= Valor Econômico | Eu & Fim de Semana
O ano começou com a crise dos presídios e parecia que não tínhamos a menor ideia da situação da política prisional no país. O assunto ficou fora do noticiário por um bom tempo e se tornou, ao grande público, um não problema. O descalabro das penitenciárias e da política penal, no entanto, estava no radar de organizações não governamentais, nacionais e internacionais, e de pesquisadores, mas perdeu espaço para as dificuldades políticas e econômicas. Enquanto os governos, os políticos e a própria sociedade não se pautarem por políticas públicas consistentes, sempre seremos pegos de surpresa, em todos as áreas governamentais.
Mas o que são políticas públicas consistentes? Em primeiro lugar, são aquelas que se guiam não só pelo curto prazo, mas que miram fortemente as questões de longo prazo. Claro que as conjunturas mudam e é preciso ter respostas mais imediatas para determinados problemas. Não obstante, é muito mais fácil resolver uma dificuldade conjuntural se houver um desenho mais amplo, intertemporal, das políticas públicas.
Exemplos nesse sentido não faltam. O tema da Previdência só piora com o decorrer do tempo porque o país não estabeleceu arranjos de longo prazo, levando em conta as mudanças demográficas do país. Teremos um apagão de professores nos próximos dez anos. O Brasil está se preparando para isso? Depois de mais de uma década encarcerando a torto e a direito pessoas com tipos muitos diferentes de crime, vem a pergunta: o que faremos com o crescimento do crime organizado nas prisões? Ninguém está falando que o futuro poderá ser pior: quando saírem do inferno em que estiveram por anos, o que se pode esperar?
A consistência das políticas públicas, ademais, deriva do eterno monitoramento de suas demandas e resultados. Fazer políticas públicas é analisar constantemente os problemas que as circundam, procurando construir evidências, indicadores e instrumentos de gestão. Toda vez que ocorre uma crise em determinada área, pode-se constatar pela resposta dada se aquele setor governamental verdadeiramente acompanha sistematicamente suas ações. Novamente citando a crise prisional, as respostas dadas por autoridades federais revelam o desconhecimento das causas dos problemas e do impacto das políticas adotadas. Construir mais presídios federais não é inútil, mas não atuará profundamente sobre a prática tresloucada de encarceramento.
O governo saberia disso se acompanhasse a evolução mensal do aprisionamento. Porém, hoje não se tem um censo fidedigno da população prisional, dizendo quantos são os presos, o que os levou até lá, em que estágio do processo penal estão e, por incrível que pareça num país acostumado com programas policiais fascistas na TV, seria fundamental colher opiniões dos presos e dos funcionários sobre a condição dos que passam a vida nas penitenciárias. Sem mapas quantitativos e qualitativos de sua situação não é possível fazer políticas públicas consistentes. A improvisação, o anúncio de medidas de efeito marqueteiro e a produção de planos genéricos nascem da falta de estruturação prévia, de gestões que se realizam ao sabor das circunstâncias.
O acompanhamento de um problema e das políticas derivadas dele geram radiografias, porém não necessariamente produzem as respostas adequadas. A inovação nasce por razões que vão além - mas não aquém - das evidências científicas relativas a um problema. A implementação exige uma série de condições sociopolíticas, institucionais, de técnicas gerenciais e de competências do capital humano que se combinam. Assim, quando um determinado governo consegue produzir uma política bem-sucedida para determinada questão que se repete, em boa medida, em outros lugares, é preciso compreender as razões desse sucesso e as formas de sua disseminação.
Bons governos são aqueles que estão sempre com as antenas ligadas em busca de práticas bem-sucedidas de gestão e resolução de problemas de políticas públicas. Uma estrutura governamental consistente tem de ter gente acompanhando o que está acontecendo em outros lugares, dividir problemas e soluções com outros parceiros, conversar constantemente com especialistas e lhes propor desafios para resolver. Conhecimento compartilhado é matéria-prima básica para escapar do amadorismo e das respostas inconsistentes.
Essa comunicação entre os governos e destes com outras organizações que produzem conhecimento sobre políticas públicas tornou-se ainda mais importante no mundo contemporâneo por conta da complexidade dos problemas e do aumento do acesso à informação. Hoje é possível saber onde ocorrem políticas públicas bem-sucedidas em várias partes do mundo, do mesmo modo que temos mais dados - embora ainda insuficientes - sobre o que se faz de bom nos vários entes governamentais no Brasil. Soma -se a isso, no caso brasileiro atual, o contexto de crise fiscal, que deve levar a aumentar a importância da parceria e da busca de melhores práticas.
