CartaCapital
A linguagem das finanças produz e enfeitiça as percepções dos sujeitos guiados pelo desejo
No período recente, especialistas e sabichões
aplicaram seus palpites sobre a comunicação do Banco Central e
o rumo futuro das taxas de juro. O tom geral exibido pelas colunas de opinião e
editoriais é de que o “BC andou falando demais”. Essa “comunicação excessiva”,
dizem os entendidos, aumentou a volatilidade sobre juros, câmbio e expectativas
de inflação. O ideal para o mercado, dizem as vozes que ecoam nos
corredores da Faria Lima, seria que o BC adotasse um comportamento autômato
(não autônomo), seguindo as sugestões para a política monetária sinalizadas
pelo boletim Focus e pela curva longa de juros.
Na posteridade da decisão do Comitê de Política Monetária do Banco Central esgrimiram-se controvérsias a respeito do acerto ou equívoco, porventura lobrigados nos embornais dos economistas da instituição “Independente”. Lá e cá, contra e a favor, os argumentos se cingiram a digressões sobre o cumprimento das regras do regime de metas e seus prováveis danos ou benefícios causados ao desempenho da economia ao longo dos próximos anos.
O debate é pertinente e necessário, mas
podemos suspeitar que é insuficiente. Para asseverar a insuficiência é
desejável registrar a dimensão inexoravelmente social e, portanto, política,
antropológica e cultural da economia. Assim, somos constrangidos a conceber a
economia como uma dimensão da vida social, condenada a compartilhar seus
movimentos com as demais dimensões da convivência humana.
Vamos invocar o documento Considerações para
um Discernimento Ético sobre Alguns Aspectos do Atual Sistema Econômico-Financeiro.
Publicado pelo Vaticano, esse documento assevera o afastamento da
economia atual das condições de vida das pessoas de carne e
osso. Comandada pela finança, a economia contemporânea tornou-se
autorreferencial. Nóis cum nóis. É nóis.
Para o economista James Galbraith, o regime
de metas de inflação não passa de xamanismo
No artigo The Rise of Autonomous Financial
Power, Katharina Pistor indaga “se os Estados poderiam usar as finanças ‘para
seu próprio empoderamento’ em vez de se submeterem ao poder das finanças”.
Pistor exibe seu ceticismo diante do poder autônomo que as finanças acumularam
em relação aos Estados. As razões podem residir não apenas na dificuldade que
os Estados enfrentam para afirmar sua autonomia em relação às finanças. Os
poderes dos mercados financeiros são infraestruturais: “Surgem e operam por
meio de instituições que são amplamente consensuais e penetram profundamente na
sociedade. Eles incluem os poderes de tributar, coletar informações,
administrar a economia, mas também o sistema legal”.
Depois de o Federal Reserve reduzir a policy
rate, o economista James Galbraith qualificou como xamanismo as políticas
monetárias calcadas no regime de metas de inflação. Em uma definição rápida, o
xamanismo é uma prática religiosa pela qual se acredita que um especialista
treinado interage e influencia o mundo espiritual por meio de um estado de
transe ou meditativo. Galbraith dispara: “Cada elemento dessa definição se
aplica à formulação de políticas monetárias hoje, conforme ilustrado pela
reação à decisão do Federal Reserve dos EUA, em 18 de setembro, de cortar a
taxa de juros de curto prazo em 50 pontos-base”.
O filho de John Kenneth Galbraith comenta a
celebração de Paul Krugman. O nobelizado exclama nas páginas de The New York
Times: vencemos a inflação e a economia seguiu sua caminhada de
crescimento. Krugman, em seguida oferece sua visão do ser espiritual
específico. “Se Powell diz uma coisa, significa X; se ele diz outra coisa,
significa Y.” De acordo com Krugman, “são as palavras e a especificidade” que
importam. Ou, para colocar de outra forma, é o “estado de consciência
culturalmente específico e roteirizado”. Isso, Krugman nos diz, “determinará o
efeito nas taxas de juro de longo prazo e, portanto, no desempenho econômico”.
As palavras e seu significado são definidos socialmente. Em As Palavras e as Coisas, Michel Foucault trata da relação entre a linguagem e a estruturação material das sociedades ao longo da história. Foucault distingue a teoria da linguagem clássica, cuja soberania das palavras e conceitos era vinculada à propriedade natural e divina das coisas reais e visíveis, da teoria da linguagem esculpida por obra do Iluminismo, que colocou o homem e seu cogito como soberanos sobre as palavras e as coisas, igualmente reais e visíveis, mas, que a partir da época das luzes, foram subordinadas à designação dos desejos e da autonomia do próprio homem.
Foucault assegura que, no pleito dos novos
saberes permitidos pelo Iluminismo, a análise da troca, da transferência entre
formas da riqueza, se dissocia da análise moderna da linguagem. Enquanto a
filosofia moderna tratou de humanizar e socializar os mecanismos
cognitivos-comunicativos da linguagem, a economia política tratou de reificar
as relações sociais de produção e de troca. O dinheiro foi algemado ao papel de
símbolo genérico que tão somente transporta valores e utilidades. Por isso,
assinala Foucault, a “história natural instaura, de si mesma, para designar os
seres, um sistema de signos e, por isso, é uma teoria. As riquezas são signos
produzidos, multiplicados, modificados pelos homens; a teoria das riquezas está
ligada, de ponta a ponta, a uma política”.
Frisamos a palavra “política” que aparece
para designar o conteúdo social da geração e da distribuição da riqueza.
