quinta-feira, 12 de junho de 2014

Adelson Vidal Alves: O nome da esquerda, segundo Safatle

• SAFATLE, Vladimir. A esquerda que não teme dizer seu nome. São Paulo: Três Estrelas, 2012.

- Gramsci e o Brasil

O presente livro é uma espécie de apelo para o resgate daquilo que o autor considera como elementos centrais que compõem a essência histórica da esquerda. Uma essência que deve ser recuperada como forma de resposta às crises atuais, que estariam demonstrando o fracasso do capitalismo liberal e trazendo a exigência de uma esquerda renovada e pronta para assumir a tarefa da construção de outra ordem social.

Para isso, invoca dois princípios básicos: o igualitarismo e a soberania popular. O primeiro, entendido como o reconhecimento de um Estado intervencionista na redistribuição de renda, um Estado que combata as desigualdades. A segunda, como sugere o termo, seria a autoridade suprema da vontade popular, esta que poderia até mesmo suspender, em nome da justiça, o Direito que qualifica os atuais Estados modernos.
Safatle se mostra simpático às rebeliões populares quando estas miram governos e “Estados ilegais”. A rebelião não só seria um recurso, mas um direito que estaria presente na tradição política. De Locke e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, até Constituições modernas que vigoram em alguns países. Seu apoio a enfrentamentos, até mesmo com violência, como veremos, não se resume a governos ilegítimos, mas também abrange os que pertencem à forma do Estado democrático de direito. A resistência popular justa estaria, assim, acima das leis.

No primeiro capítulo, o filósofo da USP defende que o igualitarismo exige, da esquerda, um comportamento “indiferente às diferenças”. Safatle percebe que o mundo atual apresenta novas formas de conflitos, distribuídos nas categorias de gênero, raça, cultura e nacionalidade. Tais diferenças deveriam ser tratadas com desinteresse pela esquerda. Esta deveria preocupar-se com o internacionalismo, que comporia seu DNA inicial. Os debates identitários precisariam ser ignorados em nome da recuperação da universalidade como eixo da construção das políticas de esquerda.

O acerto do autor se dá na percepção de que o multiculturalismo chega para fragmentar, tirar do horizonte qualquer perspectiva de totalidade. Ao trazer a cultura, a política e a sociedade para campos cada vez mais fatiados da vida coletiva, o universal acaba por desaparecer, abrindo espaço para uma sociedade de corporativismos e segregação. Não se pode deixar de perceber que, de certo modo, Safatle parece acreditar que as disputas modernas ainda se concentrem nas classes sociais. Mostra-se, assim, certo economicismo em seu pensamento — quem sabe o dogmatismo que contamina grande parte da intelectualidade de esquerda, ainda com vícios esquemáticos do século XIX e início do XX?

O autor não parece se preocupar com as profundas mudanças no interior do mundo do trabalho, na perda de relevância da luta de classes, na metamorfose da consciência do sujeito social moderno. Parece insistir na “indiferença com as diferenças” sem atentar para a necessidade de um diálogo atual com a realidade concreta.

Não soa de bom senso desconsiderar que as identidades nacionais permaneçam fontes de conflitos que movem a história. Que ainda há a necessidade de uma esquerda nacional. Mesmo diante da globalização, que internacionaliza não só os mercados, mas também a cultura e a política, há de se ficar atento à vitalidade não só de nação e sua ideia de pertencimento, mas também à forma político-institucional em que se expressa esta identidade, isto é, o Estado nacional.

O segundo capítulo, já por seu enunciado, é um convite à polêmica. Sobretudo, porque vivemos numa época em que o Estado democrático de direito representa forma superior de organização social, que progressivamente vem substituindo conflitos abertos e violentos por resoluções consensuais — consensos, aliás, sempre renováveis.

Porém, para Safatle, o Estado de direito poderia às vezes ser anulado, desde que a soberania popular e sua justiça entrem em confronto com o ordenamento jurídico vigente. A ocupação de prédios públicos, a invasão de propriedades ditas improdutivas, a violação da liberdade de ir vir através de piquetes, etc., seriam perfeitamente toleráveis, mesmo sendo ilegais, já que a causa pelo qual falam seria justa. Há, em Safatle, a dissociação entre a justiça e o Direito.

Obviamente, podemos discutir o quanto uma lei é justa, mas a grande questão, que o filósofo ignora, é o valor subjetivo que a palavra “justiça” pode trazer. Expropriar uma determinada extensão de terra particular, para fins de reforma agrária, para uns soa como justo, para outros, seria um roubo.

