domingo, 18 de março de 2018

Carlos Pereira: Quando o feitiço acaba?

- Folha de S. Paulo

Como uma condenação afeta a intenção de voto

Já existe informação suficiente do malfeito cometido. Não faltam evidências ou mesmo provas do envolvimento em esquemas de corrupção. Há até mesmo condenações judiciais em primeira e segunda instâncias. Ainda assim, uma grande parcela dos eleitores e dos partidos aliados históricos do PT não consegue se livrar do "feitiço" do ex-presidente Lula.

Votar em políticos reconhecidamente corruptos não é um fenômeno particular do Brasil. Os exemplos existem, inclusive, em democracias avançadas. Por que pessoas continuam a votar em políticos desonestos, até mesmo naqueles já condenados pela Justiça? O que justifica esse comportamento aparentemente irracional?

É lógico esperar que o malfeito cometido por um político, uma vez revelado, leve os eleitores a penalizar comportamentos desviantes, a votar em políticos honestos. E isso de fato se confirma em certa medida: em pesquisa feita com Marcus André Melo (Universidade Federal de Pernambuco), publicada em 2015 no periódico acadêmico Latin American Politics and Society, demonstramos que prefeitos com contas rejeitadas pelos tribunais de contas têm chances 30% menores de reeleição.

No entanto, testemunhamos rotineiramente na história das democracias a eleição e reeleição de políticos corruptos, mesmo quando os cidadãos são informados sobre sua improbidade.

Essa constatação desafia a expectativa de que informação é ferramenta suficiente no cálculo da escolha de bons representantes. O que conta, então, na decisão aparentemente irracional de eleger políticos sabidamente desonestos?

Uma explicação possível é a oferta de bens materiais ou mesmo de bens públicos por governantes acusados de corrupção. Conforme demonstrado na pesquisa mencionada, o efeito negativo da rejeição das contas tende a diminuir quando a oferta de bens públicos aumenta --e não necessariamente por meio de desvio de recursos e pagamento de propinas, mas com a implementação de políticas públicas que levam à diminuição da pobreza e da desigualdade social, por exemplo.

A psicologia política tem oferecido ferramentas complementares para explicar o aparente paradoxo da existência de políticos que são, ao mesmo tempo, corruptos e populares. A conclusão é que eleitores podem tolerar comportamentos desonestos quando compartilham das preferências ideológicas dos candidatos.

IDEOLOGIA
A literatura especializada indica dois mecanismos psicológicos principais. O primeiro deles diz respeito a mudanças na percepção do que é corrupção. As pessoas têm resistência a reconhecer ato ilícito de alguém que pensa como elas. Os eleitores, portanto, tendem a desconsiderar ou diminuir a importância de informações sobre comportamentos desonestos de políticos que compartilhem sua ideologia.

Esse mecanismo permite aos eleitores reinterpretar desvios de conduta de seus candidatos e torna sua percepção de novos eventos e informações, mesmo quando revelados por instituições judiciais ou administrativas, maleável a ideias preconcebidas.

Assim, diminuem o peso do ato delituoso e consideram que ele "não foi tão grave", quando cometido por alguém com quem se identificam. Não é incomum ouvirmos as frases "ele fez o que todos fazem" ou "todo político é corrupto" como uma forma de atenuar o malfeito.

O segundo mecanismo é o cálculo cognitivo de custo-benefício. Um cidadão pode reconhecer que um político é desonesto, mas se esse governante for eficiente na implementação de políticas congruentes com a ideologia desse eleitor, será preferido a um político honesto com outra visão e proposta.

Interessante notar que essa forma de raciocínio é percebida, indistintamente, tanto em pessoas de direita quanto de esquerda; ou seja, não é exclusiva de um só ramo do espectro político-ideológico.

Essa descrição teórica sobre o funcionamento da mente do eleitor pôde ser testada numa pesquisa de opinião experimental que desenvolvi na Fundação Getulio Vargas juntamente com os professores Lúcia Barros (Universidade Federal de São Paulo) e Rafael Goldszmidt (FGV).

