sexta-feira, 28 de março de 2025

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

É descabida decisão do CNJ que regulou os ‘penduricalhos’

O Globo

Cabe ao Congresso restringi-los a casos excepcionais. Na prática, a regra adotada dobra teto salarial dos juízes

O ministro Mauro Campbell Marques, corregedor do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), limitou as verbas indenizatórias acrescidas ao salário de juízes — os “penduricalhos” — a R$ 46.336,19 mensais, o equivalente ao salário de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Com isso, os magistrados poderão receber todo mês o equivalente a dois tetos constitucionais, ou R$ 92.672,38. Trata-se de um despropósito, pois a Constituição limita a remuneração mensal no setor público a um — e não dois — salário de ministro do STF. A decisão de Marques só pode ser explicada pelo nível de abuso nos supersalários pagos a juízes, procuradores e integrantes da elite do funcionalismo.

Eventuais pagamentos adicionais podem se justificar no caso de reembolso de despesas, diárias de viagem ou mesmo auxílios-moradia temporários, quando há mudança de cidade por motivo profissional. Mas devem ser excepcionais. Não é o que acontece. Os “penduricalhos” têm sido usados para assegurar gratificações descabidas e aumentos salariais disfarçados muito acima do que permite a Constituição.

O maior contracheque pago a juízes em dezembro somou R$ 788.358,05 brutos (ou R$ 678.386,57 líquidos). Um juiz aposentado com salário-base de R$ 37.731,80 recebeu no mesmo mês R$ 672.663,87 (R$ 31,2 mil só de gratificação natalina). Podem ser casos extremos, mas estão longe de ser isolados. De acordo com o próprio CNJ, foram pagos 63.816 salários mensais brutos superiores a R$ 100 mil em 2024. Mais de 90% dos juízes e procuradores ganham acima do teto, segundo levantamento do economista Bruno Carazza. Na média dos tribunais, o pagamento extrateto por magistrado foi de R$ 270 mil no ano passado. Isso para uma categoria que está na fatia de 1% de maior renda e representa apenas 0,06% do funcionalismo.

Os “penduricalhos” pagos a juízes somaram R$ 12,9 bilhões em 2024, ou um décimo do custo do Judiciário. Despesas com tribunais, Ministério Público e Defensoria Pública saltaram até 36% entre 2022 e 2023 em 18 estados, segundo o centro de pesquisa Justa. Não é à toa que, custando 1,3% do PIB (sem contar o Ministério Público), o Judiciário brasileiro seja tão caro.

A decisão de Marques respondeu a pedido do Tribunal de Justiça de Sergipe para pagar Adicional por Tempo de Serviço (ATS) retroativo aos magistrados do estado. Esse tem sido um dos caminhos para juízes receberem supersalários. O ATS — também conhecido como “quinquênio” — equivale a 5% de aumento a cada cinco anos, sem levar em conta mérito ou produtividade. Chegou a ser extinto, mas voltou a ser pago em 2022 na Justiça Federal, com um drible na lei. Depois, seguiram-se Justiça do Trabalho e tribunais estaduais. O efeito cascata estende a benesse, depois surgem pedidos de pagamentos retroativos.

A Constituição exclui verbas indenizatórias do teto salarial, mas não as define. A lei para discipliná-las até hoje não foi aprovada. O PL dos Supersalários que tramita no Congresso é repleto de exceções que eternizariam as distorções. No lugar dele, Executivo e Legislativo devem apresentar uma proposta sensata, limitando “penduricalhos” a casos excepcionais. Não faz sentido que Campbell Marques tenha decidido isso sozinho. O único alento da decisão é sugerir que o próprio Judiciário já tenha acordado para o problema.

Atropelamentos demonstram risco da leniência com violações no trânsito

O Globo

Mortes no BRT do Rio e em praia de Itanhaém, em São Paulo, teriam sido evitadas se normas fossem cumpridas

Dois episódios trágicos ocorridos nesta semana expõem os danos causados pela leniência de autoridades com infrações de trânsito e pelo desrespeito às normas mais básicas de convivência. No Rio, uma adolescente morreu depois de atropelada por um carro oficial do governo do estado numa pista exclusiva do BRT Transcarioca, no bairro de Campinho, Zona Norte da cidade. Numa praia de Itanhaém, Litoral Sul de São Paulo, uma turista que andava de bicicleta morreu depois de atropelada por uma charrete (a polícia investiga se o veículo participava de um “racha”).

