domingo, 2 de dezembro de 2012

A sedução do poder

De onde vinha a influência de Rosemary de Noronha, a mulher que se apresentava como "namorada" de Lula – e, com isso, nomeada afilhados, interferia em órgãos do governo e recebia recompensas

Diego Escosteguy e Alberto Bombig

Uma triste passagem de bastão marcou a política brasileira na semana passada: saiu de cena um escândalo político; entrou outro. De um lado, o Supremo Tribunal Federal fez história ao definir as penas dos condenados do mensalão. Treze dos réus, incluindo o ex-ministro-chefe da Casa Civil José Dirceu, vão para a cadeia em tempo integral - uma rara ocasião na história brasileira em que poderosos pagarão por seus crimes. De outro lado, uma nova personagem irrompeu na cena política nacional: Rosemary Nó-voa de Noronha, ou Rose. Falando em nome de um padrinho político poderoso, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Rose trabalhou pela nomeação de vários afilhados no governo federal. Ao se dirigir a diretores de empresas estatais ou órgãos do governo, Rose frequentemente se apresentava como "namorada" do ex-presidente. Um dos afilhados de Rose, Paulo Vieira, foi preso pela Polícia Federal (PF) na Operação Porto Seguro, acusado de chefiar uma quadrilha que cobrava propinas de empresários, em troca de pareceres jurídicos favoráveis em Brasília - fosse no governo, nas agências reguladoras ou no Tribunal de Contas da União. Rubens Vieira, diretor da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), irmão de Paulo e outro dos afilhados de Rose, também foi preso. Tão logo o caso veio a público, na sexta-feira dia 23 de novembro, Rose foi exonerada do cargo que exercia, como chefe do gabinete da Presidência em São Paulo.

Como foi possível que Rose, uma simples secretária do PT, acumulasse tanto poder e prestígio, a ponto de influenciar nos rumos do governo federal - e causar tamanho salseiro? "A investigação demonstra que o poder de Rose advinha da relação dela com Lula. Não há elementos, entretanto, de que o ex-presidente soubesse disso ou tivesse se beneficiado diretamente do esquema", afirma uma das principais autoridades que cuidaram do caso. "Lula cometeu o erro de deixar que essa secretária se valesse da íntima relação de ambos", afirma um amigo do casal Lula e Dona Marisa. "Deveria ter cortado esse caso há muito tempo." Os autos do processo, de que Época obteve uma cópia integral, e entrevistas com os principais envolvidos revelam que:

1) Lula, ainda presidente da República, prestou - mesmo que não soubesse disso -três favores à quadrilha. Por influência de Rose, indicou os irmãos Paulo Vieira e Rubens Vieira para a direção, respectivamente, da ANA e da Anac. Lula, chamado em e-mails de "chefão" ou "PR" por Rose, também deu um emprego no governo para a filha dela, Mirelle;

2) A quadrilha espalhou-se pelo coração do poder - e passou a fazer negócios. Os irmãos Vieira, aliados a altos advogados do PT que ocupavam cargos no governo, passaram a vender facilidades a empresários que dependiam de canetadas de Brasília;

3) Rose, gabando-se de sua relação com Lula, tinha influência no Banco do Brasil. Trabalhou pela escolha do atual presidente do BB, Aldemir Bendine, indicou diretores (um deles a pedido de Delúbio Soares, o ex-tesoureiro do PT condenado no caso do mensalão), intermediou encontros de empresários com dirigentes do BB e obteve um contrato para a empresa de construção de seu marido;

4) Despesas do procurador federal Mauro Hauschild, do PT, ex-chefe de gabinete do ministro do Supremo Tribunal Federal Dias Toffoli e, depois, presidente do INSS, foram pagas pela quadrilha. É uma situação similar à do recém-demitido número dois da Advocacia-Geral da União (AGU), José Weber Holanda - que, segundo a PF, recebeu propina;

5) A PF, mesmo diante das evidências de que Rose era uma das líderes da quadrilha, optou por não investigá-la. Não pediu o monitoramento das comunicações de Rose e não quis detonar a Operação Porto Seguro no começo de setembro, quando a Justiça autorizara as batidas e prisões. Esperou até o fim das eleições municipais.

De acordo com o relato feito a Época por um alto executivo que trabalhou na Companhia das Docas do Porto de Santos (Codesp), Rose evocava sua relação com Lula para fazer indicações e interferir, segundo seus interesses, nos negócios da empresa. Nessas ocasiões, diz o executivo, Rose se apresentava como "namorada do Lula". "Ela jogava com essa informação, jogava com a fama", diz ele.

