- O Estado de S. Paulo
Fato que chamou a atenção nas eleições recém-realizadas foi a promiscuidade política na montagem das coligações partidárias, tanto estaduais quanto no âmbito federal - sem nenhuns parâmetros programáticos ou políticos -, chegando tais alianças a ser caracterizadas como uma verdadeira barafunda ou mesmo uma esbórnia partidária. Apesar das críticas e da indignação suscitadas, esse não é um fenômeno inusitado. Ao contrário, é antigo e reiterado insistentemente na História brasileira.
Ficou célebre no século 19 a frase de um importante político do Império, Holanda Cavalcanti, segundo a qual não havia nada mais parecido com um conservador do que um liberal no poder. Posteriormente, nos anos 1940, um intelectual e jurista notável, Hermes Lima, analisando as instituições e a participação popular no processo político no País, observou o caráter elitista, estatista, bem como a carência de identidade dos partidos.
Os partidos políticos no sentido estrito constituíram-se tardiamente no Brasil. Surgiram somente depois de 1945 e, mesmo assim, com muitas limitações. Antes dessa data eram mais aglomerados de interesses clientelistas e patrimonialistas do que partidos propriamente ditos.
Eles emanam do ou são instituídos, em grande parte, pelo Estado, e não pela sociedade civil - partidos da ordem, não exercem o papel de mediação entre o público e o privado, mas agem e se alimentam da apropriação e instrumentação da coisa pública. Fisiológicos, com projetos tênues, os partidos vivem de fatias, de migalhas ou à sombra do poder; usam o Estado como provedor de empregos, verbas, subsídios, favores, para atender a seus redutos eleitorais. Funcionam como meros intermediários entre o Executivo e os poderes locais.
Estão sempre próximos dos governos, sejam eles quais forem - é muito comum serem cooptados por eles ou aderirem a governos (central, estadual ou municipal) de que eram oposição ou até mesmo inimigos de véspera; são, acima de tudo, governistas e estatistas. Provincianos, sem identidade nacional, dependentes do poder central, privilegiam, no mais das vezes, os interesses e a dominação local ou estadual em detrimento das grandes questões do País, do que resulta que partidos formalmente nacionais assumam um caráter local.
Sem continuidade histórica, de vida curta, alguns ocasionais, é comum, a cada mudança de regime político, os partidos serem extintos e novos serem criados ou recriados com outras denominações ou siglas, muitas vezes com as mesmas personagens.
O atual pluripartidarismo - vasto, mas ao mesmo tempo difuso, com mais de quatro dezenas de siglas, em grande parte de aluguel, de transação - parece expressar e sintetizar a herança política de dois séculos de fisiologismo, patrimonialismo, clientelismo; siglas que são criadas, extintas, que se fundem em função de circunstâncias imediatas e, com algumas exceções, com diminuta representatividade sociopolítica e nenhum compromisso ideológico.
Fato emblemático são as razões políticas na formação das alianças e coligações eleitorais, nelas o que menos conta são os critérios programáticos e ideológicos. Essas são, na verdade, determinadas pelas conveniências políticas momentâneas ou locais, pelo aumento do tempo da propaganda eleitoral no rádio e na televisão, etc., montando composições que aparecem como esdrúxulas para a opinião pública.
Exemplar é a justificativa do presidente Lula para a aliança do PT com o PMDB, em 2006, ao afirmar que "o Brasil é um país de mistura de raças: negros, brancos, índios (...). A mistura é o que permite que sejamos esse povo alegre, bonito, sem discriminação, que sabe se misturar. Foi isso que permitiu a aliança do PT com o PMDB".
A contraposição foi a generalizada dissociação, ao longo da História, entre sociedade civil e política, entre os partidos políticos e as camadas e classes sociais. Propagou-se, com isso, uma forte indisposição da sociedade e o desencantamento do eleitorado em relação às organizações, às instituições e às representações políticas.
A perda da confiança nos políticos, o desprezo e a indiferença pela política levam à abstinência, ao afastamento da intervenção e participação, que só reforçam a exclusão e a dominação, criando barreiras à inserção do cidadão na vida pública ou à transformação do indivíduo em cidadão.
A política é vista pelo cidadão comum como algo distante, assunto que não lhe diz respeito; a noção da política e dos que a fazem como coisa diabólica, perversa, tomou conta do senso comum, invadiu o imaginário popular. O descrédito dos políticos e das instituições foi incentivado por grupos dominantes para facilitar seu poder de mando e dar continuidade à política como atividade de poucos.
Esse fenômeno histórico - ao limitar o exercício dos direitos de cidadania, amesquinhar a cultura cívica e fomentar o desencantamento com a política - tem como implicação a obstrução do desenvolvimento de valores, procedimentos e instituições democráticas.
Ficou manifesta a persistência dessa cultura e práxis política na composição do Congresso Nacional recém-eleito. Ilustrativa foi a eleição de bancadas suprapartidárias, numericamente consideráveis, de pastores de rebanhos e tiriricas, da bala e da bola, dos pequenos e dos grandes negócios, do tráfico de influências, de corporações e confrarias, etc. Nenhuma delas com o menor compromisso com a democracia e com os direitos de cidadania.
A inversão desse processo vai requerer, das forças políticas que desejam superá-lo, não só a luta por reformas na legislação eleitoral e partidária, mas uma ininterrupta e paciente intervenção política, lastreada por um projeto de hegemonia que possibilite a expansão e o aperfeiçoamento das normas e dos valores democráticos e dos direitos de cidadania. Caso contrário, o futuro será de reação e conservação ou, ainda, de regressão e desventura política.
*José Antonio Segatto é professor titular do departamento de Sociologia da FCL/Unesp
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