O carro envolvido no acidente estava a serviço da secretaria estadual de Cultura e não poderia trafegar pela pista do BRT, exclusiva dos ônibus. Imagens obtidas pelo GLOBO mostram que, como o trânsito estava congestionado, o motorista pegou a faixa do BRT, infração gravíssima pelo Código de Trânsito Brasileiro. Apenas ambulâncias, veículos de socorro a incêndio e salvamento, viaturas da polícia e de fiscalização de trânsito podem usar faixas exclusivas, mesmo assim em situações de urgência. O motorista foi exonerado e responderá por homicídio culposo, mas a tragédia está consumada.

O atropelamento não é fato isolado. Levantamento da empresa MOBI-Rio, que administra o BRT, mostra que somente neste ano aconteceram 58 acidentes nos 157,5 quilômetros de pistas exclusivas. No ano passado, foram 226. Colisões e atropelamentos são provocados sobretudo por carros que invadem as pistas, fazem conversões proibidas ou avançam sinais.

No caso de Itanhaém, o dono da charrete negou que disputasse corrida. Alegou que realizava um passeio familiar na faixa de areia e que prestou socorro à vítima. Testemunhas, porém, disseram que a charrete estava em alta velocidade, com outra. Investigações preliminares da polícia sugerem que ela participava de um “racha”.

Corridas entre charretes são comuns no local, muitas documentadas em vídeos na internet. Moradores disseram que o atropelamento não foi o primeiro acidente. A secretária executiva do Conselho de Defesa do Meio Ambiente do município de Peruíbe, Mari Polachini, afirmou que eventos desse tipo acontecem quinzenalmente e chegam a reunir em torno de 300 pessoas.

Em ambos os atropelamentos, as mortes poderiam ter sido evitadas se as normas tivessem sido cumpridas. Num país onde infelizmente impera a cultura do “ilegal, e daí?”, fugir do engarrafamento pela faixa do BRT, pegar a contramão, trafegar pelo acostamento, avançar sinal, participar de rachas, entre outras aberrações, são práticas que põem em risco motoristas, passageiros e pedestres. É certo que prefeituras instalam equipamentos eletrônicos de fiscalização e muitas vezes multam os infratores. Mas pelo visto não é suficiente. Além de fiscalizar, é preciso realizar campanhas educativas informando sobre as normas de trânsito e até criando vergonha nos imprudentes. Acima de tudo, é preciso puni-los com rigor. Há uma crença equivocada de que uma pequena violação não faz mal. Não só faz mal, como mata.

Ainda falta longo caminho para inflação atingir a meta

Valor Econômico

O trabalho do BC poderia ser mais abreviado e menos custoso se a política fiscal buscasse obter superávits primários e se o governo Lula evitasse lançar medidas sem parar para manter o crescimento a todo custo

O Banco Central não espera uma volta rápida da inflação para abaixo do teto da meta e muito menos para seu centro, de 3%. Nos cenários apresentados pelo Relatório de Política Monetária de março, divulgado ontem, o IPCA só será inferior a 4,75% no primeiro trimestre do ano que vem. A inflação subirá mais antes de cair. De março até junho, se situará em torno de 5,5%, acima dos 5,06% nos 12 meses encerrados em fevereiro. E só se aproximará da meta de 3% no terceiro trimestre de 2027, um ano depois do cenário relevante para a política monetária, o mesmo trimestre de 2026. Diante de condições adversas para a convergência da inflação, com expectativas desancoradas em todos os prazos, o BC sinalizou mais uma alta de juros, desta vez inferior a 1 ponto percentual, e a continuidade de uma política bastante contracionista por um longo período.

A economia vai se adaptar a um quadro em que as condições financeiras já se tornaram mais apertadas e à perspectiva de que a taxa real de juros atinja seu pico de 9,4% no segundo trimestre, com inflação projetada de 5,5% no cenário de referência do período. Isso indica que a taxa Selic poderá atingir 15% até junho, com duas reuniões do Comitê de Política Monetária (Copom) programadas até lá. A partir daí, o BC terá de optar entre decidir por mais aumentos dos juros, o que pode ser excessivo, ou por manter taxas altas por mais tempo.

