentes viriam a ganhar autonomia formal.

Elevou-se a carga tributária até excessivos 33% do PIB e aprovou-se a Lei de Responsabilidade Fiscal, o que permitiu um período de relativo equilíbrio orçamentário até o início dos anos 2010. Remanescem, entretanto, as distorções de um Estado perdulário e tomado por interesses de setores influentes.

Apesar dos avanços institucionais dos últimos 30 anos, é preciso apontar que a ambição maior pós-estabilização monetária —o crescimento econômico sustentado e a superação da pobreza— ainda não foi concretizada.

O fechamento ao mundo impede a modernização produtiva, e a fragilidade das contas públicas não permite o afastamento definitivo do risco de instabilidade. Redesenhar o Orçamento em prol dos mais carentes, contendo o excesso de gastos obrigatórios, é tarefa inconclusa.

Indiscutível é que o real instituiu o respeito à moeda na sociedade brasileira. Foram esvaziadas as velhas teses populistas favoráveis à tolerância com a inflação em nome de mais atividade econômica no curto prazo. Mesmo com idas e vindas, as reformas econômicas contam com um incentivo poderoso.

Um apelo à ‘virtude da parcimônia’ no STF

O Estado de S. Paulo

Espanta a recalcitrância de alguns ministros em reavaliar comportamentos antirrepublicanos e ignorar críticas de boa-fé feitas à Corte, mas a Constituição tem antídoto para abusos

Alguns ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) têm se mostrado recalcitrantes em reavaliar condutas em tudo contrárias à ética pública e aos princípios republicanos. Carecem da “virtude da parcimônia”, nas sábias palavras do ministro Edson Fachin. Um perigo, pois para membros do Poder Judiciário, prosseguiu Fachin, “abdicar de limites é um convite para pular no abismo institucional”.

Como se pairasse acima do bem e do mal, uma ala da Corte repele até mesmo as críticas de boa-fé feitas por cidadãos, organizações da sociedade civil e veículos de imprensa, como este jornal, que, inequivocamente, estão comprometidos com a democracia e, portanto, são aliados do STF em sua defesa contra seus verdadeiros inimigos.

A já conhecida falta de comedimento desses ministros agora se soma à soberba. Essa combinação perniciosa sugere que, para esses magistrados, o Supremo e seus integrantes, por se considerarem esteio da democracia, deveriam estar isentos de críticas e de sanções por seus atos, algo que não combina com uma república democrática, e sim com um Estado absolutista.

Como o Brasil é uma república democrática, ninguém aqui está acima da lei, e todos os que ocupam cargos públicos, sem exceção, devem satisfações aos cidadãos por seus atos e omissões. Tal exigência aplica-se particularmente aos ministros do Supremo, que têm como tarefa determinar a constitucionalidade das leis e, portanto, dar a palavra final sobre o ordenamento jurídico do País.

Exatamente porque têm essa missão é que os ministros do Supremo devem ter especial cuidado com sua imagem. Não podem dar a impressão de que são parciais. Isso deveria ser óbvio, mas aparentemente não é. Alguns ministros parecem não entender que há rígidos limites éticos que devem ser respeitados por aqueles que estão no Supremo e se queixam de quem lhes censura o comportamento e levanta suspeitas sobre suas motivações.

Tais queixas têm adquirido um tom que trai um ânimo intimidatório. O presidente do STF, Luís Roberto Barroso, por exemplo, já se referiu aos críticos da Corte como “implicantes”. O decano, Gilmar Mendes, argumentou com naturalidade espantosa que os evidentes conflitos de interesse presentes nos encontros que organiza entre seus colegas e empresários com ações em curso na Corte inexistem. Dias Toffoli, por sua vez, tem certeza de que o inferno são os outros. Se há protagonismo excessivo do STF, disse o ministro durante palestra na festa lisboeta organizada por Gilmar Mendes, isso decorre da “falência dos outros órgãos decisórios da sociedade”.

