A última grande contribuição do velho PCB ao nosso país parece ter consistido, sem dúvida, na sua prática política – e, em medida bem menor, na teoria habitualmente associada ao partido – em prol da reconquista do regime democrático e da democratização social em momentos decisivos da nossa história recente. Se tivéssemos de escolher um ponto de partida para o complicado processo de mudança “genética” pelo qual passaria o PCB, indicaríamos a conhecida Declaração de Março de 1958, redigida na trilha dos acontecimentos que, em 1956, marcaram a grave crise do modelo soviético de partido-Estado, com a denúncia das infâmias do stalinismo no “relatório secreto” de Kruschev e, paradoxalmente, com a tentativa, por parte do novo grupo dirigente soviético, de manter autoritariamente a coesão do então campo socialista, com a invasão da Hungria.
O termo “mudança genética” aplica-se rigorosamente ao caso do PCB. Com a Declaração de Março, iniciou-se de fato uma revisão do que então se chamava “revolução brasileira”, bem como uma percepção potencialmente mais articulada do socialismo e da estrutura do mundo, ainda que fortemente vinculada à existência do “socialismo real”. No tocante à “revolução brasileira”, imaginou-se, ainda que em meio a um léxico muitas vezes passadista, a possibilidade de uma série de governos nacionalistas – num movimento de mudanças dilatado no tempo –, que empreenderiam alterações substantivas na sociedade brasileira, a começar pelo campo, com a eliminação do exclusivo agrário e a incorporação de milhões de pessoas submetidas ao mandonismo e ao clientelismo nas regiões economicamente atrasadas. A emergência de uma extensa camada de pequenos e médios proprietários, bem como de um vigoroso sindicalismo de trabalhadores rurais nas empresas agrícolas de feição capitalista sustentaria uma dinâmica inclusiva e democratizante, dando vigor ao desenvolvimento econômico que já era a marca do país pelo menos desde 1930; um desenvolvimento que o documento de 1958 reconhecia com todas as letras, rompendo com a leitura estagnacionista e catastrofista imperante em épocas anteriores.
Mais importante ainda, sem deixar de lado o intenso conflito social que suporia a aplicação mesmo que parcial do seu programa, a Declaração de Março insiste, pela primeira vez, na possibilidade de uma “via pacífica”, renunciando – ou no mínimo começando a renunciar – aos cenários trágicos de guerra civil para a implantação do socialismo. Isso explicaria a relativa moderação dos comunistas do PCB na conflagração política generalizada com que se abrem os anos 1960, como também explicaria, sobretudo, a opção pela luta propriamente política contra o regime militar implantado em 1964 – e tudo isso à custa de um sem-número de defecções nas próprias fileiras e de brutal incompreensão por parte dos grupos incendiados pelo exemplo da revolução cubana e pela miragem da luta armada como “forma superior de luta”.
É neste início de mudança genética, em curso a partir destes acontecimentos cruciais para a redefinição do Brasil moderno, que se situa, como dissemos, a última e grande contribuição do velho PCB. Mas o lado mais ortodoxamente travado da cultura comunista iria obviamente cobrar o seu preço, impedindo uma autorreforma teórica à altura da prática reformista do velho partido, voltada, desde o primeiro momento do regime militar, para a construção de uma frente democrática com forças e políticos liberais e até conservadores (basta pensar no exemplo da Frente Ampla, com Juscelino, João Goulart e Carlos Lacerda), bem como para a difícil reconstrução da vida sindical e do associativismo popular nas instituições existentes sob o regime militar. Aquela autorreforma teórica, para ser coerente, só poderia ter um sentido: cancelar o paradigma da revolução, especialmente na sua modalidade mais estreita de luta armada, e estabecer o paradigma da democracia, elaborando-o cada vez mais como a via real das mudanças sociais, evidentemente necessárias num país de tantas e tão sólidas desigualdades de todo tipo.