Uma história contada por ele ilustra o estilo de atuação de Rose. Em 2005, uma funcionária da Guarda Portuária passou a dizer na Codesp que fora indicada para o cargo porque era amiga da "namorada do Lula". O caso chegou ao conhecimento da direção do Porto de Santos. Um diretor repreendeu a funcionária e chegou a abrir uma sindicância para apurar o fato - e ela foi demitida. O executivo conta que, contrariada, Rose ligou para executivos para cobrar explicações e reafirmou o que a amiga havia dito: "Eu sou a namorada do Lula". Os executivos acharam que ela blefava. "No começo, a gente não sabia que ela era tão forte", diz um deles. No Porto, ela foi responsável pelas indicações de Paulo Vieira e do petista Danilo de Camargo, ligado ao grupo do ex-ministro José Dirceu no PT. Os dois passaram a atuar em parceria com Valdemar Costa Neto, o deputado pelo PR condenado à prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro no caso do mensalão, responsável por indicar o presidente da Codesp.

Um dos interesses desse grupo era perdoar uma parcela da dívida da empresa transportadora Libra com a Codesp. O valor da dívida era de R$ 120 milhões. O acordo foi fechado no Ministério dos Transportes, então controlado pelo grupo ligado a Costa Neto, e contou com o aval de Camargo, presidente do Conselho de Administração. O PT de Santos, liderado pela ex-prefeita Telma de Souza, ficou revoltado com os termos do acordo e resolveu cobrar explicações de Camargo. Novamente Rose entrou em ação para defender os interesses da Libra, do PR de Costa Neto e de Paulo Vieira. Na ocasião, diz o alto executivo, ela evocou novamente o nome de Lula. Nos telefonemas que dava aos petistas contrários ao perdão da dívida, afirma ele, Rosemary sempre mencionava o então presidente.

Rose tem 57 anos, começou jovem na militância política e sua turma, dentro do PT, é uma turma das antigas. Seus principais interlocutores no partido, além de Lula, são Paulo Frateschi, secretário de organização do PT, e os já mencionados Camargo e Dirceu. Rose trabalhou como assessora de Dirceu nos anos 1990. Acompanhou de perto sua ascensão à presidência do PT. No total, foram 12 anos de parceria. Foi no período em que trabalhava com Dirceu que Rose conheceu Lula. Em fevereiro de 2003, com Lula no Planalto, Rose se tornou assessora especial do gabinete regional da Presidência em São Paulo. Em 2005, tornou-se chefe da unidade. Seu poder no partido foi crescendo. Ela fazia triagem informal dos currículos de candidatos a cargos do segundo escalão. Nessa época, começou a exercer influência também no Banco do Brasil. Rose trabalhou, de acordo com políticos e executivos do setor bancário, pela indicação de Aldemir Bendine para a presidência do BB.

A proximidade com Bendine permitiu que Rose, em 2009, conseguisse um emprego para José Cláudio Noronha, seu ex-marido. Noronha ganhou a vaga de suplente no Conselho de Administração da Aliança Brasil Seguros, atual Brasilprev. De acordo com as investigações da PF, Paulo Vieira forjou um diploma de curso superior para que Noronha cumprisse uma exigência da Brasilprev e assumisse a vaga. Em agosto do ano passado, o mandato de Noronha foi renovado.

Rose era também próxima de Delúbio Soares, o ex-tesoureiro do PT condenado a oito anos e 11 meses de prisão no caso do mensalão. Os dois costumavam tomar café no Conjunto Nacional, centro comercial próximo ao prédio do gabinete da Presidência. A pedido de Delúbio, segundo executivos do BB, ela usou sua proximidade com Bendine para conseguir a nomeação de Édson Bíindchen para a superintendência do BB em Goiás, em setembro passado.

Rose circulava tão bem no BB que pairava acima das disputas fratricidas entre seus diretores. Era próxima também de Ricardo Flores, ex-vice-presidente de crédito e ex-presidente da Previ, o bilionário fundo de pensão dos funcionários do banco. Flores e Bendine travaram embates corporativos constantes e são considerados inimigos. Isso nunca impediu Rose de se sentir segura para pedir favores a ambos. Em 25 de março de 2009, Rose pediu a Flores que examinasse um pedido de empréstimo de cerca de R$ 48 milhões da empresa Formitex. Era um desejo de Paulo Vieira - na época, ele ainda não era diretor da ANA. "Gostaria que encaminhasse esses dados técnicos ao Dr. Ricardo (Flores) e, se possível, conseguisse uma agenda para o Dr. César Floriano", diz Paulo em e-mail para Rose que consta do inquérito policial.

