sábado, 17 de abril de 2010

ENTREVISTA Ângela de Castro Gomes::País onde a intervenção é tradição



DEU EM O GLOBO

Presença estatal na economia e nas relações sociais moldou a cultura política dos brasileiros, diz historiadora

Uma das mais importantes pesquisadoras de questões ligadas à legislação trabalhista no Brasil, a historiadora Ângela de Castro Gomes diz que a própria concepção de cidadania e de Estado do brasileiro é formada a partir de uma experiência de intervenção estatal na atividade econômica e na vida social. A regulação das relações de trabalho é um dos eixos dessa atuação, afirma. Professora titular da UFF e coordenadora da pós-graduação em História, Política e Bens Culturais do CPDOC/FGV (Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getulio Vargas), ela conversou com O GLOBO sobre a história da definição das atribuições do Estado no Brasil.


Miguel Conde

O GLOBO: Declarações de Dilma Rousseff e José Serra sugerem que a discussão sobre o tamanho e atribuições do Estado será recorrente na campanha presidencial. Num artigo recente, o historiador Daniel Aarão Reis propôs um enfoque mais amplo para essa questão, constatando o retorno na América Latina de uma tradição nacional-estatista, que parecia abandonada em favor de um ideário mais liberal. Que tradição é essa?

ÂNGELA DE CASTRO GOMES: Não há exatamente uma tradição política nomeada como nacionalestatismo, mas essa noção pode ser usada para designar uma tradição de intervenção do Estado em certos assuntos, econômicos e sociais, nos quais o Estado de finais do século XIX e início do século XX não atuava. Embora o Estado liberal tampouco fosse um Estado ausente, como às vezes se diz, ele tinha restrições que são revistas a partir da crise de 1929 e da Segunda Guerra. A partir daí se constroi um outro paradigma de ação do Estado, atuante em assuntos até então não tocados. O exemplo mais clássico é o da regulação do mercado de trabalho, com as leis ditas trabalhistas. Mas nem todos Estados que aumentam seu grau de intervenção aumentam da mesma maneira. No caso do Brasil, o trabalho é uma área prioritária na construção dessa tradição política.O nosso Estado intervencionista é um Estado que atua na área do mercado de trabalho. Nos Estados Unidos, por exemplo, não.

Quais são os modelos principais entre os vários diferentes dentro dessa linhagem?

ÂNGELA: Nos Estados Unidos, a quebra da bolsa de valores em 1929 desencadeia um intervencionismo mais econômico, keynesiano, em que o Estado faz grandes empreendimentos e cria empregos. Por outro lado, após a Segunda Guerra surge na Europa o Estado de bem-estar social, onde há patamares mínimos em relação à saúde, educação, previdência. O Brasil caminha nos dois sentidos. A intervenção do Estado na economia e nas políticas sociais marca nossa concepção de cidadania.

Existe alguma relação necessária entre autoritarismo e estatismo?

ÂNGELA: Todo tipo de liderança se apropriou dessa tradição. Em Getúlio Vargas, que é um marco inicial, essas coisas caminham muito perto uma da outra. Já o governo JK não tem um projeto autoritário, embora trabalhe com essa tradição nacional-estatista, se apropriando dela e adequandoa às questões que estavam sendo eleitas politicamente como decisivas naquele momento. No regime militar também há um Estado intervencionista, mas em outro modelo, e sem o elemento carismático de Getúlio ou Juscelino.

De que maneira o estatismo se liga à nossa concepção de cidadania, como a senhora disse?

ÂNGELA: Existe uma noção dos deveres do Estado que é informada por essa tradição.
Isso começa já nos períodos de 1930 e 1940, com o estabelecimento dos direitos do trabalho, o que gera por exemplo na década de 1950 mobilizações de trabalhadores rurais que também querem ser contemplados por essa regulação. Mais recentemente, por exemplo, tivemos problemas com as chuvas. Os cidadãos brasileiros em nenhum momento duvidam que o Estado tem obrigação de atuar nesses casos. Isso que parece para a gente natural não é natural em outras culturas políticas. O exemplo americano quando do furacão Katrina mostrou isso. Se houvesse uma tragédia daquelas proporções no Brasil, seria inconcebível que o nosso governo federal reagisse como o governo americano reagiu.

É comum ouvir que a intervenção do Estado muitas vezes cria relações de dependência, mas a senhora destaca uma outra consequência, que é uma tradição de cobrança.

ÂNGELA: Essa forma de analisar a intervenção estatal é muito capenga e às vezes até maldosa. Não compartilho da ideia de que a população brasileira seja não participativa e não solidária . A nossa população é participativa politicamente, aprendeu a ser assim.

Até que ponto, em sua opinião, o governo Fernando Henrique Cardoso pôs em questão essa tradição? Houve uma mudança mais econômica, com as privatizações de empresas, ou também em outros setores?

ÂNGELA: Houve um questionamento amplo desse modelo. No fim do governo Fernando Henrique havia uma proposta que havia sido votada já, mas não tramitou até o fim, que significaria uma diminuição muito grande de direitos do trabalho, pois valeria mais o contratado do que o legislado. E isso teria impactos muito grandes num certo patamar mínimo de direitos do trabalho.

Mas durante o governo FH também houve criação e ampliação de programas de amparo social. Haveria iniciativas contraditórias do ponto de vista dessa tradição?

ÂNGELA: Claro. O Estado é composto por elites e grupos políticos que muitas vezes defendem políticas conflitantes. As iniciativas nem sempre combinam umas com as outras.

E hoje há um retorno a um modelo anterior de Estado?

ÂNGELA: A primeira década do século XXI, sobretudo o final da década, pôs em questão postulados de que o Estado não deveria atuar em certas áreas, mas não acho que se tenha voltado a um modelo de décadas atrás. Se na década de 1930 e 1940 se imaginava, sobretudo em países do tipo do Brasil, que o Estado devesse ter uma pauta de ação de X itens, hoje é muito mais discutível o tamanho desse X. E além disso mudou a percepção das formas como o Estado pode intervir. Hoje concorda-se que muita coisa pode ser feita em parceria com a sociedade, tanto com empresas privadas quanto com outro tipo de associação. Há ONGs péssimas e outras muito boas que fazem coisas ótimas, e o Estado pode ser parceiro delas também. Isso abre as possibilidades para você imaginar a atuação do Estado.

O que um programa como o Bolsa Família cria de expectativas do cidadão na sua relação com o Estado?

ÂNGELA: De modo geral, cada vez mais determinado tipo de ausência do Estado é entendida como intolerável na nossa democracia. No caso do Bolsa Família, há uma crítica de que seria uma política mais paliativa do que transformadora. Além disso, é certo que os níveis de desvio de dinheiro, para não falar de corrupção explícita, são coisas muito graves.Mas é bom lembrar que há uma continuidade. O Bolsa Família surge do Bolsa Escola, implantado antes de o PT chegar ao poder. Projetos como esse se tornam tão importantes que os partidos podem até mudá-los, mas não simplesmente acabar com eles. E o que se vê é que em função de iniciativas como essa é que temos hoje um número muito maior de crianças na escola. Ainda temos trabalho infantil, mas certamente com programas como esse é mais fácil você convencer uma família muito pobre de que o filho dela tem que ir para a escola em vez de trabalhar. A família pode se acomodar, é verdade, mas muitas famílias não colocariam seus filhos na escola se não fosse por aquele rendimento. Essas políticas são muitas vezes ambivalentes.

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