domingo, 16 de fevereiro de 2025

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Prisões precárias são incentivo ao crime organizado

O Globo

Omissão das autoridades facilita o aliciamento de detentos pelas facções criminosas que mandam nos presídios

A população carcerária brasileira continua a crescer sem que sejam resolvidos os problemas da segurança pública. De 2013 a 2023, o total de encarcerados aumentou 46%, passando de 581 mil para 850 mil, segundo relatório do Ministério dos Direitos Humanos. No final do primeiro semestre do ano passado, eram 889 mil presos, num sistema com capacidade oficial para abrigar 489 mil. A taxa de encarceramento subiu de 301 para 408 presos por 100 mil habitantes entre 2014 e 2024. Desde 2020, o Brasil passou da 26ª para 14ª posição na lista dos países que mais prendem, mantida pelo projeto World Prison Brief (liderada por El Salvador, com 1.659).

As prisões brasileiras estão longe de ser capazes de ressocializar os presos e funcionam como escolas para criminosos. O Supremo Tribunal Federal (STF) tem razão em apontar violações de direitos humanos e práticas inconstitucionais nos presídios, quase todos superlotados, com exceção dos poucos presídios federais. “Não se faz segurança pública nem se ressocializa em um sistema superlotado”, diz André Garcia, secretário Nacional de Políticas Penais do Ministério da Justiça.

Há problemas na circulação de ar, umidade, presos dormindo no chão, colchões velhos, insetos e comida de má qualidade. A deficiência na ventilação facilita a propagação de vírus e bactérias. Em 2023, como noticiou O GLOBO, mais de 7,8 mil presos tinham tuberculose. Mais de 10 mil testaram positivo para HIV, e 9 mil tinham sífilis. Ainda assim, 25% das penitenciárias não contavam com qualquer estrutura de saúde. Quase sempre, as prisões têm apenas um profissional da área, que trabalha apenas quatro horas diárias, diz Carolina Diniz, coordenadora do Conectas Direitos Humanos.

Os doentes, segundo ela, demoram a receber atendimento médico ou a conseguir transferência para algum hospital, geralmente por falta de escolta. “Tem gente que morre antes de encontrar um médico”, diz. Há também armazenamento inadequado de medicamentos e pouco controle nas doses, prejudicando o tratamento das doenças. Problemas de saúde responderam por 46,8% das 3.091 mortes nos presídios em 2023, número que deve ser maior, por não considerar as ocorridas em hospitais.

Outro efeito nefasto das condições precárias é facilitar o aliciamento dos presos pelas facções que comandam o crime de dentro dos presídios. Elas os convencem com facilidade a aderir a seus ritos e regras cruéis, oferecendo-lhes em troca melhorias na situação dentro da cadeia. Ao deixar as prisões em situação de calamidade, o Estado ajuda a encaminhar o preso para o crime organizado.

O trabalho, garantido pela Lei de Execuções Penais com remuneração de dois terços do salário mínimo, não tem funcionado como antídoto. Apenas 19,5% dos presos exerciam alguma atividade no segundo semestre de 2023 — outra porta aberta para o aliciamento pelas facções criminosas, por meio da ajuda às famílias. Não foi por acaso que Primeiro Comando da Capital e Comando Vermelho, as duas maiores facções brasileiras que recentemente firmaram uma trégua, foram criados dentro de presídios. Ambas mantêm controle de penitenciárias e atuam no tráfico interno e externo de drogas. Foram e ainda são ajudadas pelas más condições das penitenciárias brasileiras, resultado da omissão do Estado brasileiro.

Exploração de poços subterrâneos ameaça recursos hídricos do Brasil

O Globo

Mais da metade dos rios tem perdido água para o subsolo, com risco de comprometer sua vazão, diz estudo

A fartura de recursos hídricos no Brasil transmite a impressão de que a água, necessária para gerar energia e conservar os ecossistemas, é inesgotável. Mas é uma impressão falsa. Um estudo de cientistas da USP em conjunto com pesquisadores americanos, publicado na revista científica Nature Communications, mostrou que mais da metade dos rios brasileiros tem perdido água para o subsolo, com risco de comprometer sua vazão. Além dos riscos ao abastecimento das cidades e ao equilíbrio dos ecossistemas, a exploração sem controle das águas subterrâneas pode provocar afundamento do solo, afetando a infraestrutura, com colapso de superfícies e surgimento de crateras.

