DEU EM O GLOBO
Cientista política aponta diferenças e semelhanças entre os modelos de Estado propostos por Dilma e Serra
Autora de mais de 20 obras sobre governantes brasileiros, de Getúlio Vargas a Lula, a cientista política Maria Celina D’Araújo, professora da PUC-Rio, acredita que esta eleição coloca “de forma definitiva” a questão do tamanho e das funções do Estado. Segundo ela, enquanto Dilma Rousseff segue o modelo de Estado “indutor” adotado por Lula, com um viés desenvolvimentista que remete à Era Vargas, José Serra propõe uma articulação entre Estado, mercado e sociedade que valoriza agências reguladoras criadas por Fernando Henrique Cardoso. Já a candidatura de Marina Silva, avalia Maria Celina, debate o futuro do país não a partir de ideologias de Estado, mas de temas como meio ambiente e sustentabilidade.
Guilherme Freitas
O GLOBO: No atual estágio da campanha, é possível dizer se o papel do Estado será um tema central no debate eleitoral?
MARIA CELINA D‘ARAÚJO: Já está sendo. A campanha já trouxe para a agenda política nacional a questão do tamanho do Estado e das funções do Estado. Este debate ficou nas entrelinhas nos últimos 15 anos, quando se deu mais na forma de uma troca de acusações entre governo e oposição. Agora volta como uma questão doutrinária, colocada de forma definitiva: qual é o papel do Estado? Qual deve ser o tamanho do estado? Quais são as funções do Estado? Isso fica claro na retomada que a campanha de Dilma faz da questão do Estado desenvolvimentista, um Estado que dirige a economia, planeja e faz investimentos diretos. Esse é o modelo econômico da Era Vargas, que a campanha dela tem trazido para o debate como uma necessidade. Esse modelo da Era Vargas — o modelo econômico, não o político — se esgotou na década de 1980, com a crise fiscal. Um Estado desenvolvimentista significa um Estado com capacidade de investir, e desde os anos 1980 o Estado brasileiro investe muito pouco.
O aceno de Dilma em direção a um Estado desenvolvimentista seria questão de retórica?
MARIA CELINA: Sim. Mesmo no governo Lula, embora ele tenha feito uma defesa do Estado desenvolvimentista e criado várias estatais, as intervenções na dinâmica da economia foram pouco expressivas. Essa dinâmica está dada desde o governo Fernando Henrique por um modelo que não é estatizante. Desde os anos 1980, o Brasil vem abandonando um modelo estatizante, um modelo de mercado com alguma regulação, e isso não foi mudado no governo Lula. A taxa de investimento do Estado hoje é muito baixa, porque ele não tem dinheiro para fazer grandes investimentos. Veja o caso da usina de Belo Monte: ela só pode ser feita através de um leilão. Isso é muito diferente de construir uma Itaipu, como o Estado fez nos anos 1970. Mesmo as obras do PAC, que são investimentos muito importantes em moradia e saneamento, por exemplo, não podem ser comparadas, em termos de escala, às obras promovidas pelo Estado nos anos 1950 e 1960.
Lula usa muito o termo “Estado indutor”, que Dilma adotou na campanha. Como esse discurso ecoa na sociedade?
MARIA CELINA: Isso também é Era Vargas: o Estado que induz, que aponta o caminho e vai à frente da sociedade. Ao defender o desenvolvimentismo, Dilma apresenta uma proposta ideológica de Estado grande e forte. Essa proposta tem uma ressonância nacional muito grande. A sociedade brasileira gosta de Estado. O Estado é visto como bom empregador, embora não como bom prestador de serviços. Mas é visto como bom empregador e bom empresário. A sociedade brasileira sofreu com as privatizações, porque acredita que a empresa estatal é melhor que a empresa privada. Isso é uma característica nossa, há uma “Estadolatria” muito interessante, que perpassa vários setores da sociedade, das camadas populares às mais ricas, e várias ideologias, tanto de direita quanto de esquerda.
Há diferenças significativas entre os modelos de Estado propostos pelos candidatos?
MARIA CELINA: O discurso de defesa do Estado feito por Dilma é mais forte que o de Serra. Embora também tenha apreço pelo Estado e seja um social-democrata, Serra deve bater na tecla da articulação entre Estado, sociedade e mercado. Dilma bate na tecla do Estado mais forte, do Estado que “induz” sociedade e mercado. Isso no nível do discurso.
Na prática, há limites estruturais para uma política mais estatizante. Tanto há limites que o governo Lula não adotou uma política desse tipo. Teve oito anos para rever as privatizações, por exemplo, e não fez isso. O discurso estatizante mais à esquerda tem esbarrado em soluções pragmáticas.
E quais seriam as características da visão de Estado defendida por Serra?