Mais recentemente, o ministro Flávio Dino uniu-se ao coro e chamou de “esdrúxulas” as críticas à participação de ministros em eventos no estrangeiro regados a altas doses de lobby. “(A crítica) soa muito mal nos meus ouvidos, porque parece uma reminiscência de um tempo em que os magistrados se fechavam num isolamento negativo para sua própria reflexão sobre seu papel e sobre sua legitimidade”, disse Dino, ignorando que o tal “isolamento negativo” de negativo nada tem. É da blindagem de um juiz à mera suspeição de parcialidade que deriva a sua legitimidade.

Já o ministro Alexandre de Moraes descartou peremptoriamente a necessidade de um código de conduta para os ministros do STF, nos moldes do que os ministros da Suprema Corte dos EUA foram compelidos a editar após virem a público as relações antirrepublicanas de alguns juízes.

Se os ministros do STF não estão sujeitos à Lei Orgânica da Magistratura, como sustenta Gilmar Mendes, e não precisam se submeter a um código de conduta, como diz Alexandre de Moraes, quem, afinal, haverá de moderar o comportamento de Suas Excelências? Apenas seus próprios freios éticos internos? Seus autoexames de consciência? Ora, não é assim que funciona uma República.

Um poder sem controle é um poder ilegítimo, e a Constituição tem antídotos para isso. A mesma Constituição que deu ao Supremo o poder de impor limites ao Executivo durante o turbulento governo de Jair Bolsonaro é a que dá ao Senado o poder de impor limites aos ministros do Supremo, se for necessário.

A tentação do Grande Irmão

O Estado de S. Paulo

Através da tecnologia digital, China implementa maior sistema de controle social e manipulação da opinião pública da história humana. Mas esta distopia está menos distante do que parece

Uma das motivações mais poderosas para o surgimento das democracias liberais foi a revolta contra a vigilância intrusiva dos monarcas absolutistas. Isso não significa que toda vigilância seja ruim. Ao contrário. Se o fundamento do Estado de Direito é a igualdade de todos perante a lei, mecanismos para vigiar a observância da lei por todos são indispensáveis.

Qualquer discussão sobre vigilância deve reconhecer uma ambivalência congênita entre “vigiar um indivíduo ou indivíduos para mantê-los seguros, mas também vigiá-los para garantir que observem um certo padrão de comportamento”, como disse o constitucionalista Lawrence Cappello em seu livro sobre o direito à privacidade, None of Your Damn Business (Não é da sua conta, em tradução livre). “Conceitualmente, a vigilância emancipa e também constrange. É usada tanto para proteger quanto para controlar.”

Toda geração precisa equilibrar, por meio de suas instituições, segurança e liberdade, vigilância e privacidade. Se alguém quiser um vislumbre do que acontece quando esse equilíbrio é rompido, basta olhar para a China. A pretexto de proteger os cidadãos, o Partido Comunista está empregando a tecnologia digital para implementar o maior aparato de controle social e manipulação da opinião pública da história humana. Há dezenas (provavelmente centenas) de milhões de câmeras com reconhecimento facial pelo país. A internet é cercada por uma muralha digital, dentro da qual redes sociais, e-mails e conversas no WeChat (o WhatsApp chinês) são monitorados. Desde a pandemia, os cidadãos foram obrigados a baixar um aplicativo que rastreia seus movimentos.

As delegacias monitoram milhões de indivíduos com ficha na polícia, mas também suspeitos de ameaçar a “segurança do Estado”, incluindo ativistas, fiéis religiosos e pessoas que peticionam contra o governo. Informantes são recrutados para denunciar colegas e vizinhos insatisfeitos com as autoridades. Está em curso a implementação de um “sistema de crédito social” que ranqueia cidadãos de acordo com seus comportamentos “antissociais”. Quem pisa fora da linha pode esperar a qualquer momento uma visita da polícia.

Como constatou uma reportagem do New York Times, publicada no Estadão, sobre a “repressão preventiva” chinesa: “O objetivo não é mais apenas lidar com ameaças específicas, como vírus ou dissidentes. É incorporar o Partido tão profundamente na vida diária que nenhum problema, por mais irrelevante ou apolítico que pareça, possa sequer surgir”.