De um total de quase 18 mil poços artesianos analisados em todo o país pelos pesquisadores, 55,4% apresentam nível de água subterrânea abaixo da superfície do riacho mais próximo. Isso sugere que a água dos rios se infiltra no subsolo, afetando a vazão e podendo levar ao esgotamento progressivo. A infiltração é natural. Contribui para recarregar os reservatórios subterrâneos e auxiliar no fluxo dos rios nos períodos de estiagem. Mas, quando ocorre de forma desequilibrada, com a exploração indiscriminada de poços, pode acarretar a redução da vazão. O problema é agravado por fatores como desmatamento e compactação do solo para atividades agrícolas ou urbanização.

Não se trata apenas de ameaça para o futuro. O estudo mostra que o problema dos “rios perdedores”, observado em países como Índia e Estados Unidos, já aflige o Brasil. Na Bacia do São Francisco, 61% dos rios analisados correm risco de perda de vazão devido à infiltração. Na do Verde Grande, afluente do São Francisco, o quadro é ainda pior: 74% dos cursos d’água podem ser afetados. A situação é crítica também na região conhecida como Matopiba (formada por Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), fronteira agrícola onde a expansão da agricultura irrigada aumentou o uso da água subterrânea.

Autoridades deveriam seguir as sugestões dos cientistas para evitar o agravamento do problema. Uma delas é integrar a gestão das águas na superfície e no subsolo. Outra é monitorar constantemente os poços e o nível dos rios, de modo que a exploração não ultrapasse os limites sustentáveis. Além disso, eles recomendam o uso de sistemas de irrigação que reduzam o desperdício e investimentos em pesquisas e tecnologia que permitam gestão mais eficiente dos recursos hídricos.

O uso de poços, especialmente em regiões áridas, é fundamental para a agricultura e, consequentemente, para a população brasileira, ao aumentar a oferta de alimentos. Mas é preciso manter equilíbrio para não afetar a vazão dos rios, prejudicando quem se pretende beneficiar. Para isso, é essencial ter um sistema regular de monitoramento. Outros problemas podem reduzir a vazão dos rios, como secas extremas em decorrência das mudanças climáticas. Isso ficou evidente em 2024 no Amazonas. A associação dos efeitos do aquecimento global à superexploração das águas subterrâneas pode ter consequências catastróficas.

Guerras mudam mapa do gasto militar global

Folha de S. Paulo

Despesa com Forças Armadas, de 1,94% do PIB em 2024, é a maior desde a Segunda Guerra, puxada por EUA, China e Rússia

Desde que a Rússia de Vladimir Putin enviou seus tanques através da fronteira ucraniana, na invasão que completará três anos no próximo dia 24, o mundo tornou-se cada vez mais uma praça de armas.

O investimento dos países em defesa saltou de 1,59% do PIB planetário em 2022 para 1,80% no ano seguinte e 1,94%, no passado. Nunca, desde a Segunda Guerra Mundial, gastou-se tanto com Forças Armadas.

Os dados sobre a despesa militar global, relatados anualmente pelo britânico Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, permitem também vislumbrar as mudanças no mapa bélico.

Europa, berço das duas guerras mundiais, é o exemplo mais gritante, obra da insegurança gerada pela agressão russa que Donald Trump parece querer recompensar com sua proposta de negociar a paz com Putin.

Lá, a Alemanha rompeu com pruridos pelo passado e abriu o bolso. Passou de sétimo para quarto maior investidor em defesa do mundo, despendendo US$ 86 bilhões em 2024, 23,2% a mais do que em 2023.
Pela primeira vez desde a Guerra Fria, irá gastar mais com armamentos que os 2% do PIB recomendados pela Otan, a aliança militar liderada pelos EUA.