Há fatores que poderão contribuir para que o alvo do BC seja atingido. No Relatório de Política Monetária, ele reduziu a previsão de crescimento do Produto Interno Bruto de 2,1% para 1,9%. A desaceleração se dará depois do primeiro trimestre, para o qual se espera um desempenho forte da agricultura, cuja estimativa de expansão foi elevada de 4% para 6,5%. No lado da demanda, o consumo das famílias, que fechou em queda no último trimestre de 2024, deverá subir 1,5% em 2025, ante 2,4% na previsão anterior. Com a redução do ritmo da economia, as importações declinarão, e o setor externo, que diminuiu em 1,8% o PIB de 2024, terá influência neutra (zero) este ano.

A elevação dos juros derrubará as concessões de crédito. O saldo dos empréstimos encerrou o ano passado com variação de 11,5%. O BC reduziu sua projeção de expansão de 9,5% para 7,7%, com crescimento real de 2,5%, praticamente a metade da evolução real do ano passado. A contenção do crédito é importante porque o impulso do fluxo financeiro por ele proporcionado às atividades foi muito forte em 2024. As concessões bateram um recorde histórico, com um aumento de 10,7% além da inflação. O impulso do crédito, calculado em um box do Relatório, correspondeu a 1,1% do PIB, ou R$ 128 bilhões. A ele se acrescentam o aumento das captações de empréstimos das empresas no mercado de capitais, que vêm crescendo e dobraram de 2019 até agora, atingindo R$ 489 bilhões no ano passado. O impulso do crédito para as empresas foi de 1% do PIB.

A economia deve esfriar, mudando a direção do hiato do produto, uma medida que mostra o quanto o crescimento da economia se aproxima ou se afasta de seu potencial. Ela está crescendo além desse potencial em 0,6% no primeiro trimestre do ano, e o hiato se tornará negativo no terceiro trimestre de 2026 em 0,8%.

Um comportamento benigno do dólar teria um papel fundamental para derrubar a inflação e as expectativas, mas é impossível apostar em valorizações adicionais do real ou mesmo na estabilidade do câmbio em seu nível atual. Sua importância fica clara na decomposição dos fatores que mais influenciaram no IPCA de 2024, de 4,83%, com 1,83 ponto percentual acima da meta. A inflação importada foi o fator de maior peso para o desvio da meta, com 0,72 ponto. O peso da maxidesvalorização cambial foi maior, de 1,21 ponto, mas foi amortecida por uma queda de 0,59 ponto nos preços do petróleo. A inércia inflacionária, a força que espalha aumentos de preços passados ao presente, foi o segundo fator, com 0,52 ponto. O crescimento acima do potencial colaborou com mais 0,49 ponto.

A supersafra agrícola traz boas notícias para os preços dos alimentos, que avançaram 8,2% em 2024, mas, segundo o BC, não terá influência sobre um dos principais produtos a puxar a alta, a carne bovina - 22,4% de variação no ano passado. A Conab espera uma queda de 5% de sua produção neste ano e redução de 8,5% na disponibilidade interna, devido a fortes exportações. Os preços vão então subir, embora muito menos que em 2024. No questionário pré-Copom, os participantes do Focus estimaram aumento de 9,6%.

A principais arma do ajuste têm sido os juros, que, apesar de estarem muito altos, não causarão recessão. O trabalho da política monetária poderia ser mais abreviado e menos custoso se a política fiscal buscasse obter superávits primários, com cortes maiores nos gastos, e se o governo Lula evitasse lançar medidas sem parar (inclusive de crédito) para manter o crescimento a todo custo, que retardam a queda da inflação. Ampliar a desconfiança sobre a fragilidade das contas fiscais pode provocar novos surtos de desvalorização do real e ampliar o fôlego ainda mal contido dos preços.

