É descabida decisão do CNJ que regulou os ‘penduricalhos’
O Globo
Cabe ao Congresso restringi-los a casos
excepcionais. Na prática, a regra adotada dobra teto salarial dos juízes
O ministro Mauro Campbell Marques, corregedor
do Conselho Nacional de Justiça (CNJ),
limitou as verbas indenizatórias acrescidas ao salário de juízes — os
“penduricalhos” — a R$ 46.336,19 mensais, o equivalente ao salário de um
ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Com isso, os magistrados poderão
receber todo mês o equivalente a dois tetos constitucionais, ou R$ 92.672,38.
Trata-se de um despropósito, pois a Constituição limita a remuneração mensal no
setor público a um — e não dois — salário de ministro do STF. A decisão de
Marques só pode ser explicada pelo nível de abuso nos supersalários pagos a
juízes, procuradores e integrantes da elite do funcionalismo.
Eventuais pagamentos adicionais podem se justificar no caso de reembolso de despesas, diárias de viagem ou mesmo auxílios-moradia temporários, quando há mudança de cidade por motivo profissional. Mas devem ser excepcionais. Não é o que acontece. Os “penduricalhos” têm sido usados para assegurar gratificações descabidas e aumentos salariais disfarçados muito acima do que permite a Constituição.
O maior contracheque pago a juízes em
dezembro somou R$ 788.358,05 brutos (ou R$ 678.386,57 líquidos). Um juiz
aposentado com salário-base de R$ 37.731,80 recebeu no mesmo mês R$ 672.663,87
(R$ 31,2 mil só de gratificação natalina). Podem ser casos extremos, mas estão
longe de ser isolados. De acordo com o próprio CNJ, foram pagos 63.816 salários
mensais brutos superiores a R$ 100 mil em 2024. Mais de 90% dos juízes e
procuradores ganham acima do teto, segundo levantamento do economista Bruno
Carazza. Na média dos tribunais, o pagamento extrateto por magistrado foi de R$
270 mil no ano passado. Isso para uma categoria que está na fatia de 1% de
maior renda e representa apenas 0,06% do funcionalismo.
Os “penduricalhos” pagos a juízes somaram R$
12,9 bilhões em 2024, ou um décimo do custo do Judiciário. Despesas com
tribunais, Ministério Público e Defensoria Pública saltaram até 36% entre 2022
e 2023 em 18 estados, segundo o centro de pesquisa Justa. Não é à toa que,
custando 1,3% do PIB (sem contar o Ministério Público), o Judiciário brasileiro
seja tão caro.
A decisão de Marques respondeu a pedido do
Tribunal de Justiça de Sergipe para pagar Adicional por Tempo de Serviço (ATS)
retroativo aos magistrados do estado. Esse tem sido um dos caminhos para juízes
receberem supersalários. O ATS — também conhecido como “quinquênio” — equivale
a 5% de aumento a cada cinco anos, sem levar em conta mérito ou produtividade.
Chegou a ser extinto, mas voltou a ser pago em 2022 na Justiça Federal, com um
drible na lei. Depois, seguiram-se Justiça do Trabalho e tribunais estaduais. O
efeito cascata estende a benesse, depois surgem pedidos de pagamentos
retroativos.
A Constituição exclui verbas indenizatórias
do teto salarial, mas não as define. A lei para discipliná-las até hoje não foi
aprovada. O PL dos Supersalários que tramita no Congresso é repleto de exceções
que eternizariam as distorções. No lugar dele, Executivo e Legislativo devem
apresentar uma proposta sensata, limitando “penduricalhos” a casos
excepcionais. Não faz sentido que Campbell Marques tenha decidido isso sozinho.
O único alento da decisão é sugerir que o próprio Judiciário já tenha acordado
para o problema.
Atropelamentos demonstram risco da leniência
com violações no trânsito
O Globo
Mortes no BRT do Rio e em praia de Itanhaém,
em São Paulo, teriam sido evitadas se normas fossem cumpridas
Dois episódios trágicos ocorridos nesta
semana expõem os danos causados pela leniência de autoridades com infrações
de trânsito e
pelo desrespeito às normas mais básicas de convivência. No Rio, uma adolescente
morreu depois de atropelada por um carro oficial do governo do estado numa
pista exclusiva do BRT Transcarioca, no bairro de Campinho, Zona Norte da
cidade. Numa praia de Itanhaém, Litoral Sul de São Paulo, uma turista que
andava de bicicleta morreu depois de atropelada por uma charrete (a polícia
investiga se o veículo participava de um “racha”).