Ainda assim, mantém-se longe da campeã continental, a Polônia com seus 4,12% do produto aplicados em defesa —e em 15º lugar no ranking britânico de valores absolutos, subindo cinco posições em quatro anos.

Ucrânia sob ataque gastou os mesmos US$ 28,4 bilhões, mas nesse caso a maior parte vem da ajuda militar externa. É o país com maior gasto mundial em relação a seu PIB, 15,4%.

O caso polonês aponta também para a internacionalização da defesa: o país se tornou um dos principais clientes da indústria da Coreia do Sul —aliás 10º posto.

Logo acima da dupla do Leste Europeu está outra novidade geopolítica, Israel. Afundado nas guerras decorrentes do ataque do Hamas em 2023, o Estado judeu investiu US$ 33,7 bilhões no setor, estimulando sua indústria e fornecedores americanos.

Outros atores aparecem mais discretamente do ponto de vista nominal, mas com aporte pesado. Caso da Argélia, com 8,6% do PIB, que acaba de se converter na primeira cliente externa da nova geração de caças russos.

No topo da lista estão as maiores potências militares. Em terceiro está a Rússia, com 6,7% do PIB gastos no setor. Ajustada pelo poder de compra da moeda, sua despesa equivale à de todos os 30 países europeus da Otan.

O colosso chinês vem em segundo lugar. Despende nominalmente, contudo, pouco mais de um quinto do quase US$ 1 trilhão dos campeões Estados Unidos.

A maior potência da história gastou em um único dia quase o dobro do que o Brasil investiu em defesa —pessoal e custeio à parte— no ano passado. Na periferia da geopolítica, os brasileiros seguem tímidos, tendo caído para o 17º lugar no ranking.

Nhenhenhém contra o Ibama

Folha de S. Paulo

Pressão de Lula para autorizar prospecção de petróleo na foz do Rio Amazonas conflita com autonomia de órgãos de Estado

O baixo teor republicano das convicções de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sobre instituições de Estado revela-se em suas falas sobre extração de petróleo e gás ao largo da foz do Rio Amazonas.

O presidente exige que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) se curve aos planos do governo de turno, em atropelo à missão precípua do órgão.

Durante entrevista em Macapá (AP) na quarta-feira (12), Lula defendeu perfurações prospectivas na chamada margem equatorial: "Se depois a gente vai explorar, é outra discussão. O que não dá é para a gente ficar nesse lenga-lenga. O Ibama é um órgão do governo, parecendo que é um órgão contra o governo".

Por óbvio, os bens tutelados pelo Ibama são recursos naturais renováveis, não combustíveis fósseis. Mas cabe a ele promover estudos sobre o impacto ambiental de atividades poluidoras, como a indústria petroleira, e fazer recomendações técnicas para licenciar, ou não, empreendimentos.

A região costeira do Amapá, que fica próxima às áreas petrolíferas em questão, tem alta produtividade biológica. Caracteriza-se por extensos manguezais, locais de reprodução e sustento de diversas espécies de peixes, crustáceos, aves e mamíferos.

Esses ecossistemas são sensíveis a derramamentos de óleo que podem ocorrer em plataformas oceânicas. Um dos piores foi o da Deepwater Horizon no Golfo do México, em 2010, que chegou a vazar 1,3 milhão de litros de petróleo cru por dia e espalhou uma mancha de 1.500 km², que alcançou a Louisiana e o Texas.

A Deepwater estava a menos de 100 km da costa, já o bloco 59 da margem equatorial se encontra a mais 160 km de Oiapoque (AP). Cabe realizar investigação detalhada de correntes oceânicas para simular a probabilidade de um vazamento chegar ao litoral brasileiro ou da Guiana Francesa.

Ademais, há que delinear protocolo em caso de acidentes. Não se trata só de fazer operações midiáticas para resgate de animais cobertos de piche, mas de projetar a contenção da mancha e o salvamento da tripulação na plataforma, entre outras providências —considerando que os centros urbanos com boa infraestrutura estão a centenas de quilômetros.

