domingo, 29 de setembro de 2019

Dorrit Harazim - Caldeirão do Trump

- O Globo

Mesmo que a abertura do inquérito na Câmara não leve à aprovação do impedimento pelo Senado, de maioria republicana, é boa a hora de se relembrar o papel de whistleblowers

O que estará pensando Volodymyr Zelensky? Apesar da extraordinária versatilidade desse ucraniano camaleão de 41 anos — já foi ator e comediante de real sucesso, roteirista de TV e cinema, empresário cultural e produtor de filmes no eixo Rússia-Ucrânia —, nada o preparou para se ver catapultado a testemunha e coprotagonista de um enredo capaz de sacudir a história americana, e alterar a geopolítica mundial. Nem mesmo sua meteórica ascensão a sexto chefe de Estado da Ucrânia independente. Montado numa campanha eleitoral tipo blitzkrieg de apenas quatro meses, Zelensky conseguira saltar do papel de presidente ficcional em popularíssimo seriado de TV, “Servidor do povo”, para o de vencedor na vida real. Em abril, derrotara o presidente em exercício por 73% dos votos, e desde então vinha se equilibrando na complexa teia de relações com a sempre rombuda Rússia, e o guarda-chuva aliado dos países da Otan.

Esta semana, com a forçada divulgação do teor de um controverso telefonema confidencial entre Donald Trump e Zelensky, elemento central para o início do processo de impeachment do presidente americano pelo Congresso dos Estados Unidos, o ucraniano se vê num enredo para o qual não ensaiou. Para sorte dele, também é formado em Direito. Caberá à opinião pública de seu país avaliar se o novato no cargo defendeu ou entortou os interesses nacionais para os quais foi eleito.

A situação de Donald Trump é bem mais cabeluda. Em essência, ele agora passa a investigado por usar de seu poder na Casa Branca para pressionar Zelensky a fornecer informações sobre negócios envolvendo o filho do seu principal adversário à reeleição em 2020, Joe Biden. A moeda de troca seria o congelamento ou liberação de US$ 400 milhões em ajuda à Ucrânia.

Além do teor da carta Trump-Zelensky, o inquérito de impeachment tem embasamento num recheado relatório-denúncia de um informante (ainda) anônimo da CIA, que lista evidências de abuso de poder pelo ocupante da Casa Branca para ganho político pessoal. O relatório detalha desvios em série — do acobertamento de provas à alarmante participação do advogado pessoal do presidente, o casca-grossa Rudy Giuliani, na missão de pressão sobre a Ucrânia.

Como se soube, a denúncia encaminhada ao corregedor do Departamento de Inteligência e por ele considerada “crível” e “urgente” foi engavetada pelo diretor interino da Inteligência Nacional. É provável que ali permanecesse adormecida, não fosse a decisão da presidente da Câmara, Nancy Pelosi, de abrir o caminho para um inquérito de impeachment. A partir de agora, será um salve-se quem puder feroz e feio. Rolarão cabeças em série — o secretário de Justiça, William Barr? O secretário de Estado, Mike Pompeo? Quem vai trair ou se afastar primeiro? Mentir mais? Cavar um lugarzinho na história? “Não há motivo para júbilo. É um momento muito penoso para nosso país”, diz Pelosi, dona de louvável serenidade política na condução do processo que agora se inicia. Ela resistiu à pressão da ala jovem mais aguerrida e aguardou o momento certo de pronunciar a palavra que marca o ponto de inflexão da era Trump, e da história do país: “impeachment”.

Mesmo que a abertura do inquérito na Câmara não leve à aprovação do impedimento pelo Senado, de maioria republicana, é boa a hora de se relembrar o papel de whistleblowers, nome dado aos funcionários públicos que encaminham denúncias contra o governo de forma anônima garantida em lei. Um livro com lançamento nos Estados Unidos este fim de semana —“Crisis of Conscience: Whistleblowing in an Age of Fraud”, de Tom Mueller — não poderia ser mais oportuno. Ele ensina que foi na Inglaterra medieval que nasceu o conceito de que, por vezes, cabe a indivíduos, e não governos ou agentes da lei , soar o alarme de desmandos no poder. A prática estendeu-se pelas colônias do Império Britânico, virou lei nos Estados Unidos, mas “acaba sendo um suicídio na carreira”, constata o autor, que entrevistou perto de 200 deles. “Os aplaudimos em público, mas quando voltamos para casa permitimos que seus empregadores destruam suas carreiras, sua saúde, suas vidas”, disse Mueller à revista “Time”. Frank Serpico (corrupção na polícia de Nova York), Karen Silkwood (condições de trabalho numa indústria de plutônio), Daniel Ellsberg (Papéis do Pentágono), Mark Felt (o “Garganta Profunda” do caso Watergate) e Edward Snowden (sistema de vigilância global da NSA americana) são apenas os whistleblowers mais notórios de tempos recentes. A eles deve-se um mundo.

Nota de rodapé: O líder russo Vladimir Putin já avisou que espera não ver o teor de suas conversas com Trump reveladas. Imagina-se que o inverso deve ser mais verdadeiro ainda.

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