O carro envolvido no acidente estava a
serviço da secretaria estadual de Cultura e não poderia trafegar pela pista do
BRT, exclusiva dos ônibus. Imagens obtidas pelo GLOBO mostram que, como o
trânsito estava congestionado, o motorista pegou a faixa do BRT, infração
gravíssima pelo Código de Trânsito Brasileiro. Apenas ambulâncias, veículos de
socorro a incêndio e salvamento, viaturas da polícia e de fiscalização de
trânsito podem usar faixas exclusivas, mesmo assim em situações de urgência. O
motorista foi exonerado e responderá por homicídio culposo, mas a tragédia está
consumada.
O atropelamento não é fato isolado.
Levantamento da empresa MOBI-Rio, que administra o BRT, mostra que somente
neste ano aconteceram 58 acidentes nos 157,5 quilômetros de pistas exclusivas.
No ano passado, foram 226. Colisões e atropelamentos são provocados sobretudo
por carros que invadem as pistas, fazem conversões proibidas ou avançam sinais.
No caso de Itanhaém, o dono da charrete negou
que disputasse corrida. Alegou que realizava um passeio familiar na faixa de
areia e que prestou socorro à vítima. Testemunhas, porém, disseram que a
charrete estava em alta velocidade, com outra. Investigações preliminares da
polícia sugerem que ela participava de um “racha”.
Corridas entre charretes são comuns no local,
muitas documentadas em vídeos na internet. Moradores disseram que o
atropelamento não foi o primeiro acidente. A secretária executiva do Conselho
de Defesa do Meio Ambiente do município de Peruíbe, Mari Polachini, afirmou que
eventos desse tipo acontecem quinzenalmente e chegam a reunir em torno de 300
pessoas.
Em ambos os atropelamentos, as mortes
poderiam ter sido evitadas se as normas tivessem sido cumpridas. Num país onde
infelizmente impera a cultura do “ilegal, e daí?”, fugir do engarrafamento pela
faixa do BRT, pegar a contramão, trafegar pelo acostamento, avançar sinal,
participar de rachas, entre outras aberrações, são práticas que põem em risco
motoristas, passageiros e pedestres. É certo que prefeituras instalam
equipamentos eletrônicos de fiscalização e muitas vezes multam os infratores.
Mas pelo visto não é suficiente. Além de fiscalizar, é preciso realizar
campanhas educativas informando sobre as normas de trânsito e até criando
vergonha nos imprudentes. Acima de tudo, é preciso puni-los com rigor. Há uma
crença equivocada de que uma pequena violação não faz mal. Não só faz mal, como
mata.
Ainda falta longo caminho para inflação
atingir a meta
Valor Econômico
O trabalho do BC poderia ser mais abreviado e menos custoso se a política fiscal buscasse obter superávits primários e se o governo Lula evitasse lançar medidas sem parar para manter o crescimento a todo custo
O Banco Central não espera uma volta rápida
da inflação para abaixo do teto da meta e muito menos para seu centro, de 3%.
Nos cenários apresentados pelo Relatório de Política Monetária de março,
divulgado ontem, o IPCA só será inferior a 4,75% no primeiro trimestre do ano
que vem. A inflação subirá mais antes de cair. De março até junho, se situará
em torno de 5,5%, acima dos 5,06% nos 12 meses encerrados em fevereiro. E só se
aproximará da meta de 3% no terceiro trimestre de 2027, um ano depois do cenário
relevante para a política monetária, o mesmo trimestre de 2026. Diante de
condições adversas para a convergência da inflação, com expectativas
desancoradas em todos os prazos, o BC sinalizou mais uma alta de juros, desta
vez inferior a 1 ponto percentual, e a continuidade de uma política bastante
contracionista por um longo período.
A economia vai se adaptar a um quadro em que
as condições financeiras já se tornaram mais apertadas e à perspectiva de que a
taxa real de juros atinja seu pico de 9,4% no segundo trimestre, com inflação
projetada de 5,5% no cenário de referência do período. Isso indica que a taxa
Selic poderá atingir 15% até junho, com duas reuniões do Comitê de Política
Monetária (Copom) programadas até lá. A partir daí, o BC terá de optar entre
decidir por mais aumentos dos juros, o que pode ser excessivo, ou por manter taxas
altas por mais tempo.