Este segundo paradigma, de fato, mas não teoricamente, balizaria os mais importantes feitos da oposição ao regime militar. Superado o equívoco ultraesquerdista do voto nulo, que grassou na conjuntura de 1970 e 1972 estimulado pela aventura militarista, o renascimento democrático do país daria sinais vigorosos a partir das eleições de 1974, da movimentação concomitante da “sociedade civil” e das vigorosas manifestações sindicais que mobilizariam as áreas do novo desenvolvimento capitalista, em particular o ABC paulista, já distantes em espírito e em escopo de lutas trabalhistas de fins da década de sessenta, que pareciam se encaminhar, segundo alguns dos seus protagonistas, para um desfecho insurrecional. Um novo país emergia, a bússola apontava para a anistia “ampla, geral e irrestrita”, para a reconquista das eleições diretas de governadores e prefeitos de capital. Muito particularmente, aquela bússola apontava para um regime de amplas liberdades, prometido com a convocação da Constituinte e afinal consagrado com a aprovação da Carta de1988. A este movimento não esteve alheio o PCB – muito pelo contrário! –, mas, paradoxalmente, nesta mesma sucessão de eventos, o velho partido parecia entoar o seu canto de cisne, dilacerado por novos conflitos internos, incapaz de se autorreformar política e teoricamente e, por fim, desamparado pela perda das suas referências internacionais, ele que só timidamente se valera da oportunidade de novos contatos e pontos de referência (o eurocomunismo do PCI, o tímido reformismo de Dolores Ibarruri e Santiago Carrillo no PCE e a tentativa renovadora, mais limitada ainda, do PCF de Georges Marchais).
A transformação do PCB em PPS, acontecida em 1992, representou, com todos os seus limites, uma tentativa de recomeço em condições radicalmente distintas. Salvo engano, partia do diagnóstico da existência de um campo inteiramente aberto para a existência de uma esquerda democrática em nosso país. Uma esquerda que seria obviamente minoritária nos novos tempos que viram a ascensão impetuosa do PT, um partido com forte implantação social, mas escasso entendimento – naquele momento e por muitos anos ainda, até os nossos dias – de uma política de alianças e da necessidade de políticas construtivas mesmo a partir do campo oposicionista. Este déficit do “petismo” se revelaria em momentos chaves da história recente, como na hesitação em assinar a Carta de 1988, na recusa em participar do governo Itamar Franco numa hora de grave crise da República, na oposição sistemática ao plano Real, ainda no governo Itamar, e a toda e qualquer medida tomada durante os governos FHC, mesmo as que tinham um sentido racionalizador da economia, da máquina pública e até mesmo reordenamento do gasto social.
No ato do nascimento do partido, em 1992, a ideia de esquerda democrática, lamentavelmente, não esteve presente no nome do PPS, e em política nomes e símbolos de algum modo pesam, embora não definam por si sós os problemas de inserção social e peso relativo de um partido. (A título de comparação, os pós-comunistas do PCI empreenderam uma refundação semelhante à do PPS, ainda que com mais lastro político-cultural: e a acidentada trajetória do ex-PCI, num clima tão conturbado como o destes últimos 20 anos naquele país, teve como referências as sucessivas denominações de Partido da Esquerda Democrática, Democráticos de Esquerda e, por último, Partido Democrático. Como dizíamos, o nome não é tudo, mas o eixo democrático e reformista parece ter sempre estado presente nas vicissitudes dos pós-comunistas italianos, como a indicar a passagem definitiva do paradigma revolucionário para o democrático, a que acima fizemos alusão.)
A busca de uma identidade política para o PPS parece ser o desafio crucial: ela o foi nestas primeiras duas décadas da sua existência e se apresenta mais vigorosamente ainda nas ocasiões congressuais, quando o partido se pergunta sobre as razões da sua existência e da própria continuidade, ou não, da sua trajetória. Afinal, qual é o quadro de valores de um partido que, se não tem do que se envergonhar do seu passado recente na resistência democrática, pretende, apesar disso, introduzir fortes elementos de descontinuidade e de ruptura com a cultura do velho comunismo histórico? Em nome do quê, efetivamente, o PPS orienta os seus quadros dirigentes e requer algum tipo de disciplina – não autoritariamente imposta, como é óbvio – dos militantes e dos representantes nos diversos corpos legislativos e mesmo em governos, nos mais diferentes níveis? Bastaria dizer-se um “partido decente”, ainda que não possamos subestimar o papel da decência na esfera pública? Como o PPS se envolve no debate político-cultural, atraindo intelectuais e forças da cultura em favor de determinadas orientações de valor e repelindo ou criticando outras? Será o partido um agrupamento de princípios ocasionais, ou de vagos e frouxos nexos internos, que não o diferenciariam com nitidez do universo fragmentado dos demais partidos?
