sexta-feira, 28 de março de 2025

José de Souza Martins - A questão é a ficha suja, não a limpa

Valor Econômico

Quem apoiar a revogação ou adulteração da lei que interdita candidatura de políticos denunciados provavelmente será carimbado como ficha suja

As tensões políticas dos últimos dias estão relacionadas com a iminente possibilidade de acolhimento das denúncias contra os envolvidos na tentativa de golpe de Estado de 2022 e 2023.

A lei prevê que gente de ficha suja fica fora da possibilidade de disputar eleições por oito anos. Isso significa que Jair Messias não poderá candidatar-se à eleição presidencial de 2026. Seus seguidores, amigos, cúmplices, parentes e orientadores “espirituais” convenientemente entendem que o castigo é demasiado.

Preconizam que a interdição seja reduzida para dois anos. Um banho de saboneteiros de ficha suja, que também seriam beneficiados pela adulteração do propósito dos autores da proposta, de 1997, a de botar freio na corrupção política endêmica.

O que é hoje chamada de Lei da Ficha Limpa é o resultado de um movimento social, de inspiração católica, originado na Campanha da Fraternidade de 1996, da CNBB, cujo tema foi “Fraternidade e Política”. A proposta, portanto, tem uma dimensão moral bem mais extensa do que a da mera formulação jurídica agora pretendida.

A Comissão Brasileira de Justiça e Paz, em fevereiro de 1997, promoveu a campanha “Combatendo a Corrupção Eleitoral”, que resultaria no Projeto de Lei de Iniciativa Popular 518/09, assinado por 1,8 milhão de pessoas. A lei tem um autor, o povo, e não os políticos, como se pretende agora.

Esse número é quase o dobro do que o milhão de bolsonaristas esperados há poucas semanas no comício organizado pelo pastor bolsonarista Silas Malafaia, em Copacabana. Em favor de uma anistia para os presos e condenados da intentona de 8 de janeiro de 2023. Anistia para o próprio Bolsonaro.

Na manifestação do Rio, havia 18.300 pessoas, quando Bolsonaro falou, ao meio-dia, suposto ápice da manifestação. Apenas 1,83% da estimativa de palanque, contadas pela equipe da Universidade de São Paulo com a utilização do método “point-to-point network”.

A lei fora aprovada pelo Senado em maio de 2010, por votação unânime, e assinada apelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 4 de junho de 2010. Em fevereiro de 2012, o STF considerou a lei constitucional e válida para as eleições seguintes.

A unanimidade de sua aprovação em 2010 é um indicativo de que os políticos, mesmo os suspeitos, relutarão em votar a modificação da lei, mesmo pelo artifício da redução do tempo de interdição do político por ela alcançado. Eles, provavelmente, intuem que, na interpretação popular, a aprovação daquela lei criou, no imaginário popular, a expressão implícita de “ficha suja” para definir quem é contra.

Quem apoiar sua revogação ou votar por sua adulteração incorrerá em traição à vontade popular nela expressa. Pouco provável que não será carimbado como ficha suja.

Não é preciso utilizar os recursos técnicos das redes sociais de manipulação da consciência política do povo, como tem acontecido na onda de crescimento da direita. Basta a conversa de botequim, que não pode ser manipulada no computador, para estigmatizar quem se atrever a insurgir-se contra o rigor da lei original. As relutâncias de políticos, nos vários âmbitos do poder, já indicam que aprovar a mudança definirá a direita como ficha suja.

Avolumam-se as evidências de que as contradições e incongruências do regime de sucessão da ditadura militar produzem o efeito bumerangue e oposto ao supostamente preconizado. Como as infiltrações que os fatos recentes indicam ter sido introduzidas na própria Constituição de 1988, caso daquele Artigo 142 que pretende instituir a tutela dos militares sobre a ordem política. Uma continuação disfarçada do regime de exceção.

Mas há também os efeitos bumerangues não previstos. Como o desgaste rápido do próprio Bolsonaro e o da mitificação de sua família como um poder político extralegal.

Quanto mais insistem em propor-se como uma aristocracia hereditária com direitos pessoais sobre o poder, mais esbarraram nos mistérios do imaginário popular.

Cada vez que Bolsonaro diz um palavrão chulo de botequim, mais evidente fica para mulheres, mães de família, pessoas religiosas, os que vivem do trabalho, que ele não é propriamente um ficha limpa.

Sociologicamente, há os estigmas conexos e invisíveis. Mais vulnerável fica sua imagem à corrosão que ele próprio promove. Não adianta ter um capelão particular, seu acólito, que com facilidade resvala para a ira pouco cristã, em suas reações contra o fracasso do comício de Copacabana. Indício, aliás, de que essa gente não tem a menor compreensão do que é o lado invisível dos fenômenos sociais.

Será possível enganar os 40 milhões de evangélicos quando perceberem que a definição de ficha suja injustamente os alcança?

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre a incerteza do instante” (Editora Unesp, São Paulo, 2022).

 

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