domingo, 16 de fevereiro de 2025

Fantasias – Dorrit Harazim

O Globo

Mundo atual precisa de um mínimo de retidão moral e intelectual de cada bípede capaz de pensar para além do próprio nariz

Sábado, 23 de junho de 1934. O telefone toca na casa do poeta Bóris Pasternak em Moscou. É a secretária de Josef Stálin, líder supremo da União Soviética pós-revolucionária. O camarada queria dar uma palavrinha. A histórica ligação registrada pela KGB durou cerca de três minutos, e as perguntas formuladas por Stálin vieram de chofre, sem introito:

— O que você acha de Mandelstam?

— O que se fala sobre a prisão dele nos círculos literários?

Stálin se referia à detenção, um mês antes, do também poeta Osip Mandelstam. Autor de um ácido poema contra o líder, Mandelstam o recitara privadamente para um grupo de 14 intelectuais amigos — entre eles, Pasternak. Este último admirava o colega modernista, porém considerava desnecessária e perigosa para todos a crítica a Stálin. Pego de surpresa, o autor de “Doutor Jivago” e posteriormente Nobel de Literatura (1958) conseguiu apenas articular uma resposta genérica sobre o estilo literário de cada um, resposta essa de que se arrependeria o resto da vida:

— Nós somos diferentes, Camarada Stalin. Ele é modernista, enquanto eu sou de outra tendência. Nada posso lhe dizer sobre Mandelstam — respondeu.

— Só isso? Esse é o máximo de lealdade que você demonstra a um amigo? Você é um péssimo camarada, Camarada Pasternak — retorquiu Stálin antes de desligar.

O escritor ainda tentou se reconectar com o ditador para fazer reparos. Em vão. Stálin perdera interesse. Já sabia o que queria. Ademais, o número de telefone criado pela KGB para essa única chamada já não mais existia.

Esse é o tema do livro “Um ditador na linha” (Cia. das Letras, 2024), em que o autor albanês Ismail Kadaré analisa múltiplas versões do telefonema para refletir sobre a relação entre poder e política, totalitarismo e liberdade de expressão, ditador e poeta. Além da fonte primária — a gravação feita pela KGB —, existem outras 12 versões baseadas na memória do que intelectuais russos da época — como Anna Akhmátova, Ilya Ehrenburg e Isaiah Berlin — ouviram do próprio Pasternak.

Por que evocar esse episódio agora? Porque os tempos andam bicudos, e nunca é demais lembrar quanto o mundo atual precisa de um mínimo de retidão moral e intelectual de cada bípede capaz de pensar para além do próprio nariz. No auge da Segunda Guerra Mundial, o escritor americano John Steinbeck garantia a seu editor que todas as bondades e heroísmos do mundo haveriam de ressurgir, apenas para ser novamente derrotados. “Não é que o mal vá vencer”, escreveu ele. “Isso nunca acontecerá, o mal apenas não morre.”

Em tempos de intolerância galopante, a palavra não oficial (seja ela falada, escrita, cantada ou pensada) é vista como ameaça. E, uma vez farejada, é preciso higienizá-la, por subversiva. Levantamento recente do jornal The Washington Post detectou 662 exemplos de alteração no vocabulário de 14 agências federais sob Donald Trump, alterando a comunicação em 8 mil sites do governo. A palavra “diversidade” foi banida, não terá substituto, na esperança, talvez, de assim fazer desaparecer também a comunidade LGBT+, as diferenças de gênero, raça e cor. “Mudança climática” agora atende pelo nome de “resiliência climática”. “Direitos Humanos”, “aumento de desigualdades”, “promoção de justiça social” ou “violação de direitos civis” já estão na linha de tiro. O ideal imaginado de uma América grande, branca e macho?

Já se escreveu aqui que palavras são acontecimentos, elas fazem coisas, mudam coisas, transformam tanto quem as pronuncia como quem as ouve. Governos autoritários ao longo da História sempre procuraram encurtar o vocabulário oficial, simplificar ao máximo as palavras de ordem, os diktats, ucasses ou as ordens executivas de agora.

Em seu livro sobre a emergência de novos autocratas (“Autocracia, Inc.”), a jornalista Anne Applebaum cita um memorando interno do Partido Comunista Chinês intitulado “Sobre o estado atual da esfera ideológica”. O documento de 2013 listava os principais perigos a ser enfrentados pelo presidente Xi Jinping. No topo da lista vinha a “democracia constitucional ocidental”, seguida por “direitos humanos universais”, “independência da mídia”, “independência judicial” e “participação cívica”.

Passados 15 anos desde a circulação desse documento, a China de Xi Jinping já pode se concentrar noutras preocupações, pois, na toada atual, é o próprio Trump que parece estar empenhado em enterrar a democracia constitucional tal qual a conhecemos.

O amanhã dessa distopia em curso nos foi exibido dias atrás em cena no Salão Oval da Casa Branca. De pé e à vontade, envergando boné, capote preto e camiseta, estava a criatura Elon Musk, centro das atenções. Vez por outra ele levantava do chão sua indócil cria de 4 anos, cujo nome de batismo é X Æ A-12, para acomodá-lo nos ombros. Sentado e algo acabrunhado estava o 47º presidente dos Estados Unidos. Novos tempos.


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