MARIA CELINA: Seria um Estado mais regulador, que faria a articulação com sociedade e mercado principalmente através de agências reguladoras. Essas agências também apontam uma diferença entre os dois projetos. Elas foram criadas no governo Fernando Henrique, o PT foi contra, e o governo Lula devolveu aos ministérios boa parte do poder acumulado por elas. O Estado, na visão de Serra, teria mais agências reguladoras e menos inchaço nos ministérios.
Lula e Fernando Henrique colocaram em prática concepções distintas do papel do Estado?
MARIA CELINA: Quem mexeu efetivamente na arrumação econômica do Estado foi Fernando Henrique. Fez uma reforma do Estado, mexeu nas organizações econômicas estatais e pagou um preço por isso. Paga até hoje. As privatizações provocaram uma certa mágoa na sociedade brasileira em relação ao governo Fernando Henrique, que não conseguiu convencer a sociedade sobre a privatização de estatais como Vale e CSN, por exemplo, vistas como emblemas da soberania nacional. Lula não precisou correr um risco político tão grande. Não é que ele não quis fazer grandes mudanças econômicas. Ele não precisou.
A questão da intervenção do Estado na sociedade através de programas de redistribuição de renda, como o Bolsa Família, também divide os candidatos?
MARIA CELINA: A questão das políticas sociais no Brasil começou a ser discutida há muito tempo. No governo Sarney já existiam programas de distribuição de tíquete para leite e cestas básicas, por exemplo. O Estado brasileiro começou a praticar políticas sociais há 25 anos e isso foi se aprimorando até chegarmos ao Bolsa Escola, de Fernando Henrique, e ao Bolsa Família, de Lula, que não distribuem mais tíquetes de alimentos, e sim recursos para que as pessoas façam suas próprias escolhas, o que é uma política muito mais moderna. Isso está sendo debatido há muito tempo e não se poder dizer que há tantas diferenças assim entre os candidatos ou que os programas podem ser descontinuados em caso de mudança de governo. Eles podem até mudar de nome, mas vão continuar.
Como a candidatura de Marina Silva contribui para o debate sobre o papel do Estado nestas eleições?
MARIA CELINA: Marina é oxigênio novo na campanha, porque ela não discute o Estado, não traz para o debate esses temas tradicionais da política. A plataforma de Marina propõe que se pense o futuro do país não só em termos de ideologia, de haver mais Estado ou menos Estado, mas sim a partir de outras questões como meio ambiente, consumo, desenvolvimento sustentável. E essa plataforma terá que ser absorvida pelos outros candidatos e pela agenda do próximo presidente, independentemente do desempenho dela nas eleições.
Cientista política aponta diferenças e semelhanças entre os modelos de Estado propostos por Dilma e Serra
Autora de mais de 20 obras sobre governantes brasileiros, de Getúlio Vargas a Lula, a cientista política Maria Celina D’Araújo, professora da PUC-Rio, acredita que esta eleição coloca “de forma definitiva” a questão do tamanho e das funções do Estado. Segundo ela, enquanto Dilma Rousseff segue o modelo de Estado “indutor” adotado por Lula, com um viés desenvolvimentista que remete à Era Vargas, José Serra propõe uma articulação entre Estado, mercado e sociedade que valoriza agências reguladoras criadas por Fernando Henrique Cardoso. Já a candidatura de Marina Silva, avalia Maria Celina, debate o futuro do país não a partir de ideologias de Estado, mas de temas como meio ambiente e sustentabilidade.
Guilherme Freitas
O GLOBO: No atual estágio da campanha, é possível dizer se o papel do Estado será um tema central no debate eleitoral?
MARIA CELINA D‘ARAÚJO: Já está sendo. A campanha já trouxe para a agenda política nacional a questão do tamanho do Estado e das funções do Estado. Este debate ficou nas entrelinhas nos últimos 15 anos, quando se deu mais na forma de uma troca de acusações entre governo e oposição. Agora volta como uma questão doutrinária, colocada de forma definitiva: qual é o papel do Estado? Qual deve ser o tamanho do estado? Quais são as funções do Estado? Isso fica claro na retomada que a campanha de Dilma faz da questão do Estado desenvolvimentista, um Estado que dirige a economia, planeja e faz investimentos diretos. Esse é o modelo econômico da Era Vargas, que a campanha dela tem trazido para o debate como uma necessidade. Esse modelo da Era Vargas — o modelo econômico, não o político — se esgotou na década de 1980, com a crise fiscal. Um Estado desenvolvimentista significa um Estado com capacidade de investir, e desde os anos 1980 o Estado brasileiro investe muito pouco.
O aceno de Dilma em direção a um Estado desenvolvimentista seria questão de retórica?