Há fatores que poderão contribuir para que o
alvo do BC seja atingido. No Relatório de Política Monetária, ele reduziu a
previsão de crescimento do Produto Interno Bruto de 2,1% para 1,9%. A
desaceleração se dará depois do primeiro trimestre, para o qual se espera um
desempenho forte da agricultura, cuja estimativa de expansão foi elevada de 4%
para 6,5%. No lado da demanda, o consumo das famílias, que fechou em queda no
último trimestre de 2024, deverá subir 1,5% em 2025, ante 2,4% na previsão
anterior. Com a redução do ritmo da economia, as importações declinarão, e o
setor externo, que diminuiu em 1,8% o PIB de 2024, terá influência neutra
(zero) este ano.
A elevação dos juros derrubará as concessões
de crédito. O saldo dos empréstimos encerrou o ano passado com variação de
11,5%. O BC reduziu sua projeção de expansão de 9,5% para 7,7%, com crescimento
real de 2,5%, praticamente a metade da evolução real do ano passado. A
contenção do crédito é importante porque o impulso do fluxo financeiro por ele
proporcionado às atividades foi muito forte em 2024. As concessões bateram um
recorde histórico, com um aumento de 10,7% além da inflação. O impulso do
crédito, calculado em um box do Relatório, correspondeu a 1,1% do PIB, ou R$
128 bilhões. A ele se acrescentam o aumento das captações de empréstimos das
empresas no mercado de capitais, que vêm crescendo e dobraram de 2019 até
agora, atingindo R$ 489 bilhões no ano passado. O impulso do crédito para as
empresas foi de 1% do PIB.
A economia deve esfriar, mudando a direção do
hiato do produto, uma medida que mostra o quanto o crescimento da economia se
aproxima ou se afasta de seu potencial. Ela está crescendo além desse potencial
em 0,6% no primeiro trimestre do ano, e o hiato se tornará negativo no terceiro
trimestre de 2026 em 0,8%.
Um comportamento benigno do dólar teria um
papel fundamental para derrubar a inflação e as expectativas, mas é impossível
apostar em valorizações adicionais do real ou mesmo na estabilidade do câmbio
em seu nível atual. Sua importância fica clara na decomposição dos fatores que
mais influenciaram no IPCA de 2024, de 4,83%, com 1,83 ponto percentual acima
da meta. A inflação importada foi o fator de maior peso para o desvio da meta,
com 0,72 ponto. O peso da maxidesvalorização cambial foi maior, de 1,21 ponto,
mas foi amortecida por uma queda de 0,59 ponto nos preços do petróleo. A
inércia inflacionária, a força que espalha aumentos de preços passados ao
presente, foi o segundo fator, com 0,52 ponto. O crescimento acima do potencial
colaborou com mais 0,49 ponto.
A supersafra agrícola traz boas notícias para
os preços dos alimentos, que avançaram 8,2% em 2024, mas, segundo o BC, não
terá influência sobre um dos principais produtos a puxar a alta, a carne bovina
- 22,4% de variação no ano passado. A Conab espera uma queda de 5% de sua
produção neste ano e redução de 8,5% na disponibilidade interna, devido a
fortes exportações. Os preços vão então subir, embora muito menos que em 2024.
No questionário pré-Copom, os participantes do Focus estimaram aumento de 9,6%.
A principais arma do ajuste têm sido os juros, que, apesar de estarem muito altos, não causarão recessão. O trabalho da política monetária poderia ser mais abreviado e menos custoso se a política fiscal buscasse obter superávits primários, com cortes maiores nos gastos, e se o governo Lula evitasse lançar medidas sem parar (inclusive de crédito) para manter o crescimento a todo custo, que retardam a queda da inflação. Ampliar a desconfiança sobre a fragilidade das contas fiscais pode provocar novos surtos de desvalorização do real e ampliar o fôlego ainda mal contido dos preços.