Floriano era um dos empresários que bancavam a quadrilha. Em 17 de agosto de 2009, Rose encaminha outro e-mail a Paulo em que pergunta se "aquele assunto do Flores foi resolvido". Poucos minutos depois, Paulo responde: "As coisas com o Flores estão caminhando bem, ele tem sido muito legal e parece que vamos avançar bastante".

De acordo com a investigação da PF, além do emprego para o ex-marido, Rose usou seus contatos no BB para ajudar o atual, João Vasconcelos. Documentos apreendidos pela polícia na casa de Rose, em São Paulo, mostram que a construtora de Vasconcelos, a New Talent, obteve um contrato de R$ 1,1 milhão - sem licitação - com a Cobra Tecnologia, subsidiária do BB. Tratava-se de uma obra de adequação e reforma do novo centro de impressão da empresa em São Paulo. Mais uma vez, Rose recorreu a Paulo Vieira para forjar documentos. A Associação Educacional e Cultural Nossa Senhora Aparecida, mantenedora da faculdade de propriedade de Vieira em Cruzeiro, São Paulo, emitiu um falso atestado de capacidade técnica para a New Talent conseguir o contrato com a Cobra. Em maio de 2010, funcionários da Cobra encaminharam a Vasconcelos o contrato com a New Talent.

Rose queria mais. Noutras mensagens interceptadas pela polícia, em maio deste ano, ela se mostrou preocupada com a situação financeira da New Talent. Queixou-se de que Paulo não conseguia contratos para a empresa. Paulo responde que fará "das tripas coração" para conseguir. Diz que só poderá encaminhar o pedido "após os contratos de concessão, que ainda não foram assinados, tudo isso deve rolar no segundo semestre". Os investigadores suspeitam que Rose e Paulo discutiram possíveis contratos da New Talent com a empresa que venceu a licitação para administrar o Aeroporto de Viracopos, em Campinas. Na seqüência, Rose diz que Campinas não interessa "por ser longe", e completa: "Gostaria mesmo é de São Paulo" - uma referência à concessão do aeroporto de Guarulhos.

As pretensões só pareciam alcançáveis porque, usando o nome de Lula, Rose conseguiu colocar afilhados em cargos importantes no Estado brasileiro. Em janeiro de 2009, Paulo Vieira e Rubens Vieira começaram a articulação para ser nomeados na ANA e na Anac. Rubens escreveu a Rose no dia 20: "O presidente (Lula) indica e o Senado aprova. Eu preencho todos os requisitos para o cargo". Rose respondeu no dia seguinte pela manhã. "Oi Rubens, vou tentar falar com o PR na próxima terça-feira na sua vinda a São Paulo. Me envie seu currículo atualizado e os artigos que o Paulo falou. Se você estiver aqui em SP, posso te colocar no evento de terça-feira à tarde. Pelo menos vê se cumprimenta só para ele lembrar de vc, aí eu ataco. Bjokas. Rosemary."

Duas semanas depois, Paulo cuidava de duas indicações simultâneas: a do irmão, para a Anac, e sua própria, para a ANA. Em e-mail enviado no dia 25 de março, Paulo disse a Rose que um pedido dela a JD (de acordo com os investigadores, sigla para José Dirceu), "tratando a questão como de interesse seu", ganharia mais força. Entre os dias 28 e 29 de abril, os senadores Gim Argello (PTB-DF), Renan Calheiros (PMDB-AL) e o deputado Sandro Mabel (PR-GO) enviaram cartas ao Palácio do Planalto para reforçar a indicação de Paulo para a ANA. Os destinatários eram os então ministros Dilma Rousseff (Casa Civil) e José Múcio Monteiro (Relações Institucionais). Em 3 de agosto, Paulo cobrou Rose sobre a conversa com "JD". No dia seguinte, Rose disse que se encontraria com "JD". No dia 17 de agosto, ela disse a Paulo que estava "no pé do meu chefe sobre o seu caso". O "chefe" é Lula. No dia 9 de dezembro de 2009, com a assinatura do então presidente Lula, a mensagem com a indicação de Paulo Vieira para a ANA seguiu para o Senado.