O processo é complexo, e por isso se impõe dar ao Ibama a latitude de ação necessária para emitir parecer técnico lastreado na melhor informação. Ao acusar o instituto de ser contra o governo, Lula exibe mais voluntarismo do que apreço pela independência de órgãos de Estado, aos quais cabe zelar pelo bem público.

O diabo à espreita

O Estado de S. Paulo

Com Lula enfrentando a maior impopularidade já registrada em seus mandatos e sem ideias novas, resta ao lulopetismo aplicar a máxima de Dilma e ‘fazer o diabo’ para ganhar a eleição

Pesquisa Datafolha divulgada anteontem mostrou uma queda significativa na popularidade do governo do presidente Lula da Silva: 41% dos brasileiros o avaliam negativamente, enquanto apenas 24% o veem de forma positiva. Foram 11 pontos de queda em apenas dois meses, um tombo inédito, segundo o Datafolha, se comparados os três mandatos do petista, confirmando tendência já detectada em janeiro pela Quaest. O declínio é ainda maior justamente entre as pessoas que votaram em Lula: 20 pontos porcentuais. Mas a notícia mais dura para o presidente e o PT é que a queda foi puxada pelos eleitores que até outro dia eram considerados cativos do lulopetismo, isto é, as mulheres, os negros, os nordestinos, os mais pobres e os menos escolarizados.

Tais dados não assombram apenas o lulopetismo. Afinal, trata-se da expressão, em números, de incômodos que se aprofundam em parte significativa do País. A base que elegeu Lula em 2022 está frustrada e descontente. A franja da base, isto é, setores que compunham a chamada frente ampla (liberais sociais, progressistas moderados, empreendedores individuais, eleitores não petistas que votaram nele por rejeitar o bolsonarismo), já demonstra insatisfação há meses. Esses movimentos se dão enquanto se constata que o governo é uma soma de atos e resultados medíocres, de uma equipe ministerial disforme e de qualidade duvidosa e de um comando sem clareza de propósitos.

Importam menos, nesse caso, indicadores oficiais positivos, como emprego em baixa e crescimento do PIB em alta, se tais índices não se traduzem em renda suficiente para enfrentar a carestia, sobretudo dos alimentos. O que importa de verdade é que Lula venceu a eleição prometendo picanha e cerveja a preços módicos e não está entregando. Pior, não aparenta ter a menor ideia do que fazer. Não tem um plano nem ideias novas. Só faz reclamar dos outros: do dólar que subiu, dos juros que não caem, dos empresários que não pagam bons salários.

Exegetas do Palácio do Planalto nem sequer podem argumentar que mudanças em curso trarão benefícios no longo prazo. Seria o caso da agenda climática, de mudanças estruturais na educação ou de avanços reais na saúde. Mas Lula não tem como recorrer a esse argumento, pois pouco ou nada tem a exibir nessas frentes. Com efeito, o governo recorre a culpados externos – as fake news, a especulação do mercado financeiro, Donald Trump, a imprensa. E assim, aos poucos, mais do que um quadro de malaise, a insatisfação parece configurar-se como rejeição de fato, uma inquietação cada vez mais aguda com os rumos da gestão. E o mais grave: a percepção de que não só Lula não vem cumprindo promessas de bem-estar, como não tem a menor ideia do que propor ao País.

O pensamento rupestre do PT faz o terceiro mandato se concentrar não na atualização das ideias e iniciativas de governo para atender a novas demandas da população. O elixir lulopetista segue a prescrição do passado, com a conjugação de programas sociais, benefícios de transferência de renda (atualizados sob a forma do Pé-de-Meia, por exemplo), dirigismo na economia, nenhuma atenção a microrreformas que favoreçam o mundo empreendedor e altíssima atenção à militância esquerdista. O resultado é um nível baixíssimo de avaliação líquida, hoje -17 (o saldo entre os 24% que o avaliam positivamente e os 41% que o veem de forma negativa).