Designa também a dimensão do poder, do conflito e da constante necessidade de
calçar os desejos particulares em uma forma geral que permite sua realização,
ou seja, de atribuir significado ao simbólico. A linguagem é um fundamento
elementar da vida em sociedade, mas também é um intenso modelador das formas de
vida e de convivência. Quem comanda a linguagem, comanda a estrutura de poder
na sociedade, e, portanto, a formação das ideias, a criação e assimilação dos
hábitos, os desejos e necessidades, úteis ou inúteis.
O fenômeno mais representativo que expressa a
relação entre o poder e a linguagem, e, mais ainda, da linguagem como forma de
poder, é a colonização das capacidades cognitivas e comunicativas do sujeito
moderno pela linguagem tecnofinanceira. A linguagem das finanças produz e
enfeitiça as percepções dos sujeitos guiados pelo desejo, sobretudo pelo desejo
de possuir e se apropriar, exclusivamente mediados e realizados pelo dinheiro,
responsável por cingir a contradição entre o desejo da apropriação privada da
riqueza social e sua conservação como potência, isto é, como símbolo privado de
poder e distinção social.
Christian Marazzi sustenta que essa
“natureza” peculiar do dinheiro é responsável por criar o universo de
convenções sociais sobre as quais se assentam as decisões sobre a fixação e a
conservação das formas da riqueza. “Quando, por exemplo, o Tesouro dos EUA
escreve em uma nota de 20 dólares ‘Esta nota tem curso legal para todas as
dívidas públicas e privadas’, não está apenas descrevendo um fato, mas, na
verdade, criando um. É um enunciado performativo em que dizer algo torna esse
algo verdadeiro… O ato linguístico-comunicativo é constitutivo do dinheiro.”
Dizem “inflação”, “crise fiscal”, na
esperança de que do símbolo apareça a coisa
Nesta forma performática, a linguagem perde
sua forma referencial e concreta. Desaparecem os significados substantivos
responsáveis por articular o aparato cognitivo-comunicativo dos seres às
percepções sensíveis que chegam à consciência individual e coletiva. Como
resultado, aponta Franco Berardi, “o signo conectivo se recombina
automaticamente na máquina da linguagem universal: a máquina digital-financeira
que codifica o fluxo existencial. A palavra é conduzida para esse processo de
automação, de modo que a encontramos congelada e abstraída em meio à vida
esvaziada de empatia de uma sociedade incapaz de solidariedade e de autonomia”.
Na impossibilidade da substantivação das percepções e a transformação destas em
significados reais e concretos, as subjetividades humanas são suprimidas em
favor de objetividades simbólicas que alimentam o culto ao ego, a obsessão
aquisitivo-consumista, o dever e a prática do individualismo meritocrático.
A ideia da linguagem como máquina refere-se
ao fato de que entre significados e símbolos existe a articulação dos desejos –
de instantes criativos do inconsciente – com as necessidades conscientes, que
realizam, eliminam e reinstauram o desejo simultaneamente. As ordens de compra
e venda realizadas pelos comerciantes de dinheiro e de títulos de propriedade
sobre a riqueza financeira respeitam um ritmo frenético guiadas por algoritmos
potentes capazes de registrar ganhos e perdas em tempo real. O cérebro comunicante
da finança capitalista funciona, portanto, por meio de estímulos simultâneos de
orgasmo e castração, afirmação e negação, capazes de gerar euforia e terror, e
que, quase sempre, obrigam governos e Bancos Centrais à submissão aos desejos
privados.
A respeito da ação comunicativa dos Bancos Centrais, Marazzi é decisivo: “A soberania e a politicidade do dinheiro não são, em outras palavras, exclusivas de momentos de disfunção, de desequilíbrios temporários nos mercados, uma exceção que confirmaria o domínio da economia competitiva de mercado. A soberania monetária é, acima de tudo, de tipo dialógico, impregnada de ‘experimentos comunicativos’ destinados a forjar essa ‘confiança pública’ intangível, essa confiança pública indispensável para fazer funcionar toda a máquina econômico-monetária”.
O movimento recente do financismo brasileiro
foi entregar às suas mídias e seus economistas o dever de sinalizar suas
desconfianças. A despeito dos fatos, do crescimento da economia e dos empregos,
usam da linguagem performativa para instalar o terror sobre os rumos da
política monetária e fiscal. Dizem “inflação”, “crise fiscal” etc., na
esperança de que do símbolo apareça a coisa.
Do outro lado do reino, onde habitam os
cidadãos comuns, o capitalismo dominado pela linguagem
performativa consome o potencial cognitivo da sociedade e o mobiliza
para o reinado das formas simbólicas da finança e da tecnologia digital. Em sua
dimensão recriativa (ou seria recreativa?), o capitalismo entrega aos que estão
enclausurados em seu movimento um cardápio variado de opções para emular os
prazeres e desprazeres da sociabilidade semiótica: likes, Prozac, bets,
influencers, shorts, reels, reacts, games, coachs etc.
A incompatibilidade entre o fluxo de produção
do desejo – os símbolos e signos ensinados pelo individualismo competitivo – e
os meios de realização desse desejo conduz à castração dos sentimentos comuns
de empatia, compaixão, amizade, amor e civilidade. Em contrapartida, os
resíduos disparados pela máquina digital-financeira intoxicam os ambientes de
sociabilidade, a escola, o trabalho, a universidade, o bairro, a comunidade e,
por fim, a convivência democrática. •
Publicado na edição n° 1330 de CartaCapital, em 02 de outubro de 2024.
Nenhum comentário:
Postar um comentário