sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Maria Cristina Fernandes: Toda era tem seu próprio fascismo

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Na tarde do dia 2 de dezembro, quando o presidente eleito, Jair Bolsonaro, apareceu no campo do Allianz Parque para entregar o troféu ao Palmeiras, que acabara de derrotar o Vitória por 3 tornando-se campeão brasileiro, as placas tectônicas da rua Turiassu, na Barra Funda, zona oeste de São Paulo, se moveram. Fundada em 2014, em reação à presença em estádios de alviverdes com simpatias pelo Irriducibili, torcida do Lazio, time de Benito Mussollini, a Palmeiras Antifascista era mais alvoroçada das torcidas organizadas.

A ovação de mito por parte expressiva da arquibancada e dos jogadores levou os inquietos integrantes daquela torcida a aparecer como visionários. Suas inquietações seriam reforçadas pelo técnico Luis Felipe Scolari, que atribuiu a vitória à determinação dos jogadores em cumprir ordens da mesma forma da mesma forma que, esperava, o Brasil o fizesse sob o novo presidente. O bate-boca invadiu a semana, especialmente quando surgiram as fotos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva erguendo a taça do Corinthians, em 2009, durante visita dos jogadores e do presidente do clube, hoje deputado federal pelo PT, Andres Sanchez, ao Palácio da Alvorada.

Fascista e populista findaram quase como elogios num breve balanço do entrevero. O embate parecia reacender o clima da campanha eleitoral. As evidências de que o debate extrapola, no tempo e no espaço, a Turiassu, estão resumidas no sexto livro de Madeleine Albright. Em "Fascismo, um Alerta" (Planeta, 2018), a ex-chanceler americana, de tão assombrada com o entorno, se declara desabrida: "Não há nada de inerentemente enviesado e intolerante em ser populista, termo que o dicionário Merriam-Webster define como 'Quem acredita nos direitos, sabedoria e virtudes das pessoas comuns'. Se me fosse pedido para escolher entre sentar-me dentro ou fora desse círculo de pessoas assim definidas, minha resposta seria: 'Podem contar comigo'".

Chega a dizer que a maior parte dos grandes movimentos políticos tem algum grau de populismo, o que não os torna fascistas: "O que torna um movimento fascista não é a ideologia, mas a disposição de fazer tudo o que for necessário - inclusive lançar mão de força e atropelar os direitos dos outros - para obter a vitória e a obediência às ordens". O livro só não passa batido sobre o Brasil graças a um fortuito registro dos protestos anticorrupção. Ainda que não mencione governantes brasileiros, é difícil chegar ao fim de suas 296 páginas sem se espantar com as semelhanças entre o discurso, a postura e as atitudes do presidente eleito e o alerta da incansável Madeleine Albright.

Filha de um diplomata tcheco que pediu asilo nos Estados Unidos em 1948, depois da chegada dos comunistas ao poder em Praga, Madeleine chegou para morar com a família no Colorado aos 11 anos e tornou-se cidadã americana aos 20. Fez carreira na assessoria diplomática do Partido Democrata e, aos 56 anos, foi nomeada embaixadora dos Estados Unidos nas Nações Unidas. No segundo governo Clinton, assumiu a chancelaria, a primeira a fazê-lo, no mais alto cargo já ocupado por uma mulher no Estado americano.

Aos 80 anos, a ex-chanceler ainda dá aulas na pós-graduação de relações internacionais da Universidade de Georgetown, em Washington. A convivência com jovens parece mantê-la presa a uma réstia de otimismo, mas o avanço dos 50 tons do fascismo, a começar por seu país de adoção, leva a professora a abandonar os rodeios diplomáticos para se confessar mais descrente com o futuro da humanidade do que jamais esteve.

Foi como um barítono rouco que viu despencar o valor da democracia como produto de exportação de sua diplomacia. O presidente americano, diz, não é fascista, "mas se pensarmos no fascismo como uma ferida do passado que estava quase sarada, colocar Trump na Casa Branca foi como arrancar o curativo e futucar a cicatriz". Não tem dúvidas de que se trata do primeiro dirigente antidemocrático da história moderna dos Estados Unidos. "Sob o fascismo, a missão dos cidadãos é servir; o trabalho dos governantes, ditar as regras". Qualquer semelhança com o manual Filipão é mera coincidência.

Ao passear pela ascensão do fascismo, a ex-chanceler mostra como as mudanças no início do século XX atordoavam e levava todos a buscar refúgio nas noções de nação, cultura e fé propagadas por lideranças com respostas simples a perguntas complicadas. A semelhança com os dias que correm assusta: "Nunca antes o povo esteve tão sedento por autoridade, direção, ordem" (Benito Mussolini); "Nossos problemas pareciam complicados. O povo alemão não conseguia entendê-los... eu, por outro lado... os reduzi aos termos mais simples" (Adolf Hitler).

