Correio Braziliense
Democracia é liberdade. E esta tem um poder
criativo capaz de se estender por uma grande capilaridade a toda a sociedade
Nessas comemorações dos 40 anos da democracia
no Brasil, devemos fazer algumas reflexões. Otávio Mangabeira dizia que a
democracia é uma plantinha tenra que necessita ser irrigada e vigiada todos os
dias. Já nós, ao tempo da União Democrática Nacional (UDN), no combate à
ditadura Vargas, tínhamos como lema que "o preço da liberdade é a eterna
vigilância".
Assim, quando todos nós, em uníssono, no país
inteiro, comemoramos a liberdade que conseguimos implantar, devemos ter em mira
que ela necessita de ser vigiada, adubada, protegida, até que se torne uma
consciência individual, de cada cidadão de nosso país, sabendo que goza dos
direitos que tem por causa do regime democrático.
Se não fosse a transição democrática, o operário Lula da Silva não teria sido jamais presidente do Brasil. Ele o foi, e é, graças ao regime democrático. E a ele devemos um governo dos trabalhadores de grandes avanços.
Assim como tenho a alegria de ver a
democracia reconhecida e proclamada neste mês, tenho a responsabilidade também
pessoal de defendê-la. Repito uma vez mais: em minhas mãos, o Brasil passou de
um estado de exceção para um Estado Democrático de Direito. Uma transição
pacífica.
O Brasil tem uma longa tradição de crises.
Testemunhei muitas delas, estudei com atenção as outras. A maior parte foram
crises que não envolviam as instituições. Mas algumas as envolviam, e o Brasil
pagou caro por elas.
Alto foi o preço da crise de 1823, que fechou
a nossa primeira Constituinte — ao afastar José Bonifácio, o novo país recusou
solução para os problemas da escravidão, da reforma agrária, da questão
indígena, da educação. Alto foi o preço de 1831, pago durante as regências.
Alto foi o preço de não se ter feito a abolição com a incorporação dos escravos
e seus descendentes à sociedade — ainda o estamos pagando. Alto foi o preço de
termos feito a República por um golpe militar e a mantermos pela fraude eleitoral
por quase 40 anos. Alto foi o preço do golpe de 1930, que nos levou a 15 anos
de um projeto pessoal. Alto foi o preço da crise de 1961, que nos afastou do
parlamentarismo ao usá-lo para tolher o mandato do presidente da República.
Alto foi o preço de 1964, com 20 anos de regime militar.
Fui o presidente, repito, que conduziu a
transição para a democracia. E ela se realizou completamente com a votação da
Constituição de 1988 — e fui o primeiro a jurá-la.
Tenho a convicção de que nossas instituições
estão fortes e capazes de enfrentar qualquer ataque, como já o fez, por duas
vezes, com os dois impeachments que tivemos; e de superar os acontecimentos de
8 de Janeiro, que não se completaram graças à atuação das Forças Armadas, que
repeliram esses fatos, numa demonstração de que as Forças voltaram aos quartéis
e estão a serviço da pátria, para manter o regime democrático dentro da lei e
da ordem, na forma da Constituição, que é guardada, em um dos seus dispositivos
principais, pela Justiça, sob a égide do Supremo Tribunal Federal.
Sem instituições fortes, não há democracia
forte. E sem parlamento, não há democracia, que, ao representar o povo, talvez
seja o coração dela.
Portanto, devem fazer parte dos nossos
compromissos a comemoração do regime de que desfrutamos e o juramento de
defender a liberdade com eterna vigilância, sem jamais permitir qualquer
ofensa; em caso de ataque, que seja repelido com força e caráter por todos nós.
Tancredo morreu pela liberdade e, em sua
memória, renovamos o compromisso de dedicar nossas vidas à sua defesa: a
democracia chegou, e é irreversível.
Democracia é liberdade. E esta tem um poder
criativo capaz de se estender por uma grande capilaridade a toda a sociedade,
que desfruta de direitos e deveres como cidadão habitante de um país em que se
vive em absoluto Estado de Direito.
A Transição trouxe a liberdade. E a liberdade
abriu as asas sobre nós.
*Ex-presidente da República, escritor e imortal da Academia Brasileira de Letras
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