Deterioração fiscal nos EUA é perigo para o
mundo
Folha de S. Paulo
Moody's alerta para expansão da dívida
pública, que pode se agravar, apesar da preocupação de Trump em cortar despesas
Pode parecer exótico dizer que a dívida
pública dos Estados
Unidos vai se tornar um problema para o financiamento do governo
americano, para a estabilidade econômica do país e para os mercados do mundo.
Contudo a preocupação deixou de ser extravagante, como se viu mais uma vez
em alerta
divulgado pela agência de classificação de risco Moody’s.
Há receios de turbulências sérias, em
especial depois da crise que se iniciou em 2008. A crença de que as
dificuldades seriam temporárias se desfez com a pandemia e com as políticas
de Donald
Trump, de redução infundada de impostos, e de Joe Biden, de
estímulo econômico via despesa.
A dívida do governo federal em poder do
público chegou a 97,8% do Produto Interno Bruto em 2024, segundo a Consultoria
de Orçamento do Congresso dos EUA, e deve subir a 100% neste ano. Desde 1900, a
dívida só foi tão alta no final da Segunda
Guerra Mundial, em 1945 e 1946. Antes da crise de 2008, estava na casa de
35% do PIB; antes do início da emergência sanitária, era de 79%.
O passivo do governo aumentou mesmo nos anos
recentes com bom crescimento econômico. O déficit público em 2024, de 6,6% do
produto, foi o maior em meio século, excetuados os dos anos seguintes aos da
grande crise financeira e da Covid-19.
Como em boa parte do mundo, há fatores de
aumento crônico do gasto, como o envelhecimento da população, que gera demandas
previdenciárias e de saúde. Isso posto, depois da breve tentativa de Barack Obama,
entre 2014 e 2016, não houve programas de redução do déficit, mesmo em ambiente
de taxas de juros de
novo mais altas.
Muito pouco se sabe da política fiscal de
Trump. O novo governo pretende elevar
a arrecadação com mais impostos de importação e conter a despesa com
um processo de redução do estado por ora caótico, de resultado incerto e
sujeito a judicialização. Ao mesmo tempo, o mandatário republicano promete
grandes cortes de impostos.
A uma dívida já elevada, que cresce
rapidamente com juros e déficits altos, somam-se a incerteza fiscal e uma
provável desaceleração econômica. Com a enorme necessidade de recursos, mesmo
em relação ao tamanho da economia global,
existe risco de graves instabilidades.
Por exemplo, receios de investidores podem
criar uma súbita dificuldade de financiamento e, a seguir, expansão de juros ou
travamento do gigantesco mercado financeiro americano.
Note-se que cerca de um quarto da dívida está
em mãos de estrangeiros, também cada vez mais ressabiados com sanções e, agora,
com a agressividade de Trump. Bancos centrais pelo mundo reduzem seus haveres
em títulos do Tesouro americano, a começar pelo da China.
Os juros tendem a ficar em níveis elevados, o
que também afeta o mundo —e
o Brasil, outro caso de descalabro fiscal, está longe de ser exceção.
O Brasil está mais seco
Folha de S. Paulo
Superfície de água encolhe por dois anos
seguidos; abundância do recurso no país não significa sustentabilidade eterna
Dois anos consecutivos de diminuição da
superfície de água no Brasil deveriam disparar todos os alarmes governamentais.
É consternador o dado apurado pelo MapBiomas com imagens de satélites: o recuo
medido em 2024 foi de 2,2% sobre 2023 e
de 3,2% na comparação com a média histórica.
O país contava no ano passado 17,9 milhões de
hectares de espelho d’água, de acordo com o consórcio de instituições de
pesquisa, empresas e ONGs ambientais. A série histórica de mapas anuais
produzidos pelo grupo começa em 1985 e reúne ainda dados como áreas de desmatamento, agricultura e
aglomerados urbanos.
Em quilômetros quadrados, medida talvez mais
familiar, o conjunto de corpos d’água em território nacional corresponde a 179
mil. Trata-se de uma área de apenas 2,1% do Brasil, mas com tamanho quase
equivalente ao estado do Paraná ou a três quartos do estado de São Paulo.
Não é por outra razão que este país tropical
figura como potência em recursos hídricos, a garantir, por exemplo, uma matriz
energética com alto grau de fontes renováveis (49%, de acordo com dados de
2023). De toda a eletricidade produzida aqui, nada menos do que 59% provêm de
energia hidráulica.