A batalha pela nomeação de Paulo Vieira passou a envolver, a partir daí, petistas lotados na AGU. Um deles era o gaúcho Mauro Hauschild - até outubro passado, presidente do INSS, demitido a pretexto de ter deixado o trabalho de lado para fazer campanha eleitoral no Rio Grande do Sul. Em 2009, Hauschild era chefe de gabinete do hoje ministro do STF Dias Toffoli, o advogado petista que antecedeu Luís Adams na chefia da AGU. Hauschild enviou um emissário da AGU ao Senado para defender, diante do senador José Agripino Maia, a candidatura de Paulo a diretor da ANA. Usou o nome de Toffoli na aproximação. Agripino, porém, disse que votaria contra a indicação. Ela foi rejeitada em plenário em 16 de dezembro de 2009. Após a derrota, o senador Magno Malta (PR-ES) disse no plenário que Paulo perdera "não porque não é boa gente, nem preparado". "Ele é preparado, só que houve uma campanha porque ele foi colocado pelo presidente da República", afirmou Malta. No dia 18 de dezembro, Rose enviou um e-mail a Paulo e pediu a ele que juntasse tudo que saíra na imprensa sobre ele e a enviasse. "Quero MOSTRAR (assim, em letras garrafais) para o PR", afirmou. Em abril de 2010, Malta apresentou uma "questão de ordem". O presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP) acatou seus argumentos. Uma nova votação foi realizada, e Paulo foi aprovado. Sua nomeação foi publicada no Diário Oficial da União no dia 6 de maio de 2010. No dia 25 de maio, a mulher de Mauro Hauschild, Regiane, servidora da ANA, foi nomeada assessora especial de Paulo Vieira.

Além de, segundo as investigações, fazer tráfico de influência, Rose reinava sobre o escritório paulistano da Presidência. Conhecida por falar alto e muito, abusava de frases como "eu mando aqui" ou "vocês vão me obedecer". Era tolerada por todos. Mas sua maneira de agir incomodava. No início do governo Dilma, ministros tiveram dificuldades em usar carros oficiais em São Paulo, porque Rose não autorizava. Recentemente, ela tentou barrar a entrada do assessor de um ministro no gabinete da Presidência. Recuou quando o ministro ameaçou telefonar para Dilma.

Como a primeira-dama, Marisa Letícia, Dilma não gostava muito de Rose. Rose sabia disso e, sempre que Dilma ia ao gabinete paulista, tentava agradá-la servindo pães de queijo - uma iguaria capaz de amolecer o coração de mineiros como Dilma. Não adiantou. Assim que as notícias sobre o alcance da Operação Porto Seguro foram se acumulando, Dilma mandou demitir Rose. Era o final da manhã do sábado, dia 24. O ex-presidente Lula soube da demissão na hora do almoço, depois de chegar de uma longa viagem à índia, por um telefonema do ministro Gilberto Carvalho.

O ex-ministro José Dirceu nega qualquer envolvimento com o esquema. "Gratuitamente. Irresponsavelmente, como das outras vezes. As investigações ainda estão em curso e meu nome já é escandalosamente noticiado como relacionado ao caso", disse em nota. "Envolvem meu nome no noticiário com o maior estardalhaço, mas encerrados a "temporada" e o sucesso midiático do escândalo, silenciam quanto ao fato de nada ter se provado contra mim - pelo contrário, as investigações concluíram que não tive o menor envolvimento com o caso em pauta." Questionado sobre o fato de Rosemary de Noronha ter se apresentado como "namorada de Lula", Luiz Bueno, advogado dela, disse: "Se alguém afirmou tal fato, agradecemos sua identificação para que possamos imediatamente processá-lo por difamação".

O ex-presidente do INSS Hauschild afirmou em nota que a nomeação de sua mulher para a assessoria de Paulo Vieira se deu por "razões técnicas" e que "se encontrou poucas vezes" com Rosemary Noronha. Hauschild afirma que R$ 5.800 recebidos de Paulo Vieira eram de um empréstimo. Disse ainda que, na semana passada, pediu sua desfiliação do PT.

Por meio de sua assessoria, o presidente do Banco do Brasil, Aldemir Bendine, afirmou que entre ele e Rose "existiram relações de cordialidade protocolar". Ele nega que Rose tenha influenciado sua nomeação para a presidência do banco. Disse, ainda, que a nomeação de José Cláudio Noronha para a Brasilprev ocorreu por decisão de diretoria colegiada e que o Banco do Brasil solicitou a substituição dele da suplência do Conselho de Administração da Brasilprev. O presidente da Brasilprev, Ricardo Flores, afirmou, por meio de sua assessoria, manter com Rose apenas "contato institucional" e "não manter relacionamento com Paulo Vieira". Flores disse também não ter participado de decisão nenhuma sobre a viabilidade de eventuais empréstimos. Procurado pela reportagem de Época, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva não respondeu às ligações.

Fonte: Revista Época

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