A busca de uma fisionomia não pode ser mero exercício intelectual, mesmo porque, considerando a trajetória do PCB, deste mal o velho partido não padecia: certa ou erradamente, com seu heroísmo e suas limitações, a marca do marxismo (ou, mais apropriadamente, do marxismo-leninismo) constituía uma identidade forte, que muitas vezes sobrevivia a períodos de prolongada clandestinidade e até a riscos de aniquilamento físico, como, para dar um exemplo não muito distante, ocorreu em meados dos anos 1970. E, como este tipo de problema – a busca de uma identidade – não se coloca de modo abstrato, mas sempre numa dada situação real, conviria observar que nossas dúvidas e nossos dilemas acontecem numa condição minoritária, de continuada perda de prestígio e força política, ao mesmo tempo que o país conhece desde 2002, e já por três eleições presidenciais sucessivas, a presença hegemônica de um partido de esquerda, centro de um bloco de poder que conduz o capitalismo brasileiro em meio a inéditas contradições não só internas, como também relativas ao tipo de inserção do país na economia globalizada, ela mesma em crise após a euforia dos mercados desregulados de final do século XX e da passagem para o novo século.
O PPS afastou-se do PT, a nova esquerda hegemônica, logo a seguir ao triunfo eleitoral de 2002, não apenas pela adesão econômica deste partido ao “triunfo do capitalismo”, com a consequente renúncia a um programa de reformas na esteira da estabilização, mas essencialmente por uma questão política: para um partido da esquerda democrática, como quer ser cada vez mais nitidamente o PPS, nisso enraizando sua fisionomia, seu modo de ser e seu estatuto de valores, a Carta de 1988 e, por conseguinte, o Estado Democrático de Direito por ela consagrado constituem os eixos fundamentais da sua operação prática e da sua presença na cultura política mais geral. De um ponto de vista puramente interno, os pós-comunistas do PPS – da esquerda democrática – partem, assim, para cumprir o desafio não inteiramente realizado da autorreforma e da transformação de paradigma que reivindicamos. Querem se apresentar com um novo rosto diante dos demais partidos e da sociedade: o PPS é – definitiva e decisivamente – o partido da Carta de 1988, e convida todos os demais atores e sujeitos da República a se reunirem, sem ambiguidade de qualquer natureza, em torno dos princípios e valores nela definidos: só assim os adversários políticos se legitimam mutuamente e, da livre dialética democrática, podem se desimpedir os caminhos da organização autônoma da sociedade, da participação de todos os setores, especialmente os subalternos, na coisa pública e da mudança social para níveis mais altos de civilização.
Por este critério irrenunciável, julgamos todos os fatos e processos ocorridos na vida brasileira no período de reformas liberais iniciado com os governos de Fernando Henrique (o que nunca caracterizou, diga-se de passagem, a adoção de um programa neoliberal “orgânico”, ao contrário do que a maioria dos seus críticos supôs na época), a que se seguiram os dois mandatos presidenciais do governo Lula e, agora, da presidente Dilma Rousseff. No conjunto, sob o regime de amplas liberdades instaurado pela Carta de 1988, o país tem conhecido um grande ciclo social-democrata, ainda que com imperfeições e déficits em áreas importantes. Referimo-nos de passagem a alguns destes déficits. Na economia, importantes constrangimentos de uma “macroeconomia da estagnação” ainda não foram superados, mesmo considerando o período 2003-2008, em que a economia global parecia funcionar em ritmo ditado pela emergência de Índia e China como consumidores de matérias-primas minerais e agrícolas produzidas em países como o Brasil. Este tipo de macroeconomia, em que vigora o “tripé perverso” de altíssimas taxas de juro, câmbio fortemente apreciado e pesada tributação, começa a pôr em risco a modernização e expansão do parque industrial brasileiro, haja vista os debates recentes sobre a desindustrialização, que não devem ser de modo algum subestimados no novo quadro da economia-mundo. A rede de proteção social, iniciada ainda no governo Itamar Franco (basta lembrar a aprovação da Lei Orgânica de Assistência Social) conheceria importantes ampliações nos governos seguintes de FHC e Lula, especialmente neste último, quando, ao mesmo tempo, exacerbaram-se os traços de uso instrumental deste tipo de política por parte do governo, do partido hegemônico no poder e, especialmente, da figura do seu líder máximo.
