domingo, 2 de dezembro de 2012

Incertezas que jorram do mar - José de Souza Martins

O petróleo do pré-sal modifica a tradição de nossos ciclos econômicos: antes mesmo de se tornar dinheiro, já está sendo prometido e repartido

Um novo ciclo econômico da história brasileira parece prestes a jorrar das profundezas do mar. O ouro negro do petróleo do pré-sal modifica a tradição dos nossos chamados ciclos econômicos: antes de se tornar dinheiro, já está sendo prometido e repartido. É verdade que, em face da perspectiva dos milionários royalties adicionais do nosso petróleo, convém ter regras para distribuição da nova riqueza entre as províncias e para sua aplicação. As disputas em torno dessas rendas já sugerem que, politicamente falando, elas fortalecerão o poder regional e, por extensão, o caráter oligárquico e populista da política brasileira. A falta de um norte seguro, fundado em prioridades nacionais e sociais, e a pulverização dos recursos já sugerem que o povo será personagem residual da partilha. Não seria diferente do legado de outros ciclos econômicos.

Estou entre os que resistem à utilidade conceitual de ciclos como recurso historiográfico para designar uma atividade econômica predominante. Em todo caso, o que interessa é compreender o que sobrou e para quem sobrou de cada ciclo da história prévia para refletir sobre o que sobrará do ciclo que se inicia.

Começa que o ciclo do pau-brasil nos deixou o Brasil, mas não nos deixou mais nada. A atividade econômica de extração da madeira vermelha para produção de tintura para tecidos nada nos legou. O que importa nos ciclos econômicos é entender o que criaram na economia cuja geografia definem. O ciclo do pau-brasil criou riqueza alhures, como diziam os antigos, mas não aqui. Os índios foram usados pelos franceses para derrubar, carregar e embarcar a madeira em troca de miçangas. E do nome. Os índios, antes de serem índios, receberam a designação de brasis, raiz do que viriam a ser os brasileiros. O ciclo do pau-brasil não gerou uma economia nem gerou um país. Deixou para trás o começo da devastação predatória. Nem mesmo ficou a árvore em quantidade suficiente para que os brasileiros de hoje pudessem conhecer a madeira que dá nome à pátria. Fui conhecer o pau-brasil por acaso, quase adulto, quando, nas proximidades do Instituto Caetano de Campos, em São Paulo, vi uma franzina arvorezinha, ao lado da qual pequena placa esclarecia que era pau-brasil. Só muitos anos mais tarde comprei um remo de um índio tapirapé, do Mato Grosso, feito de pau-brasil: a madeira vermelha, da cor de brasa, recoberta de laboriosos traços de urucum, uma joia, uma obra de arte.

Foi o açúcar que, entre nós, demarcou uma primeira atividade econômica estável e enraizada, reprodutiva, isto é, diversa da predação e do saque que foram próprios do ciclo do pau-brasil. Houve, sem dúvida, um saldo social e político da economia do açúcar. O primeiro deles, a escravidão e a sociedade patriarcal, os costumes senhoriais, as desigualdades sociais profundas, a divisão espacial do trabalho que criou a pecuária do sertão como economia complementar da do açúcar. O açúcar criou o primeiro Brasil suntuoso, o das igrejas luxuosas. O ouro que rebrilha nas paredes barrocas da Igreja de São Francisco, na Bahia, dá bem a medida do muito que se ganhava e do muito que se gastava. No Terreiro de Jesus, escravos negros arrastavam as dores de seu banzo. O açúcar criou as condições materiais de um modo de viver e de pensar. Um primeiro jeito de sermos brasileiros, divididos entre a gente de prol e a gente ínfima, senhores e escravos. As amarguras e não as doçuras do açúcar desenharam a cara do brasileiro e do Brasil.

Resisto a falar em ciclo porque o açúcar não imperou solitário. Como aconteceu nos ciclos seguintes, outras atividades econômicas existiram ao mesmo tempo que a do açúcar: além do gado, a farinha de mandioca, o milho e a farinha de milho, o feijão, a produção doméstica e artesanal de tecidos e de cerâmica. Enfim, um conjunto razoavelmente articulado de atividades econômicas.

O ciclo do ouro, que se define nos fins do século 17, nem centralizou a economia já existente nem se sobrepôs a ela. Durou um século e seu apogeu não durou mais que 20 anos, no século 18. Como o açúcar, o ouro, apoiado na escravidão, não distribuiu riqueza, concentrando-a em poucas mãos e, sobretudo, perdendo-a para a metrópole, que a perdeu para a Inglaterra. Mas criou uma elite de intelectuais, animou as artes, engendrou poesia, encheu os territórios das Minas Gerais, de Mato Grosso e de Goiás de igrejas suntuosas, possibilitou o barroco brasileiro, animou um sonho de liberdade.

O ciclo do café foi o que nos deixou o maior legado, trazendo prosperidade nunca vista ao Sudeste. O café modernizou o Brasil e só o logrou porque se livrou do trabalho escravo, disseminou o trabalho livre, promoveu a imigração, diversificou as mentalidades e, pela primeira vez, gerou no País um empresariado moderno e criativo. Foi o café que engendrou a economia industrial e deu origem ao ciclo da indústria. O café criou uma economia voltada para dentro, deu vida ao mercado interno, desdobrou a economia, libertou o cafeicultor não só dos bloqueios da escravidão, mas também dos bloqueios da propriedade da terra, diversificando-o numa classe de capitalistas comprometidos com a dinâmica do próprio capital. Em decorrência, alargou horizontes, dinamizou a economia.

No mesmo período em que o dinâmico ciclo do café revolucionava a economia brasileira, o ciclo da borracha não tinha elasticidade. Criou uma precária economia de refúgio na selva, baseada nas relações servis da peonagem, a escravidão por dívida, sob a vigilância do pistoleiro. Quando muito, nos legou o contraste de uma cidade moderna e num certo sentido suntuosa, Belém, com seu Teatro da Paz, que recebia companhias europeias. Uma cidade dominada pelo art noveau, de que ainda há numerosos vestígios. Um estabelecimento comercial, Paris n"América, diz tudo sobre o esplendor sintético e redutivo da borracha, com evidências em Manaus.

Mas o que foi essa economia predatória está também nos resquícios do Império do Acre, cujo imperador caricato, Galvez, nos legou uma muralha de garrafas vazias de uísque e champanhe no meio da selva, no que foi a capital de choupanas de seu reino. Império inaugurado com um banquete simbólico: para o povo, banana e cachaça; para a corte uma ceia trazida de Paris. Do menu consta o champanhe servido: Veuve Clicquot.

O ciclo da indústria trouxe-nos a racionalidade industrial, disseminou escolas superiores, criou universidades, modernizou as relações de trabalho, deu vida a novas classes sociais, animou a superação de servos da gleba por assalariados com contratos e direitos. Abriu-nos o horizonte da cidadania e da democracia.

Este que poderá ser o ciclo do petróleo, no que se refere a legado, pode ser antecipado em parte pelo que o petróleo fez em outras sociedades. Na Venezuela, o óleo ampliou as desigualdades, não impediu que Caracas se transformasse numa cidade rica cercada de imensas favelas. No Oriente Médio, criou luxos impensáveis e misérias idem. É esperar para ver o que nos virá do fundo do mar.

José de Souza Martins é sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros livros, de Uma arqueologia da memória social (Ateliê Editorial)

Fonte: Aliás / O Estado de S. Paulo

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