Vitor Marques | Aliás / O Estado de S. Paulo
O ódio ao jornalismo não é algo novo. Tampouco é uma exclusividade da extrema-direita. Referirse à imprensa como “inimiga do povo”, por exemplo, é uma expressão atribuída a Josef Stalin. O que hoje gera extenso debate é o fato de que chefes de Estado e presidentes eleitos pelo voto, como o americano Donald Trump, atacam a imprensa como modus operandi do ato de governar. Para diversos autores, este é um comportamento que enfraquece a democracia liberal.
Recém-lançado no Brasil, o livro O Iimigo do Povo – Uma Época Perigosa para Dizer a Verdade, do jornalista da CNN Jim Acosta, vai além de relatar os bastidores e as disputas internas do governo Trump. Ao narrar sua experiência pessoal como correspondente chefe da emissora na Casa Branca, Acosta discute temas vitais para a democracia: a liberdade de expressão e de imprensa. Além disso, toca em outro ponto importante para o jornalismo: como os veículos de comunicação devem se comportar diante de um governo que, além de ser acusado de incitar o ódio, se tornou conhecido por disseminar notícias falsas?
A primeira mentira da era Trump, recorda Acosta, foi insistir que o número de pessoas que compareceram à posse do novo presidente era igual ou maior à quantidade de apoiadores que recepcionaram Barack Obama anos atrás. “Foi a maior plateia a testemunhar uma posse até hoje, tanto pessoalmente, quanto no planeta inteiro”, disse o então secretário de imprensa da Casa Branca, Sean Spicer, um dia depois da posse de Trump. Como relataram os canais de notícias, era mentira.
O livro abrange o período em que Acosta passa a cobrir, pela CNN, a campanha de Trump à Presidência, em 2016, até os desdobramentos do diálogo no qual o já presidente americano acusa o jornalista e a CNN de serem “inimigos do povo”. O episódio ocorreu durante uma entrevista coletiva na Casa Branca, em novembro de 2018, dias após o partido Republicano de Trump perder o controle da Câmara dos Representantes (Deputados).
Não havia sido o primeiro embate entre o jornalista e o presidente. Mas foi, sem dúvida, o mais emblemático. O ataque a Acosta e à emissora veio depois de o jornalista insistir, embora estivesse em uma coletiva ao lado de outros repórteres, em ouvir do presidente explicações sobre a política anti-imigração do governo e a investigação sobre a interferência russa nas eleições americanas de 2016 – a mesma que elegeu Trump. Durante a entrevista, uma estagiária da Casa Branca interveio e tentou tirar o microfone das mãos de Acosta.
Tão logo terminou a entrevista, um tuíte de uma conta oficial da Casa Branca publicou um vídeo com conteúdo distorcido do diálogo, sugerindo que Acosta teria agredido a estagiária, o que não aconteceu. O vídeo está no YouTube. O episódio ganhou repercussão mundial porque custou ao jornalista a credencial para exercer a profissão de dentro da sede do governo. O caso foi parar na Justiça e o nome do jornalista estampou as manchetes dos jornais.
Acosta afirma que depois desse episódio passou a receber ameaças de morte e que eleitores de Trump o acusaram de agressão. “Pensei pela primeira vez que existia a possibilidade real de alguém tentar me matar por fazer meu trabalho”, escreveu – a CNN já havia sido alvo de uma cartabomba, e o escritório da emissora em Nova York precisou ser esvaziado.
No entanto, há uma novo componente nesta estratégia tão velha utilizada por governos de tentar deslegitimar a imprensa e intimidar jornalistas. O “nós contra eles” ganhou um aditivo que reforça a polarização e a radicalização do discurso: as redes sociais. Um tuíte de Trump é acompanhado por 62 milhões de seguidores, que, somados a robôs e a uma teia de perfis alinhados a sua visão de mundo, têm o potencial de destruir reputações, como tentou-se, por exemplo, com Acosta. No caso, o meio utilizado foi uma conta oficial do departamento de imprensa da Casa Branca. Mas o termo fake news é uma constante no Twitter de Trump ao se referir à CNN e a outros veículos, como The New York Times ou BuzzFeed.
Como mostra o livro de Acosta, as instituições americanas e a sociedade civil são fortes o bastante para conter arroubos autoritários do presidente. A decisão unilateral do governo Trump de revogar a credencial de Acosta chegou aos tribunais em um caso que ficou conhecido como CNN vs Trump. Outros veículos de imprensa, inclusive concorrentes como a Fox News, apoiaram a CNN. A emissora e o jornalista processaram a Casa Branca com base nos seguintes argumentos: o presidente americano e outros funcionários do governo violaram a Primeira Emenda à Constituição americana, que assegura a liberdade de imprensa, e a Quinta, que garante o devido processo legal por retirar a credencial do repórter sem aviso prévio.
Na sentença, o juiz Timothy J. Kelly, nomeado por Trump, entendeu que o governo violou o devido processo legal. A decisão do juiz Kelly havia sido liminar (temporária), mas três dias depois a Casa Branca devolveu a credencial a Acosta, pondo um fim à disputa judicial. Todo o processo durou menos de duas semanas. A despeito de Trump, funcionou o sistema de freios e contrapesos da democracia americana.
Acosta também critica medidas do governo Trump, como a política anti-imigração, e o comportamento do presidente em casos como os atos de violência em Charlottesville, na Virgínia, envolvendo integrantes de grupos supremacistas brancos e antiextremistas. Uma das primeiras reações de Trump foi afirmar que havia “culpados” e “gente de bem” dos dois lados. O comentário foi criticado pela imprensa. Ao escrever sobre o episódio, Acosta passa a questionar como os veículos de comunicação devem abordar declarações como a de Trump a respeito do conflito racial.
“Devido à forma como os jornalistas foram ensinados por décadas, somos há muito tempo obcecados pela ideia da imparcialidade, de que os dois lados merecem igual ceticismo”, escreve Acosta. “Uma coisa é ter essa postura em relação à saúde ou à política tributária, mas Charlottesville revelou que é totalmente diferente quando se fala em supremacistas brancos e neonazistas. Quando falamos em Ku Klux Klan, não há imparcialidade.” Para Acosta, nesses casos, “a neutralidade não nos serve na era Trump”.
No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro, que também associa a imprensa profissional a fake news, já expôs nomes de jornalistas em suas redes sociais. Em março, ele atribuiu falsamente uma frase a uma repórter do Estado para criticar a cobertura sobre o filho e senador Flávio Bolsonaro. Neste mês, Bolsonaro e o filho Eduardo, deputado federal, contrariados por uma reportagem da revista Época, atacaram, nas redes sociais, o jornalista autor do texto. Também neste mês, Bolsonaro escreveu em suas redes sociais que “parte da grande imprensa” é “nossa inimiga”. Ao ler o livro de Acosta, é inevitável não traçar um paralelo entre Trump e Bolsonaro.
Ao narrar sua experiência de correspondente chefe da CNN na Casa Branca, Jim Acosta discute temas vitais para a sobrevivência da democracia
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