sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Claudia Safatle - Os planos de Guedes e a resistência ao liberalismo

- Valor Econômico

População quer pagar menos impostos, mas não aceita diminuição da oferta de serviços públicos

O programa econômico liberal do ministro da Economia, Paulo Guedes, pegou carona na campanha do então candidato à Presidência Jair Bolsonaro, mas não levou a chancela dos votos que o elegeram. Isso provavelmente explicaria, por exemplo, o porquê de o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, ter descartado a privatização da Eletrobras por aquela casa, na semana passada. A razão, disse ele, é que 48 senadores do Norte e do Nordeste não apoiam o projeto.

No mesmo momento, Alcolumbre também rejeitou qualquer hipótese de ver aprovado um pedido de “fast track” para as privatizações, conforme anunciado pelo ministro. Por esse mecanismo, as vendas de estatais seriam autorizadas em bloco de forma a acelerar etapas das privatizações. “Será caso a caso”, sustentou o presidente do Senado.

Nos grandes valores, como liberdades individuais e direitos civis, pode -se dizer que há uma forte aderência da sociedade com a agenda liberal.

Há, porém, uma distância considerável entre o liberalismo econômico, que preconiza a redução do Estado, e as aspirações populares. A sociedade brasileira credita ao Estado papel fundamental na diminuição da alarmante desigualdade que vigora no país e almeja acesso universal à saúde e educação de boa qualidade. Esse acesso é que dará aos mais pobres condições de competir com os mais abastados por uma vida melhor.

Nos planos de Guedes, que serão colocados em uma proposta de emenda constitucional (PEC) a ser apresentada em duas semanas, constam os três D: desindexar, desvincular e desobrigar o Orçamento da União. Essa é a PEC do pacto federativo. Posteriormente o governo apresentará a PEC da reforma tributária.

Sabe-se que 94% do Orçamento é destinado ao pagamento de despesas obrigatórias (aposentadorias, pensões e folha de salários dos servidores, dentre outras). E sabe-se, também, que parte relevante dessas despesas é indexada ao salário mínimo e à variação do INPC (Índice de Preços ao Consumidor).

Além do crescimento vegetativo, as despesas obrigatórias crescem de forma autônoma pela indexação. A soma de ambos resulta em um gasto adicional de R$ 62,1 bilhões no Orçamento de 2020.

A PEC trará, ainda, a desindexação do salário mínimo de tudo o que, no Orçamento, não for gasto previdenciário. Ou seja, o salário mínimo - que passará a ter correção pelo INPC e não terá mais aumento pela variação do PIB de dois anos anteriores - continuará indexando os benefícios da Previdência Social, mas não servirá para corrigir os valores do abono salarial nem do seguro-desemprego, dentre outros. “É assim em quase todo o mundo”, disse uma fonte oficial.

Isso vai liberar uma massa de recursos (mais de R$ 50 bilhões) do Orçamento que, pela PEC do pacto federativo, passará a engordar o caixa de Estados e municípios. Esses recursos financiarão também as emendas impositivas.

Essa é, portanto, uma questão que vai esquentar o debate em torno de temas polêmicos, a exemplo da nova política de reajuste do salário mínimo que não mais comporta aumento real. Será interessante acompanhar a discussão no Congresso, onde não deverá faltar o populismo de alguns versus a ortodoxia de outros.

Pesquisa feita no primeiro semestre deste ano pela Oxfam/Datafolha, onde foram ouvidas 2.086 pessoas em 130 municípios de todas as regiões do país, confirma o quanto os brasileiros esperam do Estado: 84% consideram que é obrigação dos governos reduzir as desigualdades sociais no país; 77% acham que é preciso aumentar os impostos sobre os mais ricos para financiar políticas sociais; e mais de 70% consideram que é função do Estado prover educação do ensino fundamental e médio e acesso universal à saúde.

Há um fato inescapável em toda essa discussão: o Estado brasileiro passa por uma gigantesca crise financeira. Está quebrado. Ou seja, há limites físicos para atender às demandas da população.

Para liberar recursos, o governo quer privatizar empresas estatais, até porque em mãos privadas elas serão mais eficientes. A Eletrobras, junto com os Correios, encabeça a lista. Os parlamentares do Norte e Nordeste são contra a alienação da companhia porque ela abastece os políticos de lá com cargos aos seus eleitores.

Roberto Elery, economista liberal e professor da Universidade de Brasília, ajudou o núcleo de Paulo Guedes durante a campanha eleitoral. Segundo ele, o candidato Bolsonaro encarnou o antipetismo e passou ao largo das questões mais polêmicas como privatização, reforma da Previdência e as demais reformas necessárias para a retomada do crescimento.

“Na economia, preto no branco, ainda há muita resistência a uma agenda liberal,” diz. Ele avalia que as pessoas querem desregulamentação, querem tirar o peso do Estado do seu cangote.

Querem pagar menos impostos, mas não aceitam uma diminuição da oferta de serviços públicos. “Não se consegue, aqui, reduzir o gasto público. O máximo que se consegue é reduzir o ritmo do seu crescimento”, sublinha.

Enquanto essa resistência assola o próprio presidente da República, dança-se no último baile da ilha fiscal. Foi assim que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) decidiu, há poucos dias, que juízes e servidores do Judiciário poderão ser ressarcidos de despesas médicas em até 10% do seu salário. Os militares também querem sua parte, com o projeto de lei da Previdência elevando em R$ 4,7 bilhões os gastos com salários no ano que vem. E a não privatização da Eletrobras representará um buraco de R$ 16, 2 bilhões no Orçamento de 2020.

Independentemente de ser uma economia liberal ou intervencionista, o fato é que o dinheiro acabou. Há um teto a ser cumprido para o gasto público e a classe política terá que decidir se aprofunda as regras do teto ou se abre mão delas e seja lá o que Deus quiser.

De pouco adianta tentar queimar o ministro da Economia nos gabinetes do Palácio do Planalto. Um novo ministro não inventará mais recursos para gastar a não ser que se aumentem os impostos.

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