domingo, 16 de fevereiro de 2025

O coração das trevas - Raul Jungmann

Correio Braziliense

Dados oficiais registram que dos mais de 888 mil presos — de uma população carcerária que cresce a uma média de 8,3% ao ano —, 216 mil são provisórios, ou seja, sem condenação (muitos sem sequer processo), 83% sem educação básica e 36%, jovens entre 18 e 29 anos

A segurança pública no Brasil permanecerá em um beco sem saída enquanto prevalecer a política do "tiro, porrada e bomba", exercida pelos governos estaduais, funcionalmente responsável pelo principal fator que aprofunda e resulta no crescimento do crime organizado: as prisões indiscriminadas que entopem os presídios.

Essa política, que só é pública porque se dá às vistas de todos, é a negação do sistema penitenciário como "home office" e centro de recrutamento do crime organizado — gênese, portanto, da violência e de sua estruturação.

Assim, temos "políticas de estados" — e não de Estado —, direta e funcionalmente responsáveis pela violência e insegurança que assombram os brasileiros e as brasileiras. Com o efeito colateral perverso de estimular propostas populistas que conspiram contra a democracia.

Nos debates sobre a segurança, no entanto, essa é uma questão interditada por um misto de interesses contrários, ignorância (no seu sentido estritamente léxico) e desinteresse da sociedade, que alimenta a ilusão de que da porta do presídio para dentro acabam seus problemas.

Eles apenas começam. Os que se dedicam a buscar saídas para o problema têm na recusa ao enfrentamento do tema seu maior pesadelo. A radiografia do sistema, seus números e seus resultados remetem à imagem de "Coração das trevas", empregada pelo escritor Joseph Conrad, ao descrever a colonização africana pelos europeus no século 19.

Não há exagero aí. No espaço de maior imposição da força do Estado, onde cumprem sentenças os que cometeram variados delitos, a garantia de vida é dada pelas maiores facções criminosas distribuídas em todo o sistema penitenciário nacional. O crime organizado tem base prisional e, nela, sua fonte de realimentação, refratária a mudanças, pela inapetência de sua principal vítima, a sociedade.

Quando ministro da Segurança Pública, fizemos 33 vistorias em presídios país afora, abrangendo um total de 22 mil apenados, e constatamos que 11 mil tinham armas — ou seja, um em cada dois detentos, uma estatística que não se altera para menos. O que dispensa o detalhamento das demais regalias de que desfrutam as lideranças das facções que hoje somam, pelo menos, 70 no Brasil.

Dados oficiais registram que dos mais de 888 mil presos — de uma população carcerária que cresce a uma média de 8,3% ao ano —, 216 mil são provisórios, ou seja, sem condenação (muitos sem sequer processo), 83% sem educação básica e 36%, jovens entre 18 e 29 anos.

Desses, cerca de 40% respondem por delitos de menor ofensividade, como furtos e porte de drogas para consumo pessoal (quase sempre maconha), sem antecedentes criminais, submetidos à convivência com os de alta periculosidade.

Temos, portanto, a juventude brasileira como matéria-prima do crime, pois esses jovens garantem a sua sobrevivência filiando-se a uma das muitas facções que comandam os presídios e que respondem pelas necessidades das famílias desses presos desproporcionalmente apenados e que, dentro do presídio, comandam o crime nas ruas.

Como não temos um sistema compatível com as necessidades do regime semiaberto, esse contingente, ou vai para casa sem qualquer sanção, ou acaba no regime fechado — opção estatisticamente preferida pelos julgadores, o que confirma a conclusão de que no Brasil prende-se muito e prende-se mal.

Com o preconceito e a ideologização do debate, que trava, por exemplo, uma elementar medida saneadora — a que distingue porte para consumo de porte para tráfico, em casos de flagrante —, mantemos-nos restritos ao padrão do enfrentamento físico, em uma guerra urbana sem-fim, com arrastões policiais e medidas legislativas pontuais a cada crime de impacto na opinião pública.

Aos que confundem essa linha de raciocínio com defesa da impunidade, recomenda-se o aprofundamento na questão, pois é claro o objetivo de hierarquizar os delitos para chegar às penas adequadas e proporcionais, como é dever do Estado, por meio do Poder Judiciário.

Em nenhuma proposta formal consta qualquer menção a algo que possa ser interpretado como "passar a mão na cabeça", premiando o erro, mas medidas adequadas a cada caso. Fora disso, é leitura enviesada e disseminada pelos que têm interesse na preservação do caos por dele desfrutarem em feudos que também se beneficiam dos efeitos do crime.

A ressocialização do preso, nesse contexto, ganha ares de ingenuidade romântica, mantendo o Estado incapaz de prover um robusto programa institucionalizado de prevenção social, a explicar — mas nunca justificar —, a neurótica visão repressiva e, por extensão, o sistema prisional como o fim da Justiça criminal.

Cesare Beccaria, um grande jurista e fundador da escola do Iluminismo Penal, no século 18, dizia que é sempre melhor prevenir do que punir. E, de fato, a melhor segurança pública é a preventiva, que se dá antes do delito, do crime, da desordem.

O contrário disso é o que temos em curso acelerado — o crescimento e a sofisticação do crime organizado, de natureza transnacional, que prospera e agrava a impotência do Estado — e já é o principal empregador em algumas regiões do país, segundo o Fórum Nacional de Segurança Pública. 

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