MARIA CELINA: Sim. Mesmo no governo Lula, embora ele tenha feito uma defesa do Estado desenvolvimentista e criado várias estatais, as intervenções na dinâmica da economia foram pouco expressivas. Essa dinâmica está dada desde o governo Fernando Henrique por um modelo que não é estatizante. Desde os anos 1980, o Brasil vem abandonando um modelo estatizante, um modelo de mercado com alguma regulação, e isso não foi mudado no governo Lula. A taxa de investimento do Estado hoje é muito baixa, porque ele não tem dinheiro para fazer grandes investimentos. Veja o caso da usina de Belo Monte: ela só pode ser feita através de um leilão. Isso é muito diferente de construir uma Itaipu, como o Estado fez nos anos 1970. Mesmo as obras do PAC, que são investimentos muito importantes em moradia e saneamento, por exemplo, não podem ser comparadas, em termos de escala, às obras promovidas pelo Estado nos anos 1950 e 1960.
Lula usa muito o termo “Estado indutor”, que Dilma adotou na campanha. Como esse discurso ecoa na sociedade?
MARIA CELINA: Isso também é Era Vargas: o Estado que induz, que aponta o caminho e vai à frente da sociedade. Ao defender o desenvolvimentismo, Dilma apresenta uma proposta ideológica de Estado grande e forte. Essa proposta tem uma ressonância nacional muito grande. A sociedade brasileira gosta de Estado. O Estado é visto como bom empregador, embora não como bom prestador de serviços. Mas é visto como bom empregador e bom empresário. A sociedade brasileira sofreu com as privatizações, porque acredita que a empresa estatal é melhor que a empresa privada. Isso é uma característica nossa, há uma “Estadolatria” muito interessante, que perpassa vários setores da sociedade, das camadas populares às mais ricas, e várias ideologias, tanto de direita quanto de esquerda.
Há diferenças significativas entre os modelos de Estado propostos pelos candidatos?
MARIA CELINA: O discurso de defesa do Estado feito por Dilma é mais forte que o de Serra. Embora também tenha apreço pelo Estado e seja um social-democrata, Serra deve bater na tecla da articulação entre Estado, sociedade e mercado. Dilma bate na tecla do Estado mais forte, do Estado que “induz” sociedade e mercado. Isso no nível do discurso.
Na prática, há limites estruturais para uma política mais estatizante. Tanto há limites que o governo Lula não adotou uma política desse tipo. Teve oito anos para rever as privatizações, por exemplo, e não fez isso. O discurso estatizante mais à esquerda tem esbarrado em soluções pragmáticas.
E quais seriam as características da visão de Estado defendida por Serra?
MARIA CELINA: Seria um Estado mais regulador, que faria a articulação com sociedade e mercado principalmente através de agências reguladoras. Essas agências também apontam uma diferença entre os dois projetos. Elas foram criadas no governo Fernando Henrique, o PT foi contra, e o governo Lula devolveu aos ministérios boa parte do poder acumulado por elas. O Estado, na visão de Serra, teria mais agências reguladoras e menos inchaço nos ministérios.
Lula e Fernando Henrique colocaram em prática concepções distintas do papel do Estado?
MARIA CELINA: Quem mexeu efetivamente na arrumação econômica do Estado foi Fernando Henrique. Fez uma reforma do Estado, mexeu nas organizações econômicas estatais e pagou um preço por isso. Paga até hoje. As privatizações provocaram uma certa mágoa na sociedade brasileira em relação ao governo Fernando Henrique, que não conseguiu convencer a sociedade sobre a privatização de estatais como Vale e CSN, por exemplo, vistas como emblemas da soberania nacional. Lula não precisou correr um risco político tão grande. Não é que ele não quis fazer grandes mudanças econômicas. Ele não precisou.
A questão da intervenção do Estado na sociedade através de programas de redistribuição de renda, como o Bolsa Família, também divide os candidatos?
MARIA CELINA: A questão das políticas sociais no Brasil começou a ser discutida há muito tempo. No governo Sarney já existiam programas de distribuição de tíquete para leite e cestas básicas, por exemplo. O Estado brasileiro começou a praticar políticas sociais há 25 anos e isso foi se aprimorando até chegarmos ao Bolsa Escola, de Fernando Henrique, e ao Bolsa Família, de Lula, que não distribuem mais tíquetes de alimentos, e sim recursos para que as pessoas façam suas próprias escolhas, o que é uma política muito mais moderna. Isso está sendo debatido há muito tempo e não se poder dizer que há tantas diferenças assim entre os candidatos ou que os programas podem ser descontinuados em caso de mudança de governo. Eles podem até mudar de nome, mas vão continuar.
Como a candidatura de Marina Silva contribui para o debate sobre o papel do Estado nestas eleições?
MARIA CELINA: Marina é oxigênio novo na campanha, porque ela não discute o Estado, não traz para o debate esses temas tradicionais da política. A plataforma de Marina propõe que se pense o futuro do país não só em termos de ideologia, de haver mais Estado ou menos Estado, mas sim a partir de outras questões como meio ambiente, consumo, desenvolvimento sustentável. E essa plataforma terá que ser absorvida pelos outros candidatos e pela agenda do próximo presidente, independentemente do desempenho dela nas eleições.
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