Madeleine Albright rejeita a ideia de que a ascensão desses regimes se deva a ausência de humanidade. Prefere vê-la como parte dela, a corroer a democracia. Para ilustrar a complacência com o déficit democrático no mundo, recupera um cartum inglês do século XIX que exibia um bispo e sua família compartilhando o café da manhã com um jovem pároco. Ao examinar o ovo do convidado, o anfitrião teme que esteja podre. "Oh, não, Eminência, lhe asseguro, há partes excelentes", responde o padre.

A ex-chanceler cita o índice de democracia da "The Economist" que demonstra seu declínio em 70 países, a partir de critérios como o respeito ao devido processo legal, liberdade religiosa e o espaço dado à sociedade civil. Recorre à comparação feita por Mussolini entre a concentração de poder e o processo de se depenar uma galinha "pena por pena de forma que cada guincho seja ouvido à parte dos outros e todo o processo ocorra da forma mais discreta possível". No balde de penas que extrapola fronteiras está o descrédito dos políticos tradicionais, o surgimento de líderes que procuram dividir em vez de unir, a busca da vitória política a qualquer custo e a invocação de uma distorcida ideia de grandeza nacional.

Sem estender o mesmo pedigree de Mussolini, Hitler e Stalin aos líderes autoritários que marcam o século XXI, o livro dedica um capítulo a Hugo Chávez ("Era um homem combativo, não cínico ou desonesto (...) o que tornou Chávez amado por muitos foi sua relutância em admitir limites"); Recep Erdogan ("Sua voz interior afirma ser ele e só ele quem sabe o que é melhor para a Turquia"); Vladimir Putin ("Só não é um fascista completo porque nunca sentiu a necessidade de sê-lo"); e outros dirigentes que hoje assustam o mundo, como Viktor Orbán (Hungria) e Kim Jong-il (Coreia do Norte), a quem visitou em Pyongyang e dele trouxe a confissão: "Nossas crianças aprendem a chamar gente de seu país de 'americanos desgraçados'". Nenhum deles merece da ex-chanceler tão impiedoso descrédito quanto o presidente do seu país.

Custa a perdoá-lo por avalizar, com seu exemplo e aprovação, a proliferação de autocratas mundo afora. Lembra que Trump chegou a ligar para cumprimentar, "pelo excelente trabalho", Rodrigo Duterte (Filipinas), o dirigente que estimula investimentos em funerárias gabando-se: "Deixe que os mortos são por minha conta" e chegou a dizer que Saddam Hussein (Iraque) "era um cara malvado, mas sabe o que ele fazia bem? Matava terroristas". Ainda critica com acidez uma visão de mundo limitada à competição por vantagens. "Se o cinismo é tudo o que prometemos, é também tudo o que podemos esperar".

Tem a sabedoria de aprender com seus alunos. Um deles lhe resumiu as razões pelas quais não se deve acreditar na propalada resiliência da democracia americana. Um sinal de que as instituições americanas mais se amoldam do que resistem à ascensão autoritária, observou seu aluno, é o fato de o país estar em guerra desde 2001 com base num documento de 60 palavras, uma autorização parlamentar para uso da força contra os que "planejaram, autorizaram, cometeram ou ajudaram" os ataques de 11 de Setembro. Todos os presidentes desde George W. Bush se valem deste documento para justificar operações antiterroristas, algumas das quais contra grupos que sequer existiam 17 anos atrás.

Madeleine Albright cita Abraham Lincoln e Nelson Mandela como exemplos de governantes que enfrentaram monstros sem se transformarem num deles, como vaticinara Nietzsche. E sugere, como meio para se identificar onde nasce a monstruosidade do fascismo, que se aprenda a fazer as perguntas certas:

• "Estariam explorando nossos preconceitos ao sugerir que tratemos como indignas de respeito pessoas de outras etnias, raças, credos ou partidos?"
• "Estariam tentando direcionar nossa raiva contra aqueles que acreditamos terem nos prejudicado, pondo o dedo em nossas feridas, fazendo-nos pensar em vingança?"
• "Estariam nos incutindo desprezo pelas instituições governamentais e pelo processo eleitoral?"
• "Estariam tentando destruir nossa fé em colaboradores essenciais de uma democracia como a imprensa livre e o judiciário profissional?"
• "Estariam explorando símbolos de patriotismo - a bandeira, o juramento - em um esforço consciente para voltar-nos uns contra os outros?"
• "Se derrotados nas urnas, aceitariam o veredito ou insistiriam ter vencido contra todas as evidências?"
• "Vão além de pedir nossos votos, gabando-se de serem capazes de resolver todos os problemas, apaziguar todas as nossas ansiedades e satisfazer todos os nossos desejos?"
• "Tentaram obter nossos aplausos falando casualmente, de forma exaltada e viril, sobre lançar mão da violência para dar cabo de inimigos?"

Jair Bolsonaro tomará posse daqui a duas semanas porque convenceu a maioria do eleitorado sem que tenha respondido a esta sabatina. Madeleine a formulou em busca de lições daquilo de que foi vítima na infância para que não volte a se repetir sob disfarces - "Ninguém vai perguntar depois ao vitorioso se estava falando a verdade" (Adolf Hitler).

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