Deterioração fiscal nos EUA é perigo para o mundo

Folha de S. Paulo

Moody's alerta para expansão da dívida pública, que pode se agravar, apesar da preocupação de Trump em cortar despesas

Pode parecer exótico dizer que a dívida pública dos Estados Unidos vai se tornar um problema para o financiamento do governo americano, para a estabilidade econômica do país e para os mercados do mundo. Contudo a preocupação deixou de ser extravagante, como se viu mais uma vez em alerta divulgado pela agência de classificação de risco Moody’s.

Há receios de turbulências sérias, em especial depois da crise que se iniciou em 2008. A crença de que as dificuldades seriam temporárias se desfez com a pandemia e com as políticas de Donald Trump, de redução infundada de impostos, e de Joe Biden, de estímulo econômico via despesa.

A dívida do governo federal em poder do público chegou a 97,8% do Produto Interno Bruto em 2024, segundo a Consultoria de Orçamento do Congresso dos EUA, e deve subir a 100% neste ano. Desde 1900, a dívida só foi tão alta no final da Segunda Guerra Mundial, em 1945 e 1946. Antes da crise de 2008, estava na casa de 35% do PIB; antes do início da emergência sanitária, era de 79%.

O passivo do governo aumentou mesmo nos anos recentes com bom crescimento econômico. O déficit público em 2024, de 6,6% do produto, foi o maior em meio século, excetuados os dos anos seguintes aos da grande crise financeira e da Covid-19.

Como em boa parte do mundo, há fatores de aumento crônico do gasto, como o envelhecimento da população, que gera demandas previdenciárias e de saúde. Isso posto, depois da breve tentativa de Barack Obama, entre 2014 e 2016, não houve programas de redução do déficit, mesmo em ambiente de taxas de juros de novo mais altas.

Muito pouco se sabe da política fiscal de Trump. O novo governo pretende elevar a arrecadação com mais impostos de importação e conter a despesa com um processo de redução do estado por ora caótico, de resultado incerto e sujeito a judicialização. Ao mesmo tempo, o mandatário republicano promete grandes cortes de impostos.

A uma dívida já elevada, que cresce rapidamente com juros e déficits altos, somam-se a incerteza fiscal e uma provável desaceleração econômica. Com a enorme necessidade de recursos, mesmo em relação ao tamanho da economia global, existe risco de graves instabilidades.

Por exemplo, receios de investidores podem criar uma súbita dificuldade de financiamento e, a seguir, expansão de juros ou travamento do gigantesco mercado financeiro americano.

Note-se que cerca de um quarto da dívida está em mãos de estrangeiros, também cada vez mais ressabiados com sanções e, agora, com a agressividade de Trump. Bancos centrais pelo mundo reduzem seus haveres em títulos do Tesouro americano, a começar pelo da China.

Os juros tendem a ficar em níveis elevados, o que também afeta o mundo —e o Brasil, outro caso de descalabro fiscal, está longe de ser exceção.

O Brasil está mais seco

Folha de S. Paulo

Superfície de água encolhe por dois anos seguidos; abundância do recurso no país não significa sustentabilidade eterna

Dois anos consecutivos de diminuição da superfície de água no Brasil deveriam disparar todos os alarmes governamentais. É consternador o dado apurado pelo MapBiomas com imagens de satélites: o recuo medido em 2024 foi de 2,2% sobre 2023 e de 3,2% na comparação com a média histórica.

O país contava no ano passado 17,9 milhões de hectares de espelho d’água, de acordo com o consórcio de instituições de pesquisa, empresas e ONGs ambientais. A série histórica de mapas anuais produzidos pelo grupo começa em 1985 e reúne ainda dados como áreas de desmatamentoagricultura e aglomerados urbanos.

Em quilômetros quadrados, medida talvez mais familiar, o conjunto de corpos d’água em território nacional corresponde a 179 mil. Trata-se de uma área de apenas 2,1% do Brasil, mas com tamanho quase equivalente ao estado do Paraná ou a três quartos do estado de São Paulo.

Não é por outra razão que este país tropical figura como potência em recursos hídricos, a garantir, por exemplo, uma matriz energética com alto grau de fontes renováveis (49%, de acordo com dados de 2023). De toda a eletricidade produzida aqui, nada menos do que 59% provêm de energia hidráulica.