Abundância não significa, todavia, sustentabilidade para
todo o sempre. Em especial sob as condições preocupantes da mudança
climática em curso, prevê-se diminuição da precipitação média em todo
o território. A
devastação de florestas, reguladoras naturais de vazões hídricas, também
contribui para delinear o espectro de escassez.
A maior parte da superfície de água (61%) se
encontra na amazônia,
seguida pelo bioma mata
atlântica (13%). Não por coincidência, duas florestas chuvosas. Outra
área úmida célebre é o pantanal, que
no entanto concentra apenas 2% da área hídrica total.
O pantanal atualmente se encontra na pior
condição, mostrando-se 60% mais seco do que na média histórica do MapBiomas.
Rios, baías e corixos da planície inundável dependem
das chuvas e nascentes do planalto adjacente, no cerrado.
Este, por sua vez, sofre com desmatamento
pela expansão do agronegócio.
Além disso, é o bioma nacional com a lâmina d’água mais alterada por ação
humana.
Auspicioso é que o cerrado, assim como caatinga e mata atlântica, apresentou em 2024 uma cobertura hídrica maior do que a média histórica. Isso não parece bastante, contudo, para contrabalançar a tendência preocupante: desde 1985, os corpos d’água naturais sofreram recuo de 15%.
Sob inspiração da truculência
O Estado de S. Paulo
Para Guilherme Derrite, País deveria aprender
com El Salvador, que reduziu homicídios em meio a denúncias de abusos e é
referência para quem prefere a lei da selva à democracia
O secretário de Segurança Pública de São
Paulo, Guilherme Derrite, confirmou o que já se suspeitava: seu apreço pela
política da truculência tem no regime de exceção instaurado por Nayib Bukele,
em El Salvador, um modelo a ser seguido. Durante recente evento em Brasília,
com a presença de autoridades e especialistas na área, Derrite afirmou que o
Brasil deveria aprender com o pequeno país da América Central para reduzir os
índices de homicídios – e aproveitou para criticar um programa federal
destinado a combater violações de direitos humanos no sistema prisional
brasileiro.
O exemplo salvadorenho é exatamente isto: a
combinação entre redução drástica de homicídios com perturbadoras evidências de
violações de direitos humanos. É uma estratégia sedutora para políticos que
apostam na aniquilação de criminosos para superar a sensação de medo na
população e transformar cadáveres em votos. A estratégia mais eficiente, que
poupa vidas e respeita o Estado Democrático de Direito, não gera tanta
visibilidade e muitas vezes é confundida com leniência com os criminosos. Assim
pensa Derrite, que foi afastado da Rota, a elite da Polícia Militar de São
Paulo, por desvio de conduta (“porque matei muito ladrão”, segundo suas
próprias palavras).
A inspiração salvadorenha do secretário
paulista tornou-se conhecida tanto pela eficácia na repressão quanto por ser
uma política que despreza direitos fundamentais. Quando Bukele chegou ao poder,
em 2019, El Salvador era conhecido como um dos países mais violentos do mundo.
A população agonizava com o medo, a violência e as mortes decorrentes das
disputas entre as “maras”, como são chamadas as gangues formadas por filhos de
imigrantes que regressaram ao país após a guerra civil, que durou entre 1979 e 1990
e matou, segundo dados oficiais, mais de 100 mil pessoas.
Em 2022, o presidente salvadorenho impôs um
estado de emergência que lhe deu plenos poderes para mandar prender e matar
criminosos. Com passe livre para reagir com violência e efetuar prisões sem
mandados, o governo criou megaprisões e lotou as existentes – a mais conhecida,
o Centro de Confinamento do Terrorismo, tem capacidade para até 40 mil presos e
não permite acesso nem de jornalistas nem, pasmem, de advogados. Hoje El
Salvador tem mais de 100 mil presos, ou 1,7% da população, marca capaz de assustar
até mesmo quem acha que no Brasil há encarceramento em massa (por aqui, a
proporção de presos é de 0,3% da população).
Com criminosos varridos do mapa, os
homicídios desabaram, a ponto de, em 2023, El Salvador ter sido listado entre
os países mais seguros da América Latina. Mas missões internacionais e
organizações de direitos humanos têm repetidamente denunciado os efeitos do
modelo de Bukele. Reconhecem que seu governo conseguiu controlar as gangues de
forma impressionante, mas a um alto custo para a sociedade: com deterioração de
direitos, prisões de inocentes, detenções arbitrárias sem ordem judicial,
ameaças à democracia e mortes sob a custódia do Estado.
