domingo, 16 de fevereiro de 2025

Matéria de que se faz democracia - Muniz Sodré

Folha de S. Paulo

A fragilidade democrática percebida por Bill Gates é a fatalidade de um modelo em declínio e um índice de sua inanidade

Com um livro de memóriasBill Gates vem a público para se dizer surpreso com a fragilidade da democracia norte-americana. Achava que fosse condição possível a qualquer país do mundo, menos ao seu. A declaração é de uma candura também surpreendente, vinda do bilionário, filantropo, fundador da Microsoft, alinhado entre os homens mais influentes do século. Mas relevante, porque espelha o sentimento de metade das pessoas que não votaram na ameaça a essa democracia. Inaugura a preocupação dos americanos de bom senso com a sua própria estabilidade institucional.

Um caminho simples para se compreender a cândida confiança nos alicerces democráticos da América é recorrer ao modo como isso é figurado no imaginário, matriz de crenças e convicções arraigadas. Com este foco, vale rever dramatizações de júris no cinema para identificar sketches ideológicos da democracia liberal em que a verdade na balança da Justiça parece transparecer na argumentação igualitária dos advogados, ponderada pelo juiz. Mas uma lógica utilitarista de negócios orienta (nos acordos) a redução de sentenças. E a garantia última de justiça é a Constituição, ratificada pela Bíblia. O "grand jury", tribunal de instrução, é um teatro ideológico, que faz igualdade, princípio ético constitucional, equivaler politicamente a liberdade, embora sejam conceitos diferentes.

A crer na encenação hollywoodiana, é nas delegacias e nos tribunais que se visibiliza a essência da república, uma igualdade pró-forma, cúmplice da escravidão e da discriminação dos não brancos, encoberta pela potência material. Já em 1938, Roosevelt temia: "Ouso dizer que, se a democracia americana parasse de progredir como uma força viva, buscando dia e noite melhorar, por meios pacíficos, as condições de nossos cidadãos, a força do fascismo cresceria em nosso país". Ou seja, o fascismo sempre esteve latente no senso comum.

Por isso, cresceu, reinventando-se no neofascismo moldado pela IA. A democracia vendida ao resto do mundo, quando não imposta por força militar, é como o quadro falso de um pintor, sem potência própria, sustentando numa bolha de ar as ilusões da cidadania americana. Agora, sinais de algo errado. Parece ter chegado ao ponto de saturação a forma social que abrigava no formalismo igualitário a formatação do simulacro de liberdade.

Noam Chomsky e outros críticos argutos sempre suspeitaram da corrida desenfreada para os extremos como um modo de encadeamento de coisas que só pode resultar em acontecimentos fatais. A fragilidade percebida por Gates é a fatalidade de um modelo em declínio, não ainda o estertor, mas um índice de sua inanidade. Democracia já é palavra incômoda, assim como diversidade e direitos humanos.

Donald Trump emerge da fossa moral cavada pela saturação. Criatura tóxica, impregna, inundando, espaços vulneráveis, afinado com Steve Bannon, que autodefine o seu método como "flood the zone with shit", isto é, "inundar a área com merda". A proposição expõe o bombardeio circense de ondas escatológicas sobre os cérebros da "parte errante" da população, imigrantes não brancos, minorias em busca de voz pública. Um hipercirco a ser levado a sério: Trump não é mero palhaço, é um elefante "shitting" no picadeiro. A estratégia de Bannon soa definitiva: sua é a matéria em que se transforma a democracia americana.

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