Para os que veem nisso uma distopia, cabe lembrar que o presidente Lula da Silva disse em 2021 que a China só conseguiu combater o coronavírus rapidamente na pandemia “porque tem um partido político forte e um governo forte, porque o governo tem controle e poder de comando”. “O Brasil não tem isso, nem outros países”, lamentou. A presidente de seu partido, Gleisi Hoffmann, celebrou, em Pequim, o que chamou de “democracia efetiva”: “O que eu vejo aqui, inclusive na organização do partido e da sociedade, é uma democracia e uma participação nos estratos mais baixos da sociedade aos mais altos no desenvolvimento do país”.

A Polícia Federal apura indícios de que o ex-presidente Jair Bolsonaro teria aparelhado a Agência Brasileira de Inteligência para rastrear celulares de políticos, magistrados e jornalistas. Em 2020, o Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional a contratação de serviços de monitoramento das redes pelo governo. Agora, a própria Corte abriu licitação para contratar serviços de rastreamento, inclusive com georreferenciamento de usuários, para monitorar “práticas que afetam a confiança das pessoas no Supremo” e “distorcem ou alteram o significado das decisões”. Dada a ficha corrida de abusos que a Corte tem praticado sob a capa de inquéritos secretos para apurar fake news e milícias digitais, é uma iniciativa no mínimo inquietante.

Democracias liberais precisam de autoridades que vigiem o cumprimento de suas regras. Mas o preço da liberdade é a eterna vigilância sobre os vigilantes.

Balbúrdia em La Paz

O Estado de S. Paulo

Golpe de Estado ou golpe de cena, a quartelada aprofunda o descrédito da Bolívia

Pelas estimativas de Jonathan Powell e Clayton Thyne, que pesquisam golpes de Estado, revoltas e insurreições, a Bolívia é não só o país que mais sofreu golpes de Estado desde 1950, mas também o que mais os frustrou: foram 23 no total, 12 malogrados. Na última quarta-feira, essa história de tragédias e farsas se repetiu mais uma vez.

Por volta das 14h, os transeuntes da Plaza Murillo foram surpreendidos por um destacamento de soldados cercando o Palácio do Governo. Um pequeno blindado marretou as portas, e o general Juan José Zúñiga entrou cercado por câmeras, disparando palavras confusas sobre restaurar a “verdadeira democracia” e libertar “presos políticos”. Não houve tentativa de deter ministros ou fechar o Congresso. O presidente Luis Arce confrontou os golpistas cara a cara e entrou em seu gabinete. Enquanto manifestantes protestavam na praça, Arce instalou um novo Alto Comando que deu ordens de dispersão às tropas. Elas partiram junto com Zúñiga, enquanto Arce saudava de um balcão os manifestantes entre cantos de louvor à democracia. Eram 17h30. À noite, Zúñiga foi detido por ordem do procurador-geral, protestando que a intentona foi encomendada por Arce para “levantar sua imagem”.

O que aconteceu em La Paz? Tragédia malograda ou farsa consumada? Qualquer afirmação categórica é temerária. As respostas a duas perguntas acrescentam um grau a mais de desconcerto. Primeiro, quem apoiou o golpe? Ninguém, nem as Forças Armadas, nem a facção rival do partido de Arce, o Movimento ao Socialismo (MAS), liderada por seu ex-tutor, o ex-presidente Evo Morales, nem a oposição e muito menos a população, que reagiu com uma enxurrada de memes satíricos.

A segunda pergunta, e mais relevante, é quem se beneficiará com o fracasso do golpe e seus efeitos de curto e médio prazos? Aqui entram conjecturas. Mas, para emprestar alguma plausibilidade à “tese” de Zúñiga, Arce de fato sofre com uma impopularidade exasperante e acusa a facção de Morales no MAS de sabotar o seu governo. Morales protestou contra os militares e em favor da democracia. Mas tanto seus apoiadores quanto líderes de oposição relembraram que Zúñiga era um homem de confiança de Arce e foram às redes denunciar um “autogolpe”, “teatro”, “cortina de fumaça”.