Trata-se de um modelo de perigosa eficácia,
que usa a brutalidade e o medo como armas poderosas para render votos e fama.
Bukele se reelegeu em 2024, mesmo com a Constituição de seu país proibindo a
reeleição; Derrite passeia por eventos como pré-candidato, exibindo-se como
secretário linha-dura, mantido no cargo pela inexplicável condescendência do
governador Tarcísio de Freitas. O presidente salvadorenho e o secretário
paulista são produto da crise da segurança pública, desafiada pelo crime
organizado. A alternativa à truculência é custosa e demorada. Já o modelo
Bukele é barato e ainda dá votos. É de olho nisso que até prefeitos, que não
têm entre suas atribuições cuidar de policiamento, estão investindo na imagem
de paladinos da segurança.
Como lembrou a organização Human Rights
Watch, os salvadorenhos não deveriam se ver forçados a escolher entre segurança
e outros direitos fundamentais. Nem salvadorenhos, nem brasileiros, nem
quaisquer cidadãos do mundo, convém acrescentar. Só quem tenta difundir a
inevitabilidade de tal escolha são cabeças como Bukele e Derrite, que confundem
endurecimento contra o crime com truculência, transformam agentes do Estado em
vingadores, combatem barbárie com mais barbárie e ignoram que democracia não
combina com a lei da selva.
Alta dos alimentos não é passageira
O Estado de S. Paulo
Lula erra ao tentar paliativos para inflação
dos alimentos que há mais de uma década sobe acima do IPCA. Estudo comprova que
questão é mais profunda e exige solução estrutural
A inflação dos alimentos, que abalou a
popularidade de Lula da Silva e estimulou uma série de ideias e declarações
estouvadas do presidente, não é um fenômeno passageiro. Há mais de uma década
os preços alimentícios têm registrado crescimento acima da média da cesta de
produtos do índice geral de inflação, o IPCA, e sofrem agora o forte abalo das
mudanças climáticas, que afetam também a produtividade agrícola. É um fenômeno
complexo, que se espalha pelo mundo e que atinge com mais intensidade países
como o Brasil em razão de carências estruturais internas.
Numa minuciosa análise publicada no blog do
Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), na qual
compila levantamentos de diferentes pesquisadores do instituto, o diretor do
FGV Ibre, Luiz Guilherme Schymura, faz um raio X do deslocamento mundial da
alta dos preços dos alimentos da inflação cheia, que por cerca de duas décadas
– de 1980 até meados dos anos 2000 – tiveram trajetórias próximas. E examina
com especial atenção a perda de produtividade agrícola do Brasil, despreparado para
mitigar prejuízos dos fenômenos extremos do clima.
Diante da análise do economista, parecem
ainda mais caricatas as medidas propostas por Lula da Silva para tentar forçar
a queda de preços num estalar de dedos – como se uma simples palestra
presidencial com produtores e varejistas tivesse o condão de baixar custos, ou
como se uma resolução de isenção tributária de importação abarrotasse de
alimentos baratos o mercado doméstico, a despeito de uma crise que é mundial.
Não cabem superficialidades numa questão tão
profunda. Alguns preços podem até baixar diante da reversão de fatores que
intensificaram a alta. Na pecuária, por exemplo, depois do chamado “ciclo do
boi”, com redução da oferta a cada cinco ou seis anos, a alta extraordinária do
preço da carne tende a recuar. O arroz, que no ano passado teve o preço
pressionado pelas perdas expressivas de produção em razão das enchentes no Rio
Grande do Sul, pode estabilizar, mas o fato é que o encarecimento do produto
ocorre desde 2019, como mostram os dados da FGV.
Como exemplo da dimensão dos eventos que nos
últimos cinco anos contribuíram de forma intensa para a alta dos alimentos, os
pesquisadores da FGV listaram a disrupção de oferta causada pela pandemia em
2020/2021; a crise hídrica extremamente severa no Brasil, em 2021, e na
Argentina, em 2023; a invasão russa da Ucrânia, um importante produtor global
de grãos; e a conjunção dos fenômenos El Niño e La Niña em 2023 e 2024, com
efeito particularmente forte no Brasil.
