- Folha de S. Paulo
Julgamento teve pouca análise constitucional e muito debate sobre o problema da corrupção no Brasil
Os ministros do Supremo Tribunal Federal passaram de ilustres desconhecidos a figuras públicas de alta repercussão em apenas poucos anos. Essa aproximação com a opinião pública se deu principalmente por julgamentos envolvendo questões penais, começando com o mensalão e chegando à Lava Jato.
Nesse período, o Supremo passou da glória à infâmia: ministros deixaram de ser tema de máscaras de Carnaval para se tornarem objeto de insulto em espaços públicos. Essa relação com a opinião pública parece constantemente assombrar o Supremo, que por sua vez não parece saber como administrá-la: a cada julgamento relevante parece que é o próprio STF que ocupa o banco dos réus.
O problema mais recente passa por decidir a condição de réus que estão sendo delatados por outras pessoas que também são rés no mesmo processo. Mais especificamente, saber se, no momento das alegações finais, o réu delatado deve se manifestar depois do réu delator.
A dúvida surge porque a lei que trata das delações premiadas não focou a condução do processo penal, de modo que não há regra específica sobre o tema. Porém, como o processo penal tem sempre que ser conduzido de acordo com determinados valores fixados na Constituição, coube ao STF dizer se o respeito a tais valores exige uma atenção específica na relação entre réu delatado e corréu delator.
Os valores no caso são os princípios do direito ao contraditório e à ampla defesa, que exigem, dentre outros, que a defesa sempre se manifeste depois de qualquer acusação.
O julgamento poderia ter sido sobre a interpretação desses princípios constitucionais e como a relação da delação premiada deve ser organizada no processo penal. Uma parte do julgamento até chegou a ser conduzida nesse sentido, mas rapidamente se tornou um debate sobre os problemas da corrupção no Brasil e de como ela é combatida. O apelo às consequências da decisão passou a ser uma constante nos debates a partir da metade da sessão.
Houve ministro que fez apelo para que os colegas não se desviassem do caminho do combate à corrupção no país. Houve ministro que dissertou sobre os desvios de conduta da equipe da Lava Jato, ressaltando como alguns dos colegas foram desprezados nas mensagens trocadas entre membros da força-tarefa da operação.
Houve quem tenha feito comparação com o período inquisitorial, como houve também quem pedisse para que os colegas pensassem, antes de mais nada, nas consequências de seus votos. Ao final de uma tarde cheia de declarações que pareciam mais adequadas para a opinião pública do que para a comunidade jurídica, a maioria dos ministros se alinhou por entender que havia nulidade no processo.
Porém o resultado não foi declarado. Como o ministro Marco Aurélio se ausentou antes do fim da sessão, alguns dos ministros pediram que a decisão sobre que tipo de efeito esse julgamento deveria trazer para outros casos já julgados fosse tomada em sessão com os 11 magistrados.
O ministro Dias Toffoli só conseguiu se manifestar quando sinalizou que estava de acordo com a tese, adiando a leitura de seu voto e a deliberação sobre os efeitos do julgamento para a próxima semana.
Deixando a polêmica do dia um pouco de lado (já que outras quaisquer surgirão em breve), me chamam a atenção os problemas com essa dinâmica.
Os ministros parecem ainda não ter se dado conta de que foi essa postura, com julgamentos com forte aparência de politização (a despeito dos jargões jurídicos), que colocou o Supremo nesse buraco: suas decisões são criticadas ou louvadas antes de mais nada a partir das consequências geradas por essa ou aquela situação política. Fica cada vez mais no passado a ideia de que "decisão jurídica se cumpre, não se discute".
No país não apenas se passou a discutir as decisões como se passou a acusar os ministros de serem partidários, e cada vez mais pedidos de impeachment de ministros se tornam recorrentes em manifestações públicas.
Esse é um sintoma claro de que o STF perdeu muito de sua autoridade: suas decisões só parecem ser respeitadas por seus destinatários se eles estão de acordo com elas. Pode ser uma questão de tempo para que elas passem a ser descumpridas com a mesma lógica.
O antídoto está em algum resgate da dimensão técnica das decisões do STF. Isso exigiria uma diminuição de voluntarismos individuais dos ministros, menos estratégias de conflito por meio da imprensa, mais decoro nas sessões e mais estabilidade nas decisões. Talvez por se tratar de tarefa tão hercúlea, os ministros insistam no tom político de seus votos e de sua interação em plenário. Porém, enquanto insistirem nisso, continuarão no banco dos réus da opinião pública.
*Rubens Glezer, professor e coordenador do projeto Supremo em Pauta da FGV Direito SP
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