Os bolivianos esperam do processo judicial contra Zúñiga novos dados que os ajudem a elucidar a charada. Qualquer que seja a resposta, a pergunta sinaliza um mal-estar profundo. Como sugeriu o editorial do jornal La Razón, “com todos os contornos de um ato orquestrado não para tomar o poder, mas para enviar algum tipo de mensagem, a intentona é apenas um sintoma”.

Enquanto Arce e Morales disputam o poder a um ano das eleições gerais, a economia derrete a olhos vistos; as reservas de gás, a principal fonte de recursos do país, se esgotam; faltam dólares e combustível; o desemprego cresce, assim como os preços e os negócios do narcotráfico e do contrabando.

O futuro dirá o que aconteceu em La Paz. Mas, depois de quarta-feira, a política da Bolívia está mais instável e sua economia, mais desacreditada.

Trump, Biden e a democracia

Correio Braziliense

Mais do que escolher entre um republicano e um democrata para o cargo político mais importante do mundo, os norte-americanos terão de decidir entre dois caminhos para a mais relevante das democracias modernas

Realizado cinco meses antes da eleição, o debate entre os dois pré-candidatos à presidência dos Estados Unidos — os partidos Republicano e Democrata ainda não oficializaram Donald Trump e Joe Biden como os indicados para a corrida à Casa Branca — revelou duas visões antagônicas sobre democracia. Como de hábito, Trump manteve a postura niilista, negando fatos e acusações de maneira peremptória e histriônica. Minimizou a emergência climática, opôs-se ao que considera dispendiosa ajuda à Ucrânia da invasão russa, satanizou imigrantes, desqualificou o juiz de Nova York que o condenou por fraude bancária.

Ao direcionar sua munição contra o adversário democrata, Trump manteve o estilo agressivo. Tachou o governo Biden de "pior da história dos EUA", responsabilizou-o pela inflação duradoura, acusou-o de frouxidão na guerra da Ucrânia. E, com a ironia típica, colocou em dúvida a concatenação de ideias do chefe da Casa Branca, vocalizando a preocupação cada vez maior sobre as condições de Biden para concorrer à eleição.

O atual titular da Casa Branca, por sua vez, também manteve um tom altivo. Chamou Trump de condenado pela Justiça, acusou de entregar uma administração federal caótica, valorizou os avanços nos serviços de saúde norte-americanos e justificou as ações de seu governo na guerra, com apoio das Nações Unidas e do G7, o grupo das sete maiores economias. E disse que o rival republicano incitou o ataque ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021.

A percepção generalizada do primeiro embate entre os presidenciáveis é de que Trump saiu vitorioso do confronto com Biden. E que a candidatura de Biden enfrenta sério perigo de fracasso. Ainda durante o debate, os democratas já discutiam a possibilidade, cada vez mais evocada, de o atual presidente abrir mão da reeleição. Enquanto isso, a Casa Branca informava, em um comunicado sintomático, que o presidente estava se recuperando de uma gripe, por isso, a voz estava frágil durante o debate.

O desempenho frustrante de Biden não representou apenas um malogro para os democratas. Despertou, para muitos nos Estados Unidos — e no mundo —, uma preocupação com o retorno de Donald Trump ao comando da maior potência econômica e militar do planeta. O republicano é sinônimo de tensionamento dentro e fora da América, com implicações nas relações internacionais, na economia global e na geopolítica.

Mais do que escolher entre um republicano e um democrata para o cargo político mais importante do mundo, os norte-americanos terão de decidir entre dois caminhos para a mais relevante das democracias modernas. Uma vitória de Trump necessariamente redundará em novo estresse político e institucional em escala global, posto que o republicano não demonstra muito apreço pelo establishment, dando mais peso às suas convicções, consideradas populistas por muitos. Biden, por sua vez, tem o ônus de ser governo, e governos são frequentemente criticados por não responderem às demandas da sociedade com a devida rapidez. O democrata, porém, nunca deixou dúvida de que respeita o Estado Democrático de Direito e a Constituição dos Estados Unidos — compromisso não tão evidente na postura de Donald Trump. Na quinta-feira, após três tentativas dos debatedores, o republicano disse que respeitaria o resultado das eleições, contanto que fossem "justas" e "legais". Eis as condições do candidato que assusta multidões.

 

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