Em um primeiro experimento, entrevistamos 1.045 participantes com perguntas e condições aleatórias, isto é, usando candidatos hipotéticos e sem fazer diferenciação baseada na orientação política real de cada um dos entrevistados.

Usando um algoritmo que criava suspeitas de corrupção para um ou outro candidato --hipoteticamente alinhado ou não com as preferências do participante--, encontramos evidências robustas de que a congruência de ideias entre o eleitor e o político aumenta a tolerância à corrupção.

Quando era alta a consonância ideológica sobre aspectos econômicos --intervenção do Estado na economia ou privatizações, por exemplo-- e sociais --tais como casamento entre pessoas do mesmo sexo e descriminalização do uso de maconha--, o candidato alegadamente desonesto foi rejeitado por apenas 36% dos participantes.

A surpresa maior veio no segundo experimento, feito com uma amostra de 830 brasileiros, no qual manuseamos aleatoriamente as condições de suspeito versus condenado, isto é, as intenções do eleitor quanto a um candidato simplesmente acusado de corrupção ou já condenado pelo crime.

CONDENAÇÃO
Os resultados indicam que a congruência ideológica tem o efeito de cegar o eleitor especialmente quando o político ainda não foi sentenciado. Com a condenação pela Justiça, a escolha do cidadão fica menos sujeita a esse mecanismo e somente 11% dos participantes com identificação de valores com o candidato improbo continuam a votar nele.

Ou seja, antes da condenação, 64% dos eleitores permanecem votando no candidato suspeito de corrupção; quando um político é condenado, porém, esse número cai para 11%. Os entrevistados tornam-se mais suscetíveis a votar em candidatos alternativos, com os quais não necessariamente estão alinhados ideologicamente.

No final de janeiro, o Datafolha publicou a última pesquisa sobre intenção de voto à Presidência em 2018, feita após a condenação de Lula pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região. O petista ainda é o primeiro colocado nas intenções de voto, mas subiu de 48% para 53% a fatia dos que não votariam em um candidato apoiado por Lula. Nossas pesquisas acadêmicas e esses resultados convergem e apontam uma luz no fim do túnel.


Sistemas políticos capazes de punir corrupção podem gerar responsabilização eleitoral, ou seja, funcionam como inibidores de atos desviantes mas também impactam a maneira de percepção do eleitor e suas escolhas de voto. Em outras palavras, condenar e impor penalidades pode não apenas desencorajar comportamentos ilícitos no futuro como ainda libertar os eleitores enfeitiçados por corruptos.

Infere-se, ademais, que a recente condenação de Lula em segunda instância poderia, também, emancipar seus aliados de esquerda da condição de satélites girando em torno do ex-presidente.

Historicamente, o PT tem sido o núcleo da esquerda brasileira, do qual os outros partidos desse espectro ideológico não se libertaram. No entanto, quanto mais tardia for a decisão do PT e de Lula de retirar a candidatura do ex-presidente, menores serão as chances de a legenda preservar seu papel aglutinador e protagonista.

Há chances de pulverização dos candidatos de partidos de esquerda que, mesmo não competitivos, poderiam buscar ocupar o espaço deixado pelo PT e usufruir de seu espólio eleitoral.

Em um ambiente político e social como o brasileiro, caracterizado por persistentes desigualdade e pobreza, é fundamental a presença de alternativas eleitorais competitivas de esquerda que canalizem uma agenda de inclusão social e econômica.

A manutenção da candidatura de Lula, entretanto, coloca em risco esse projeto. Por mais paradoxal que possa parecer, a condenação do ex-presidente e seu impedimento legal de concorrer à Presidência podem se traduzir no melhor cenário para a reestruturação competitiva do próprio PT e de seus aliados de esquerda.

A candidatura do petista adquiriu uma clara dimensão de jogo de sobrevivência individual diante da Justiça, tornando não só o PT mas toda a esquerda brasileira reféns de sua decisão. É chegada a hora de reverter esse quadro.
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Carlos Pereira, 53, doutor em ciência política pela New School University, é professor da Fundação Getulio Vargas (FGV). Foi recentemente professor visitante na Universidade Stanford.

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