Ainda é cedo para dizer se Lula está diante de um fracasso circunstancial ou definitivo. No início do terceiro ano do seu mandato, Jair Bolsonaro exibia -9 de avaliação líquida e quase venceu em 2022. A situação atual é mais grave, mas ainda assim se trata de Lula, um inquestionável líder popular e um prestidigitador experiente na arte eleitoral. Entretanto, indo a sua popularidade ladeira abaixo, pressionado por resultados imediatos e engolfado pela falta de ideias, Lula pode se sentir tentado a aplicar desde já a famosa máxima de Dilma Rousseff, segundo a qual, em eleição, “a gente faz o diabo”.

É onde mora o perigo. Consta que uma ala do PT já pede uma guinada à esquerda – como se o atual governo, perdulário e estatista, já não estivesse suficientemente lá. Mas é claro que, sendo vermelho o diabo, sempre é possível ir além.

A COP-30 não é festa

O Estado de S. Paulo

Atraso no anúncio de novas metas climáticas e agenda complexa de negociações antes e durante o evento desabonam qualquer tentativa de dar à conferência de Belém um clima de festa

A nove meses da Conferência do Clima das Nações Unidas (COP-30), em Belém, apenas 10 entre 197 países apresentaram suas novas metas de cortes de emissões de gases de efeito estufa, segundo divulgado recentemente pelo grupo científico internacional Climate Tracker. A atualização desses objetivos, chamados NDCs (a sigla em inglês para Contribuição Nacionalmente Determinada), era prevista para os signatários do Acordo de Paris, pacto destinado a ajustar os esforços a fim de mitigar os efeitos das mudanças climáticas no planeta. Não é algo mandatório nem o seu atraso é passível de punição, portanto a ONU deve estender o cronograma. Entretanto, o balanço oferece uma boa medida do desafio em formação no horizonte.

Só a constatação do tamanho do dever de casa a ser feito até novembro – quando Belém receberá negociadores, lideranças políticas, organizações da sociedade civil, ambientalistas, jornalistas, lobistas e representantes dos 197 países que compõem a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC) – já deveria ser suficiente para dizer com todas as letras: a COP-30 não é uma grande festa, um espaço midiático, uma feira de negócios ou um festival de oba-oba cultural e simbólico. É, isso sim, um processo multilateral complexo, que envolve realidades e interesses distintos e que depende de um esforço gigantesco de todos os países para produzir resultados úteis para o futuro do planeta.

Como costuma lembrar a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, a gravidade da era dos eventos climáticos extremos não deixa espaço para um clima de festa. Que ela então convença o seu chefe, o presidente Lula da Silva, e demais autoridades envolvidas na “COP da floresta”. Porque não faltam sinais de uma visão ainda torta sobre o seu significado – inclusive do governo do Pará, anfitrião do encontro.

Noves fora o simbolismo de ser realizada em plena Amazônia, a oportunidade não é difundir a região como destino turístico, tampouco satisfazer o desejo de Lula da Silva de ser reconhecido como o salvador do planeta, ou ainda aumentar a musculatura política de ninguém por seu eventual sucesso, incluindo Marina, o governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), ou políticos assumidamente negacionistas.

É significativa também a preocupação sobre as dificuldades de infraestrutura e logística que Belém apresenta, tema explorado pelo presidente Lula nos últimos dias. Durante agenda para entregar unidades habitacionais, ele disse que não iria “enfeitar” a cidade e sugeriu que as pessoas durmam ao ar livre se não houver hotéis suficientes. Convém lembrar que dificuldades de infraestrutura foram comuns em outras conferências, sobretudo pelo seu crescente tamanho. A primeira COP, realizada em Berlim, na Alemanha, em 1995, contou com a participação de 3.900 pessoas. Era um tempo de conferências mais restritas, pouca participação da sociedade civil e baixa atenção da mídia. Mas na última, no Azerbaijão, foram mais de 40 mil presentes. E nem foi a maior: no ano anterior, 70 mil pessoas estiveram na COP-28, em Dubai.