Mas é propriamente a política que explica a posição do PPS no campo oposicionista. Um “partido da Constituição”, como deve ser um agrupamento orientado pelos valores da esquerda democrática, compromete-se a zelar permanentemente pela correta demarcação entre Estado e partido, criticando duramente, como uma questão vital, os processos de ocupação da máquina de Estado e assenhoramento de instrumentos valiosos, como a indústria dos fundos de pensão, por parte dos novos “donos do poder”. Compromete-se, ainda, a combater duramente as tentativas de degradação institucional, sublinhando o caráter inédito entre nós de estratégias de cooptação e desmoralização de instituições-chave, como o Congresso Nacional, o que levou à trágica atual situação em que praticamente toda uma camada dirigente do partido hegemônico de esquerda está sub judice, acusada de “formação de quadrilha” e desvio de fundos públicos e privados para a aquisição de aliados no Parlamento. Compromete-se, por fim, com a manutenção do sistema de freios e contrapesos, corporificado em instituições republicanas, como o Ministério Público, e em outros órgãos de controle e fiscalização, para não falar dos recursos próprios da sociedade civil: suas entidades autônomas, que não podem ser estatizadas nem fugir à vocação plural, bem como uma imprensa independente, num ambiente de livre competição de ideias, valores e interesses.
Tudo isso deveria levar o PPS, neste congresso levado a cabo numa difícil conjuntura da sua vida partidária interna, a afirmar pioneiramente na esquerda brasileira, como ponto fundamental, a ideia de que a democracia política é a forma do Estado moderno (Giuseppe Vacca). Neste mesmo sentido, o cientista político italiano sugere uma atitude decisiva para os partidos pós-comunistas, que deveria se generalizar para todos os partidos do espectro constitucional a partir do nosso exemplo inalterável. Nas palavras daquele autor, “os programas e a ação dos partidos democráticos não podem exorbitar os limites da função de governo. Podem, certamente, alcançar a esfera do Estado e também se propor mudar o ordenamento constitucional, mas não sua forma democrática”. Com isso superaríamos, ao menos no plano teórico, a velha ideia do partido classista em cujo horizonte está a ideia de “se tornar Estado” ou de elaborar formas mais ou menos totais da sua ocupação e instrumentalização, bem como da classe operária, ou qualquer outra classe ou grupo particular, como classe “geral” ou “universal”. Estaríamos abertos, assim, para a incorporação de novos temas e sujeitos, inclusive os nascidos fora da tradição comunista, como, por exemplo, a crescentemente necessária reconversão ecológica da economia e da sociedade ou as imensas modificações suscitadas pelo protagonismo das mulheres, num movimento de amplo alcance que, no entanto, não nos levaria nunca a perder a noção da nossa parcialidade. De resto, uma parcialidade própria de todos os atores que aceitam os limites e os condicionamentos do Estado democrático de direito, corporificado na Carta de 1988, o que seria o sinal de que se pode ir seguramente além do status quo econômico e social, sem os riscos de messianismos ou involuções autoritárias, inclusive “de esquerda”.
Luiz Sérgio, ensaísta, um dos organizadores da Obra de Antonio Gramsci no Brasil. Editor do site Gramsci e o Brasil
*Texto publicado no Fórum de Debates do Portal do PPS
Um comentário:
pois é luiz sérgio,mas para propor democracia pra sociedade é preciso ser democrático internamente nao é?
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