Vivemos sob o império da globalização, que não só afeta os mercados, mas cria objetos que revolucionam os comportamentos do dia a dia. Estamos quase sempre sintonizados com o mundo inteiro.
O celular, cada vez mais sofisticado, coloca o usuário nas redes sociais, num sistema global de informação, e traz para o cotidiano as informações acumuladas nas bibliotecas, nos museus, nas galerias. Mas se temos na mão imagens do mundo, cada vez mais nos vemos empurrados cada um para si mesmo. Comunicamo-nos com todos e com tudo, sem os riscos do confronto direto com as indeterminações do outro. Chegamos até ele graças às imagens que se configuram pela troca das mensagens. Comunicamo-nos fora dos sutis matizes de comportamento que circundam o falar com auréolas de múltiplos sentidos. A troca de informações mecaniza-se ou explode no insulto sem recuo.
Quantas vezes vemos uma família reunida, cada um grudado no seu celular? Jovens reúnem-se, mas, em vez de se soltarem na conversa, passam a trocar mensagens entre si e com amigos distantes.
Esse novo objeto tecnológico altera profundamente os comportamentos cotidianos, tende a abolir qualquer etiqueta, a pequena ética que nos regula. Outro dia, um amigo me fazia observar que nós, brasileiros, recebemos essa avalanche das novas tecnologias antes de ficarmos ricos, de sabermos usar essa riqueza. E assim nos fazem sentir poderosos sem que tenhamos de fato o poder de aplicá-las corretamente atuando na sociedade contemporânea. Basta comparar o uso do celular entre brasileiros, americanos e europeus para que se perceba como cada povo governa o mesmo objeto de modo diferente.
O uso do celular mostra-nos em miniatura como a arte de nos governar tanto depende de novas tecnologias globais como do nível de educação que nos leva a ela. Até que ponto nós, cidadãos da periferia do capitalismo, nos governamos adequadamente quando nossas ações passam a ser mediadas por objetos tecnológicos altamente sofisticados? Não é só no cinema que vemos pessoas sendo servidas por robôs.
Andar por uma cidade moderna como São Paulo já nos situa numa rede tecnologicamente avançada, assim como nos mostra a precariedade de seu mau funcionamento. Essa distância se torna crucial quando se trata do governo da coisa pública.
Centro de nossa formação em ciência e tecnologia, a universidade não é o exemplo mais flagrante? Na USP o abismo entre boas intenções e exercício competente das funções burocráticas cresce dia a dia. Ainda se propõe a ligar diretamente ensino, pesquisa e extensão. Mas nem sempre cada docente é capaz de exercer com proficiência todas essas funções em mudança contínua. Além da diferença de talentos, cada um se prepara para dominar a seu modo as novas técnicas. Uma coisa é lecionar filosofia para alguns alunos, como era no meu tempo, outra é enfrentar uma classe de 150 estudantes que têm acesso a um sofisticado mercado de livros e aos meandros da internet. Em vez daquelas vagas de ideias que de tempos em tempos varriam nossas inteligências, hoje é como se a mídia nos conduzisse a um zoológico onde convivem animais filosóficos das espécies mais diversas. Por certo, existem docentes de maior envergadura, que fugiram das jaulas do senso comum, retomam as velhas práticas de reler os textos com refinamento, em grupos pequenos, mas agora ligados a outros grupos noutros lugares do planeta.
Note-se que nem o filósofo midiático nem o professor de Filosofia foram preparados para exercer outras funções na universidade. A indissolubilidade institucional do ensino, da pesquisa e da extensão implica que cada funcionário exerça todas com a mesma proficiência. É a própria instituição que os deve balancear, respeitando as diferenças de talento e de comprometimento. Ora, se o exercício do funcionário está cada vez mais ligado a um aprendizado específico, o que dizer da gestão da coisa pública?
Muitos confundem o desempenho das funções públicas com o direito dos cidadãos. Igualdade dos direitos, porém, não cria igualdade na capacidade profissional. Em muitas universidades federais todos os docentes, depois de alguns anos, vão tornar-se professores titulares, como se pudessem ter o mesmo desempenho.
Os funcionários hierarquizam-se segundo critérios burocráticos, sem levar em conta como cada um deve preparar-se para exercer funções cada vez mais diferenciadas. E os alunos, justamente aqueles no início do processo de formação, acreditam que podem ser eleitos reitores ou escolhidos pró-reitores. E como lhes parece que todos esses problemas de gestão profissionalizada já estão resolvidos, a maioria dos universitários continua reclamando por mais verbas para a educação, sem pôr em pauta a prioridade de repensar novas formas de boa governança. Note-se que não se trata de reforçar o mérito, de instalar uma meritocracia, mas de adequar o exercício do poder às novas técnicas das quais ele depende.
Como o preenchimento dos cargos às vezes tem sido mais ideológico que político, não assistimos nas universidades à corrupção deslavada que irrompe noutras empresas estatais. Nos últimos tempos os governos ditos de esquerda nomearam políticos para cargos burocráticos. Obviamente, isso diminuiu a eficiência dessas burocracias, mas também instaura nova forma de corrupção. Não tanto aquela tradicional, do político corrupto que se apropria do dinheiro público, mas a institucional a serviço do próprio partido.
Nada explica afirmar que a corrupção política existe desde que Adão foi expulso do paraíso. Importa entender a forma como se exerce num país em desenvolvimento que dispõe de uma tecnologia de gestão que nem sempre ele sabe utilizar.
*José Arthur Giannotti é professor de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) e membro do CEBRAP
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