A forma moderna de resolver estes impasses tornou-se concreta nas instituições democráticas que surgiram nos séculos XIX e XX. As leis já não são o fruto de decisões de um só soberano, mas o resultado de um amplo e complexo conjunto de debates e lutas políticas que em vários órgãos institucionais ganham corpo na forma de ordenamento jurídico. Mas, para Safatle, todo este processo responde apenas pelo caráter parlamentar da democracia, que excluiria formas diretas de participação, e assim, cancelaria o verdadeiro espírito democrático.

A democracia parlamentar, cuja superação Safatle vai exigir, é parte importante no combate a corporativismos e assembleísmos, que, nos casos mais graves, levam a riscos de totalitarismo plebiscitário
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A tentação de trazer o povo diretamente para os debates faz com que o autor desconsidere o parlamento como mecanismo precioso para produção de sínteses democráticas no campo das divergências, que emergem na sociedade através dos atores coletivos. Faz, também, que desconsidere que, bem longe de ser um empobrecimento da democracia, a representatividade parlamentar é vitória civilizatória, para a qual a luta dos trabalhadores contribuiu muito. Apoiar a rebeldia contra as leis, suspendendo o Estado de direito, pertence a uma esquerda a que Safatle deu este nome, bem longe de ter nela o que se exige de uma esquerda genuinamente democrática.

O terceiro capítulo inicia questionando a relação de esquerda e passado. Mostra a forma superficial como foram tratadas as revoluções do século XX e corretamente propõe uma análise crítica que supere o simplismo de rotular como fracassos totais estes processos revolucionários (tidos por muitos como cruéis e sanguinários), assim como o de tratá-los como momentos gloriosos da humanidade. Há de se acolher acertos e repensar os erros, que não foram poucos, e entender que a revolução não vem com garantia para suas consequências. O futuro de uma revolução quase sempre é incalculável

Neste aspecto, nosso autor introduz a discussão sobre a atualidade da dicotomia “revolução/reformas”. Os revolucionários, segundo a crítica de Vladimir, mantêm o hábito de desqualificar como morto todo tempo histórico em que transformações profundas encontram-se em falta. Só consideram momentos úteis aqueles nos quais as estruturas sejam sacudidas pela força das mudanças.

Da mesma forma, prossegue Safatle, deve-se criticar o medo de revoluções, como se essas viessem sempre banhadas de sangue. Ainda que não sendo claro em suas observações, o filósofo parece apontar para um novo olhar sobre a concepção estratégica do reformismo. Mesmo sempre demonstrando apreço por revoluções do tipo clássico, Safatle sinaliza para a opinião de que reformas têm força para promover mudanças importantes, ainda que não mostre com clareza a espera de transformações substanciais pela via reformista. Positivamente convencido das vantagens reformistas, Safatle não parece apostar nelas como via para a construção de novas realidades. Tem-se a impressão de que o autor ainda aguarda revoluções como assalto ao poder.

Finalizando, o capítulo aborda o que tem se chamado de “teoria de governo”. Para o autor, a esquerda trabalhou bem, e de forma sofisticada, a teoria do poder, mas não a de governo. Isto é, não foi capaz de ir além da “vontade política” como instrumento para uma política de governo.

Safatle tem razão. Não se pode negar que parcela muito limitada das esquerdas conseguiu assumir vocação de governo, uma vocação que supere discursos e seja sustentada por um claro programa de governo. No entanto, mais uma vez, Safatle se furta de posições mais claras, pois parece oscilar entre visões modernas da esquerda e retornos estranhos ao vocabulário bolchevique.

Uma teoria de governo que se proponha coerente com a esquerda e as reais possibilidades conjunturais exige discutir o tema das alianças, o que sequer foi citado por Safatle. Neste aspecto, há motivos fora da obra que nos permitem pensar que sua concepção de alianças não tem nada de renovadora. Dá-se a impressão que Safatle faz perguntas atuais, mas suas respostas estão fora do nosso tempo.

A esquerda que não teme dizer seu nome traz questões importantes para o debate entre as esquerdas.

Mostra a necessidade de reformular a atividade deste campo político, para que esteja à altura dos desafios modernos. Não constrói nenhuma grande contribuição conceitual, é verdade, e suas propostas são rasas. Porém, a provocação que faz é de se levar a sério, principalmente porque o autor se mostra insatisfeito com o atual ordenamento institucional, que tem no Estado de direito sua maior expressão.

Ao proclamar a superação do Direito em nome da justiça e da soberania popular, mantendo firme a convicção da necessidade de uma nova democracia, direta, popular e para além do Estado de direito, Safatle distancia-se da esquerda democrática e constitucional, que a duras penas vem tentando se construir com a ambição de ingressar de vez em um tempo no qual não haja caminhos civilizatórios seguros senão pela democracia e seu Estado de direito. Vladimir Safatle, pelo jeito, continua com a visão instrumental da democracia.
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Adelson Vidal Alves é professor de História, pós-graduado em História Contemporânea.

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