Abundância não significa, todavia, sustentabilidade para todo o sempre. Em especial sob as condições preocupantes da mudança climática em curso, prevê-se diminuição da precipitação média em todo o território. A devastação de florestas, reguladoras naturais de vazões hídricas, também contribui para delinear o espectro de escassez.

A maior parte da superfície de água (61%) se encontra na amazônia, seguida pelo bioma mata atlântica (13%). Não por coincidência, duas florestas chuvosas. Outra área úmida célebre é o pantanal, que no entanto concentra apenas 2% da área hídrica total.

O pantanal atualmente se encontra na pior condição, mostrando-se 60% mais seco do que na média histórica do MapBiomas. Rios, baías e corixos da planície inundável dependem das chuvas e nascentes do planalto adjacente, no cerrado.

Este, por sua vez, sofre com desmatamento pela expansão do agronegócio. Além disso, é o bioma nacional com a lâmina d’água mais alterada por ação humana.

Auspicioso é que o cerrado, assim como caatinga e mata atlântica, apresentou em 2024 uma cobertura hídrica maior do que a média histórica. Isso não parece bastante, contudo, para contrabalançar a tendência preocupante: desde 1985, os corpos d’água naturais sofreram recuo de 15%.

Sob inspiração da truculência

O Estado de S. Paulo

Para Guilherme Derrite, País deveria aprender com El Salvador, que reduziu homicídios em meio a denúncias de abusos e é referência para quem prefere a lei da selva à democracia

O secretário de Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite, confirmou o que já se suspeitava: seu apreço pela política da truculência tem no regime de exceção instaurado por Nayib Bukele, em El Salvador, um modelo a ser seguido. Durante recente evento em Brasília, com a presença de autoridades e especialistas na área, Derrite afirmou que o Brasil deveria aprender com o pequeno país da América Central para reduzir os índices de homicídios – e aproveitou para criticar um programa federal destinado a combater violações de direitos humanos no sistema prisional brasileiro.

O exemplo salvadorenho é exatamente isto: a combinação entre redução drástica de homicídios com perturbadoras evidências de violações de direitos humanos. É uma estratégia sedutora para políticos que apostam na aniquilação de criminosos para superar a sensação de medo na população e transformar cadáveres em votos. A estratégia mais eficiente, que poupa vidas e respeita o Estado Democrático de Direito, não gera tanta visibilidade e muitas vezes é confundida com leniência com os criminosos. Assim pensa Derrite, que foi afastado da Rota, a elite da Polícia Militar de São Paulo, por desvio de conduta (“porque matei muito ladrão”, segundo suas próprias palavras).

A inspiração salvadorenha do secretário paulista tornou-se conhecida tanto pela eficácia na repressão quanto por ser uma política que despreza direitos fundamentais. Quando Bukele chegou ao poder, em 2019, El Salvador era conhecido como um dos países mais violentos do mundo. A população agonizava com o medo, a violência e as mortes decorrentes das disputas entre as “maras”, como são chamadas as gangues formadas por filhos de imigrantes que regressaram ao país após a guerra civil, que durou entre 1979 e 1990 e matou, segundo dados oficiais, mais de 100 mil pessoas.

Em 2022, o presidente salvadorenho impôs um estado de emergência que lhe deu plenos poderes para mandar prender e matar criminosos. Com passe livre para reagir com violência e efetuar prisões sem mandados, o governo criou megaprisões e lotou as existentes – a mais conhecida, o Centro de Confinamento do Terrorismo, tem capacidade para até 40 mil presos e não permite acesso nem de jornalistas nem, pasmem, de advogados. Hoje El Salvador tem mais de 100 mil presos, ou 1,7% da população, marca capaz de assustar até mesmo quem acha que no Brasil há encarceramento em massa (por aqui, a proporção de presos é de 0,3% da população).

Com criminosos varridos do mapa, os homicídios desabaram, a ponto de, em 2023, El Salvador ter sido listado entre os países mais seguros da América Latina. Mas missões internacionais e organizações de direitos humanos têm repetidamente denunciado os efeitos do modelo de Bukele. Reconhecem que seu governo conseguiu controlar as gangues de forma impressionante, mas a um alto custo para a sociedade: com deterioração de direitos, prisões de inocentes, detenções arbitrárias sem ordem judicial, ameaças à democracia e mortes sob a custódia do Estado.