Os maiores desafios, porém, não se concentram na disponibilidade de hotéis ou na programação cultural paralela, como se viu nos delírios paralelos à reunião do G-20, no Rio, em que repercutiu mal o conjunto de eventos organizados pela primeira-dama Janja da Silva. Eles abrangem complexas negociações prévias que ocorrem antes de a Conferência começar oficialmente, ainda mais com o fator Donald Trump na Casa Branca.

A timidez da COP-29 deixou sobre Belém uma tarefa dupla gigantesca. De um lado, resgatar a credibilidade das negociações climáticas, em parte desmoralizadas pela implementação lenta da UNFCCC, que completa 33 anos, e do Acordo de Paris, que faz dez anos. De outro, resolver o que a anterior não resolveu, o que inclui aperfeiçoar o mecanismo de financiamento climático, dar um passo na direção dos indicadores que nortearão os planos nacionais de adaptação à mudança do clima e, claro, discutir se as metas, em conjunto, são compatíveis com o objetivo de conter o aquecimento global.

Eis por que alguns têm definido a COP-30 como a “COP dos resultados” ou a “COP da implementação”. São atributos que decididamente não combinam com a sensação de que o Brasil sediará uma Copa do Mundo.

‘Almoço grátis’ na Justiça do Trabalho

O Estado de S. Paulo

Após STF e TST afrouxarem a reforma trabalhista, volume de ações voltou a subir, superando 2 milhões em 2024

Em um flagrante retrocesso, o número de novas ações na Justiça do Trabalho superou a marca de 2 milhões no ano passado. Foi a primeira vez que isso aconteceu desde que a reforma trabalhista entrou em vigor no País, há pouco mais de sete anos. Essas alterações legislativas visavam, entre outros objetivos, à modernização da relação capital-trabalho e à diminuição da judicialização trabalhista, considerada um dos fatores que inibem os investimentos no Brasil.

A redução no número de processos foi um dos primeiros efeitos visíveis da reforma. A quantidade de ações passou de 2,6 milhões, em 2017, para 1,7 milhão, em 2018, e manteve tendência de queda até 2020. Esse encolhimento se deu em razão de dispositivos reformados para dar mais racionalidade aos processos, entre eles o regramento da justiça gratuita e o pagamento de honorários de sucumbência, devidos pela parte derrotada ao advogado da parte vencedora.

Ao aprovar a reforma, o Congresso tentou dar fim à chamada litigância aventureira, que ocorre quando a Justiça é acionada mesmo quando não há direito algum a ser pleiteado ou quando se fazem pedidos exorbitantes em relação àquilo que é de fato devido. Com medo da derrota, muitos trabalhadores contiveram o ímpeto de pedir o que bem lhes convinha.

Porém, uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), de 2021, começou a mudar essa realidade ao definir que o trabalhador beneficiário de justiça gratuita e derrotado no processo não era mais obrigado a arcar com a sucumbência, como definia a lei. Para Rogério Neiva, juiz do Trabalho, ex-auxiliar da vice-presidência do Tribunal Superior do Trabalho (TST) e especialista em métodos de conciliação, isso explica o aumento da litigância, haja vista que “o custo é zero” para essa parcela dos trabalhadores. Segundo ele, “a situação voltou ao cenário anterior à reforma trabalhista, de almoço grátis”.

Para piorar, em 2024 o TST decidiu que o juiz deve conceder o benefício de justiça gratuita automaticamente a quem solicitá-lo. Para tanto, basta uma mera declaração de pobreza. Antes, a lei definia que o juiz poderia conceder esse benefício a quem ganhasse salário inferior ou igual a 40% do teto do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), devendo o trabalhador com vencimentos acima desse valor comprovar sua insuficiência financeira. Agora, no entanto, cabe ao empregador atestar que o litigante pode bancar o processo, em uma nítida subversão do espírito da reforma. Assim, um dos pilares da nova CLT ruiu, e aí estão os números para comprovar. Os 2.117.545 novos processos representaram um aumento de 14,1% em relação a 2023.