Schymura chama a atenção para a necessidade
de recolocar em pauta a agenda pública de políticas de suprimento e segurança
alimentar, com foco nas culturas que produzem alimentos que vão diretamente
para a mesa dos brasileiros. Isso pode ser traduzido como uma atuação mais
forte do governo no monitoramento da produção, na recomposição de estoques
públicos, nos incentivos para investimentos em silagem, nas vias de escoamento
e no crédito mais voltado a essas culturas, e não apenas nas que são altamente
rentáveis.
O Brasil se prepara para colher uma
supersafra recorde de grãos, estimada em 328,3 milhões de toneladas pela
Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Recente reportagem da
revista Forbes destaca que a atual capacidade estática de armazenagem
no País é estimada em 210,1 milhões de toneladas, ou seja, uma diferença de
118,2 milhões de toneladas entre o que será colhido e o que poderá ser
estocado.
É sobre a infraestrutura que o governo
deveria estar se debruçando, se a preocupação fosse baratear alimentos de forma
estrutural, com resultados mantidos no longo prazo, e não onerar exportações
para ampliar a oferta doméstica, como chegou a ser aventado. Como resumiu
Schymura, o foco deve ser o de estimular a produção adicional de alimentos, e
não dificultar outras áreas do agronegócio.
Deslealdade
O Estado de S. Paulo
Deputada condenada pelo STF, fidelíssima
bolsonarista, foi abandonada por Bolsonaro
Os sinos não vão dobrar pela sra. Carla
Zambelli, deputada que o Supremo Tribunal Federal (STF) deve condenar à prisão
pelos crimes de porte ilegal de arma de fogo e constrangimento ilegal com
emprego de arma de fogo. A referida parlamentar não tem a menor importância
para o País, a não ser como exemplo da forma francamente desleal como o
ex-presidente Jair Bolsonaro trata aqueles que, como a sra. Zambelli, lhe
devotam cega fidelidade.
Que a sra. Zambelli é desqualificada para o
exercício da representação parlamentar já é do conhecimento de todos há muito
tempo. A indigitada é o tipo ideal do bolsonarismo: mitômana, inventou ter sido
curada de covid-19 apenas com o uso de cloroquina, inventou que o governo
cearense enterrou caixões vazios para aumentar as estatísticas de mortos na
pandemia e inventou que foi agredida pelo infeliz que ela temerariamente
perseguiu, arma em punho, pelas ruas de São Paulo – crime pelo qual ela agora
pagará. Ou seja, ela se notabilizou apenas pelo destrambelhamento e pela
incapacidade de dizer a verdade, e não por projetos de lei do interesse de seus
representados, razão pela qual ninguém deve chorar pela provável cassação de
seu mandato.
Em defesa da sra. Zambelli, contudo, deve-se
enfatizar que tudo o que de infame ela fez, cada mentira que contou, estava
perfeitamente consoante com o espírito do bolsonarismo. Ou seja, a deputada
condenada existe e respira apenas como sintoma dessa doença infantil do
reacionarismo.
E essa doença infantil é intrinsecamente
pusilânime. O ex-presidente, há alguns dias, culpou a ainda deputada por ter
perdido a eleição de 2022. “Carla Zambelli tirou o mandato da gente”, disse
Bolsonaro ao podcast Inteligência Ltda., em referência justamente ao caso
em que a sra. Zambelli, de arma na mão, saiu a perseguir um desafeto. Para
Bolsonaro, essa imagem arruinou suas chances de vitória em São Paulo e,
consequentemente, no Brasil.
Eis aí Jair Bolsonaro em sua melhor forma:
para não reconhecer que perdeu a eleição de 2022 porque desrespeitou a dor dos
brasileiros que tiveram familiares e amigos mortos durante a pandemia de
covid-19 e porque atentou dia e noite contra o espírito da democracia
brasileira, Bolsonaro joga a culpa por sua derrota em cima de uma obscura
deputada – que, reitere-se, agiu apenas como boa bolsonarista. O nome disso,
claro, é covardia.
Em resposta, a sra. Zambelli até murmurou um
protesto: “Enfrentar o julgamento dos inimigos é até suportável. Difícil é
aguentar o julgamento das pessoas que sempre defendi e continuarei defendendo”,
escreveu ela nas redes sociais. Debalde: como sabem os muitos sabujos de
Bolsonaro que acabaram descartados por ele quando deixaram de ter alguma
utilidade a seus projetos pessoais, o ex-presidente exige lealdade absoluta de
todos os que querem dele se aproximar, mas não garante reciprocidade.