Trata-se de um modelo de perigosa eficácia, que usa a brutalidade e o medo como armas poderosas para render votos e fama. Bukele se reelegeu em 2024, mesmo com a Constituição de seu país proibindo a reeleição; Derrite passeia por eventos como pré-candidato, exibindo-se como secretário linha-dura, mantido no cargo pela inexplicável condescendência do governador Tarcísio de Freitas. O presidente salvadorenho e o secretário paulista são produto da crise da segurança pública, desafiada pelo crime organizado. A alternativa à truculência é custosa e demorada. Já o modelo Bukele é barato e ainda dá votos. É de olho nisso que até prefeitos, que não têm entre suas atribuições cuidar de policiamento, estão investindo na imagem de paladinos da segurança.

Como lembrou a organização Human Rights Watch, os salvadorenhos não deveriam se ver forçados a escolher entre segurança e outros direitos fundamentais. Nem salvadorenhos, nem brasileiros, nem quaisquer cidadãos do mundo, convém acrescentar. Só quem tenta difundir a inevitabilidade de tal escolha são cabeças como Bukele e Derrite, que confundem endurecimento contra o crime com truculência, transformam agentes do Estado em vingadores, combatem barbárie com mais barbárie e ignoram que democracia não combina com a lei da selva.

Alta dos alimentos não é passageira

O Estado de S. Paulo

Lula erra ao tentar paliativos para inflação dos alimentos que há mais de uma década sobe acima do IPCA. Estudo comprova que questão é mais profunda e exige solução estrutural

A inflação dos alimentos, que abalou a popularidade de Lula da Silva e estimulou uma série de ideias e declarações estouvadas do presidente, não é um fenômeno passageiro. Há mais de uma década os preços alimentícios têm registrado crescimento acima da média da cesta de produtos do índice geral de inflação, o IPCA, e sofrem agora o forte abalo das mudanças climáticas, que afetam também a produtividade agrícola. É um fenômeno complexo, que se espalha pelo mundo e que atinge com mais intensidade países como o Brasil em razão de carências estruturais internas.

Numa minuciosa análise publicada no blog do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), na qual compila levantamentos de diferentes pesquisadores do instituto, o diretor do FGV Ibre, Luiz Guilherme Schymura, faz um raio X do deslocamento mundial da alta dos preços dos alimentos da inflação cheia, que por cerca de duas décadas – de 1980 até meados dos anos 2000 – tiveram trajetórias próximas. E examina com especial atenção a perda de produtividade agrícola do Brasil, despreparado para mitigar prejuízos dos fenômenos extremos do clima.

Diante da análise do economista, parecem ainda mais caricatas as medidas propostas por Lula da Silva para tentar forçar a queda de preços num estalar de dedos – como se uma simples palestra presidencial com produtores e varejistas tivesse o condão de baixar custos, ou como se uma resolução de isenção tributária de importação abarrotasse de alimentos baratos o mercado doméstico, a despeito de uma crise que é mundial.

Não cabem superficialidades numa questão tão profunda. Alguns preços podem até baixar diante da reversão de fatores que intensificaram a alta. Na pecuária, por exemplo, depois do chamado “ciclo do boi”, com redução da oferta a cada cinco ou seis anos, a alta extraordinária do preço da carne tende a recuar. O arroz, que no ano passado teve o preço pressionado pelas perdas expressivas de produção em razão das enchentes no Rio Grande do Sul, pode estabilizar, mas o fato é que o encarecimento do produto ocorre desde 2019, como mostram os dados da FGV.

Como exemplo da dimensão dos eventos que nos últimos cinco anos contribuíram de forma intensa para a alta dos alimentos, os pesquisadores da FGV listaram a disrupção de oferta causada pela pandemia em 2020/2021; a crise hídrica extremamente severa no Brasil, em 2021, e na Argentina, em 2023; a invasão russa da Ucrânia, um importante produtor global de grãos; e a conjunção dos fenômenos El Niño e La Niña em 2023 e 2024, com efeito particularmente forte no Brasil.