A sanha do Judiciário de ora reescrever a lei, ora chancelá-la, mostra que, desde a sua promulgação, a reforma trabalhista dá dois passos para a frente e um para trás. Com isso, as regras que propunham colocar o País no presente e torná-lo apto a enfrentar o futuro, deixando no passado ranços da CLT, patinam em virtude da jurisprudência flutuante e, não raro, conflitante com aquilo que fora aprovado pelo Congresso.

Sem segurança jurídica, tão necessária para a previsibilidade e estabilidade dos negócios, perdem empregadores, empregados e o País.

A nova ordem norte-americana

Correio Braziliense

O governo brasileiro pouco pode fazer, exceto juntar-se ao repúdio internacional às ações intempestivas da política externa norte-americana

A nova ordem norte-americana, estabelecida nas últimas semanas pelo governo de Donald Trump, constitui um ataque frontal ao multilateralismo. São graves e relevantes os fatos ocorridos recentemente: guerra comercial até com aliados históricos; tratativas bilaterais na Ucrânia e em Gaza; isolacionismo em problemas globais, como emergência climática e inteligência artificial; desligamento da Organização Mundial da Saúde; congelamento de verbas para a Assistência Internacional ao Desenvolvimento (Usaid). Essas ações põem em xeque o sistema internacional construído desde a Segunda Guerra Mundial e representam um desafio adicional à diplomacia brasileira, que será testada em diversas frentes.Desde 20 de janeiro, quando assumiu a chefia da Casa Branca, Donald Trump tem arrostado o establishment formado pelo consenso das nações ao longo de décadas.

O presidente norte-americano busca cumprir a promessa eleitoral de resgatar uma supremacia norte-americana, resumida na sigla Maga (Make America Great Again - Faça a América grande novamente, em tradução livre). Dada a importância dos Estados Unidos nas mais relevantes questões globais, a ofensiva trumpista afeta diretamente situações centrais, como a estabilidade política na Europa e no Oriente Médio, a cotação do dólar no mercado mundial, o fluxo comercial na economia global, a sustentabilidade do planeta. Corretamente, o presidente Lula afirmou que o governo brasileiro adotará o princípio da reciprocidade se os EUA avançarem no choque tarifário. Foi o mesmo tom empregado pela presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, e pelo primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, para citar apenas algumas reações de líderes mundiais.

O tensionamento nas transações internacionais coloca em xeque conquistas relevantes, como o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (Gatt), assinado em 1947, e a própria Organização Mundial do Comércio, entidade que conta com a adesão de mais de 160 países. Nesse capítulo particular, a diplomacia brasileira precisará atuar em ao menos três frentes. Em primeiro lugar, será necessário abrir uma negociação bilateral com o governo norte-americano, a fim de evitar a sobretaxa sobre itens importantes na balança comercial entre os dois países, como o aço, o alumínio e o etanol. Paralelamente, será preciso envidar esforços para reabilitar a OMC e o cumprimento de regras consagradas por acordos gerais de livre-comércio. Por último, torna-se ainda mais estratégica a busca por alternativas em outras parcerias comerciais, a fim de compensar as medidas protecionistas lançadas pela Casa Branca. Em relação à segurança global, desestabilizada pelos conflitos na Ucrânia e no Oriente Médio, o Brasil tem poder de influência limitado.

A interferência direta de Donald Trump nas negociações de paz na Ucrânia, deixando de lado a União Europeia, bem como o anúncio do plano de retirada dos palestinos da Faixa de Gaza são ações muito graves. Mas o governo brasileiro pouco pode fazer, exceto juntar-se ao repúdio internacional às ações intempestivas da política externa norte-americana. Além de ameaçar o sistema multilateral construído em resposta a conflitos capazes de varrer a humanidade do planeta, os Estados Unidos de Donald Trump reivindicam um novo posto no cenário internacional. O vice-presidente deu o tom na última sexta-feira, em reunião de cúpula na Europa: "Há um novo xerife na cidade". Trata-se de uma declaração de força, com consequências políticas e econômicas de extensão global. O mundo enfrentará tensões e incerteza, e o Brasil precisa se preparar.

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