Portanto, o caso da sra. Zambelli só tem uma utilidade: mostrar àqueles que juram lealdade a Bolsonaro neste momento – achando que com isso terão a simpatia e o apoio eleitoral do ex-presidente – que correm sério risco de ter o mesmo destino da parlamentar: o descarte
Cabo de guerra entre médicos e farmacêuticos
Correio Braziliense
Em meio à polêmica de quem detém o direito à
prescrição, a saúde tem outra batalha pela frente, essa bem mais antiga: os
altos índices de pessoas que recorrem à automedicação
Nas últimas semanas, uma contenda entre
médicos e farmacêuticos tem sido travada em decorrência de resolução aprovada,
em 20 de fevereiro, pelo plenário do Conselho Federal de Farmácia (CFF). A
medida nº 5/2025, publicada no último dia 17, permite que farmacêuticos,
devidamente qualificados, prescrevam medicamentos classificados como tarjados,
que tradicionalmente exigem receitas emitidas apenas por médicos.
O documento teve repercussão ruim entre os
conselhos federais, associações e sociedades médicas de todo o país. Em nota, o
Conselho Federal de Medicina (CFM) pontuou que "a prescrição exige
investigação, diagnóstico e definição do tratamento, competências exclusivas
dos médicos" e classificou a resolução como "absolutamente ilegal e
desprovida de fundamento jurídico".
A Associação Médica Brasileira (AMB)
demonstrou preocupação, alegando que a prescrição de medicamentos é o ato final
de um processo complexo de anamnese, exame físico e exames complementares para
alcançar um diagnóstico correto. Segundo a associação, o farmacêutico não tem a
formação necessária para conduzir esse processo e, caso medicamentos sejam
utilizados de maneira equivocada, podem colocar em risco a saúde da
população.
Em meio à polêmica de quem detém o direito à
prescrição, a saúde coletiva tem outra batalha pela frente, essa bem mais
antiga: os altos índices de pessoas que recorrem à automedicação no Brasil, sem
receita médica ou qualquer acompanhamento por parte de um especialista, seja
ele médico, farmacêutico ou qualquer outro profissional da área.
Levantamento feito por entidades ligadas à
Organização das Nações Unidas (ONU) mostra que o hábito de tomar remédio sem
prescrição pode matar 10 milhões de pessoas por ano até 2050 em todo o
mundo.
No Brasil, os índices são da mesma forma
alarmantes. Segundo estudo do CFF, quase metade dos brasileiros se automedicam,
pelo menos, uma vez por mês e 25% recorrem à prática diariamente, ou pelo menos
uma vez por semana. Ainda de acordo com a pesquisa, a automedicação é um hábito
comum a 77% dos brasileiros.
Entre os argumentos a favor da resolução do
CFF, está a possibilidade de reduzir justamente esse costume dos brasileiros,
devido ao maior acesso a profissionais de saúde que possam fazer prescrições.
Além disso, o conselho alega que, atualmente, profissionais de farmácia já
podem prescrever remédios para quadros de saúde leves, como resfriados, gripes
e reações alérgicas e alguns medicamentos controlados, desde que dentro de
protocolos específicos, como para o tratamento de pacientes com HIV.
Em entrevista recente, o ministro da Saúde,
Alexandre Padilha, disse ser favorável ao novo modelo somente "dentro de
programas estratégicos", com protocolos bem definidos. O Conselho de
Medicina, por sua vez, cita que a Justiça Federal do Distrito Federal já havia
declarado, em novembro de 2024, a ilegalidade da resolução CFF nº 586/2013, que
versa sobre a prescrição autorizada de medicamentos por farmacêuticos, seja com
ou sem prévia prescrição médica.
A guerra continua no mês que vem, data em que, teoricamente, a nova resolução entra em vigor. Teoricamente porque, em ofensiva recente, o CFM protocolou, no último dia 20, na Justiça do DF, uma ação judicial na tentativa de anular o documento. Independentemente do resultado, é certo que o acesso dos brasileiros às medicações precisa ser aperfeiçoado.
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