Schymura chama a atenção para a necessidade de recolocar em pauta a agenda pública de políticas de suprimento e segurança alimentar, com foco nas culturas que produzem alimentos que vão diretamente para a mesa dos brasileiros. Isso pode ser traduzido como uma atuação mais forte do governo no monitoramento da produção, na recomposição de estoques públicos, nos incentivos para investimentos em silagem, nas vias de escoamento e no crédito mais voltado a essas culturas, e não apenas nas que são altamente rentáveis.

O Brasil se prepara para colher uma supersafra recorde de grãos, estimada em 328,3 milhões de toneladas pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Recente reportagem da revista Forbes destaca que a atual capacidade estática de armazenagem no País é estimada em 210,1 milhões de toneladas, ou seja, uma diferença de 118,2 milhões de toneladas entre o que será colhido e o que poderá ser estocado.

É sobre a infraestrutura que o governo deveria estar se debruçando, se a preocupação fosse baratear alimentos de forma estrutural, com resultados mantidos no longo prazo, e não onerar exportações para ampliar a oferta doméstica, como chegou a ser aventado. Como resumiu Schymura, o foco deve ser o de estimular a produção adicional de alimentos, e não dificultar outras áreas do agronegócio.

Deslealdade

O Estado de S. Paulo

Deputada condenada pelo STF, fidelíssima bolsonarista, foi abandonada por Bolsonaro

Os sinos não vão dobrar pela sra. Carla Zambelli, deputada que o Supremo Tribunal Federal (STF) deve condenar à prisão pelos crimes de porte ilegal de arma de fogo e constrangimento ilegal com emprego de arma de fogo. A referida parlamentar não tem a menor importância para o País, a não ser como exemplo da forma francamente desleal como o ex-presidente Jair Bolsonaro trata aqueles que, como a sra. Zambelli, lhe devotam cega fidelidade.

Que a sra. Zambelli é desqualificada para o exercício da representação parlamentar já é do conhecimento de todos há muito tempo. A indigitada é o tipo ideal do bolsonarismo: mitômana, inventou ter sido curada de covid-19 apenas com o uso de cloroquina, inventou que o governo cearense enterrou caixões vazios para aumentar as estatísticas de mortos na pandemia e inventou que foi agredida pelo infeliz que ela temerariamente perseguiu, arma em punho, pelas ruas de São Paulo – crime pelo qual ela agora pagará. Ou seja, ela se notabilizou apenas pelo destrambelhamento e pela incapacidade de dizer a verdade, e não por projetos de lei do interesse de seus representados, razão pela qual ninguém deve chorar pela provável cassação de seu mandato.

Em defesa da sra. Zambelli, contudo, deve-se enfatizar que tudo o que de infame ela fez, cada mentira que contou, estava perfeitamente consoante com o espírito do bolsonarismo. Ou seja, a deputada condenada existe e respira apenas como sintoma dessa doença infantil do reacionarismo.

E essa doença infantil é intrinsecamente pusilânime. O ex-presidente, há alguns dias, culpou a ainda deputada por ter perdido a eleição de 2022. “Carla Zambelli tirou o mandato da gente”, disse Bolsonaro ao podcast Inteligência Ltda., em referência justamente ao caso em que a sra. Zambelli, de arma na mão, saiu a perseguir um desafeto. Para Bolsonaro, essa imagem arruinou suas chances de vitória em São Paulo e, consequentemente, no Brasil.

Eis aí Jair Bolsonaro em sua melhor forma: para não reconhecer que perdeu a eleição de 2022 porque desrespeitou a dor dos brasileiros que tiveram familiares e amigos mortos durante a pandemia de covid-19 e porque atentou dia e noite contra o espírito da democracia brasileira, Bolsonaro joga a culpa por sua derrota em cima de uma obscura deputada – que, reitere-se, agiu apenas como boa bolsonarista. O nome disso, claro, é covardia.