Recentemente, acompanhei uma experiência que revela bem os caminhos de uma política pública consistente. Com o apoio do Instituto Natura, fiz uma pesquisa sobre a política educacional do Ceará, particularmente seus arranjos de cooperação do governo estadual com os municípios. O sucesso desse modelo se consubstanciou no chamado Programa de Alfabetização na Idade Certa (PAIC), criado há dez anos. Baseada em diagnóstico prévio, em monitoramento contínuo da política pública, na criação de uma engrenagem de implementação mobilizadora de todos os atores educacionais importantes e em instrumentos gerenciais adequados à melhor prática pedagógica, o PAIC teve resultados espantosos. Em uma década conseguiu retirar o Ceará de uma situação calamitosa e colocá-lo em grande destaque: hoje, das cem melhores escolas do Fundamental I, 77 estão em solo cearense.
Conhecer essa experiência é fundamental para os governos subnacionais brasileiros melhorarem sua atuação na Educação Básica. Primeiro porque o chamado Regime de Colaboração entre os Estados e os municípios funcionam muito mal no Brasil. Isso afeta os resultados educacionais, dificultando particularmente a transição dos alunos do Fundamental I para o Fundamental II, quando, em geral, saem de uma escola municipal e vão para outra estadual. Entre outros fatores, isso gera o seguinte cenário: os resultados educacionais do primeiro ciclo têm melhorado e os do segundo têm estagnado. Logo, aperfeiçoar o Regime de Colaboração incrementaria a qualidade da educação brasileira.
Além disso, os resultados da alfabetização ainda deixam muito a desejar no país. Conhecer experiências de sucesso e analisar como incorporá-las é essencial para um bom governo. Nesse sentido, entender o arranjo institucional no Ceará que faz a ponte entre a meta, a implementação e os bons resultados é uma tarefa inexorável para quem quer melhorar o aprendizado dos alunos.
Outro ponto de destaque na experiência do PAIC é a capacidade de juntar ações de avaliação contínua com medidas pedagógicas adequadas. Não adianta saber quanto é preciso melhorar sem que se saiba como aperfeiçoar o desempenho educacional. Claro que essa engrenagem não foi montada do dia para a noite. Para se ter uma política pública consistente é necessário perseverar, seguir uma estratégia que não se mova ao sabor das circunstâncias. É preciso ter uma escolha política pelo longo prazo.
Essa e outras experiências bem-sucedidas no Brasil são pouco aproveitadas pelos outros governos, infelizmente. Aprender com o outro e incorporar boas práticas é um passo muito importante para criar políticas públicas consistentes. Mas há exceções. O governo do Espírito Santo, na semana passada, firmou uma parceria com o Ceará para aprender e reproduzir, com as devidas adequações, o modelo do PAIC. Tal humildade não nasceu à toa em solo capixaba, pois não é a primeira vez que o governo conseguiu captar a necessidade de trazer o que dá certo em outros lugares - inclusive na experiência internacional - para suas políticas públicas
O Espirito Santo, na verdade, é um caso em que políticas de Estado têm sido implementadas para além das dinâmicas do governo de ocasião. Sua política fiscal é um exemplo importante para outras unidades da Federação, lembrando que em 2002 o governo estadual estava quebrado, política e financeiramente. Ou seja, dada a situação de outros Estados no país, o caso capixaba mostrou que é possível sair da crise, contanto que se adote políticas públicas consistentes. O exemplo da parceria com o Ceará também poderia ser copiado por outros governos.
Construir políticas públicas consistentes, por fim, passa pelo diálogo contínuo dos governos com todos os atores sociais relevantes em cada área. Isso traz informações essenciais para o sucesso das ações governamentais. É preciso estabelecer um ambiente de confiança e mostrar à sociedade o trabalho contínuo e árduo dos governos. Se isso não for feito, quando vierem as crises, a população esperará por salvadores da pátria e soluções mágicas. E isso é o contrário de uma desejada política pública consistente.
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Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e coordenador do curso de administração pública da FGV-SP,
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