Em resposta, a sra. Zambelli até murmurou um protesto: “Enfrentar o julgamento dos inimigos é até suportável. Difícil é aguentar o julgamento das pessoas que sempre defendi e continuarei defendendo”, escreveu ela nas redes sociais. Debalde: como sabem os muitos sabujos de Bolsonaro que acabaram descartados por ele quando deixaram de ter alguma utilidade a seus projetos pessoais, o ex-presidente exige lealdade absoluta de todos os que querem dele se aproximar, mas não garante reciprocidade.

Portanto, o caso da sra. Zambelli só tem uma utilidade: mostrar àqueles que juram lealdade a Bolsonaro neste momento – achando que com isso terão a simpatia e o apoio eleitoral do ex-presidente – que correm sério risco de ter o mesmo destino da parlamentar: o descarte

Cabo de guerra entre médicos e farmacêuticos

Correio Braziliense

Em meio à polêmica de quem detém o direito à prescrição, a saúde tem outra batalha pela frente, essa bem mais antiga: os altos índices de pessoas que recorrem à automedicação

Nas últimas semanas, uma contenda entre médicos e farmacêuticos tem sido travada em decorrência de resolução aprovada, em 20 de fevereiro, pelo plenário do Conselho Federal de Farmácia (CFF). A medida nº 5/2025, publicada no último dia 17, permite que farmacêuticos, devidamente qualificados, prescrevam medicamentos classificados como tarjados, que tradicionalmente exigem receitas emitidas apenas por médicos. 

O documento teve repercussão ruim entre os conselhos federais, associações e sociedades médicas de todo o país. Em nota, o Conselho Federal de Medicina (CFM) pontuou que "a prescrição exige investigação, diagnóstico e definição do tratamento, competências exclusivas dos médicos" e classificou a resolução como "absolutamente ilegal e desprovida de fundamento jurídico".

A Associação Médica Brasileira (AMB) demonstrou preocupação, alegando que a prescrição de medicamentos é o ato final de um processo complexo de anamnese, exame físico e exames complementares para alcançar um diagnóstico correto. Segundo a associação, o farmacêutico não tem a formação necessária para conduzir esse processo e, caso medicamentos sejam utilizados de maneira equivocada, podem colocar em risco a saúde da população. 

Em meio à polêmica de quem detém o direito à prescrição, a  saúde coletiva tem outra batalha pela frente, essa bem mais antiga: os altos índices de pessoas que recorrem à automedicação no Brasil, sem receita médica ou qualquer acompanhamento por parte de um especialista, seja ele médico, farmacêutico ou qualquer outro profissional da área. 

Levantamento feito por entidades ligadas à Organização das Nações Unidas (ONU) mostra que o hábito de tomar remédio sem prescrição pode matar 10 milhões de pessoas por ano até 2050 em todo o mundo. 

No Brasil, os índices são da mesma forma alarmantes. Segundo estudo do CFF, quase metade dos brasileiros se automedicam, pelo menos, uma vez por mês e 25% recorrem à prática diariamente, ou pelo menos uma vez por semana. Ainda de acordo com a pesquisa, a automedicação é um hábito comum a 77% dos brasileiros.

Entre os argumentos a favor da resolução do CFF, está a possibilidade de reduzir justamente esse costume dos brasileiros, devido ao maior acesso a profissionais de saúde que possam fazer prescrições. Além disso, o conselho alega que, atualmente, profissionais de farmácia já podem prescrever remédios para quadros de saúde leves, como resfriados, gripes e reações alérgicas e alguns medicamentos controlados, desde que dentro de protocolos específicos, como para o tratamento de pacientes com HIV. 

Em entrevista recente, o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, disse ser favorável ao novo modelo somente "dentro de programas estratégicos", com protocolos bem definidos. O Conselho de Medicina, por sua vez, cita que a Justiça Federal do Distrito Federal já havia declarado, em novembro de 2024, a ilegalidade da resolução CFF nº 586/2013, que versa sobre a prescrição autorizada de medicamentos por farmacêuticos, seja com ou sem prévia prescrição médica.

A guerra continua no mês que vem, data  em que, teoricamente, a nova resolução entra em vigor. Teoricamente porque, em ofensiva recente, o CFM protocolou, no último dia 20, na Justiça do DF, uma ação judicial na tentativa de anular o documento. Independentemente do resultado, é certo que o acesso dos brasileiros às medicações  precisa ser aperfeiçoado.

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