- Valor Econômico
Riscos de exaustão dos freios democráticos provém também da sociedade. País carece realinhamentos políticos e alianças
O simples debate a respeito dos riscos à democracia é eloquente sinal do sentimento de parte do país. Num regime consolidado não há dúvida: tudo está sob o controle das leis; a liberdade não é apenas formal, imprensa e grupos de comunicação não são perseguidos nem favorecidos; não se apela à intervenções militares, nem se questiona o sistema de freios e contrapesos do país. Como observou Cláudio Couto, a erosão democrática não se dá aos saltos, mas dia após dia; submetidas a testes frequentes, também as instituições vão à fadiga.
É fato que, no Brasil, o esdrúxulo saltou do noticiário; sucedido por desculpas, repete um deliberado e entediante ciclo de ataques. O acintoso e o patético chocam cada vez menos; o país está anestesiado ou a desesperança venceu. O Legislativo, sim, tem exercido suas prerrogativas; é positivo, mas parece depender de arrimos e fiadores políticos, o que é precário. Já o Executivo, inábil em quase tudo, confunde o público com o privado e familiar. Pleno de conflitos, o Supremo já não consegue dissimular alinhamentos e disputas.
Seria menos preocupante se importantes instituições não fossem lentamente aparelhadas. Política Externa, Meio Ambiente, Educação, Ministério Público, Polícias Federal e Militares, Poder Judiciário e até as Religiões foram envolvidas em projetos de poder. É clara a instrumentalização daquilo que deveria ser impessoal e laico, o Estado.
Mas, de toda sorte, o debate acadêmico está posto por gente qualificada que esgrime bons argumentos a favor ou contra, incorretamente taxados de “otimistas” ou “pessimistas”. Todavia, o deixemos de lado: aqui, cumpre buscar as raízes dos tais riscos. Elas não estão apenas no bolsonarismo, residem também no silêncio e apatia da sociedade, na canibalização de setores democráticos, nos vetos cruzados de movimentos identitários, na ineficácia das lideranças políticas e na dificuldade de o país se reinventar.
A outrora chamada sociedade civil carrega culpas e responsabilidades. A dois anos da eleição, atores se precipitam aos palanques e a plateia se organiza como nos clássicos de futebol: torcidas indóceis, redes sociais que indicam que o país perdeu a elegância e a civilidade. A começar, pelos gritos, a dificuldade de ouvir, estabelecer diálogos e consensos - elementos da arte democrática.
Parte disto se deu em virtude da longa polarização PT/PSDB que, ao final, somou zero atingindo-os mutuamente. Quando se viu, o PSDB já era a direita atropelada pelo bolsonarismo; mutilado de guerra, o PT recolhe-se ao gueto da soberba e do ressentimento. Em paralelo, o centro emedebista sucumbiu ao fisiologismo e aos escândalos em pencas da era Temer. Desorganizado o sistema, a fúria eleitoral de 2018 plantou populismo autoritário e colheu política vazia.
Novos atores tentam emergir do naufrágio. Mas o cenário ainda é pouco promissor: pontes foram queimadas e canais obstruídos. Setores antes afeitos à democracia fecham-se em bolhas. Sem coordenação, interesses específicos se descolam do interesse geral: o velho patrimonialismo campeia e dá vida a novos tipos de corporativismo. Míope, o mercado se basta ao “traderismo” viciado em ganhos e vantagens de curto prazo. Desconhece-se que a democracia é a única forma politicamente sustentável de aprovação e implantação de agendas econômicas.
Noutra ponta, movimentos identitários de justas bandeiras fecham-se em si, ignorando princípios e valores mais amplos, como a necessária unidade política e a democracia como ação coletiva. Luta-se bravamente em vários campos, mas quase sempre de forma isolada, com vetos cruzados de autoritários “lugares de fala”. Também aqui soma-se zero, o que parece ser característico desta quadra histórica.
Enfim, uma marcha para a insensatez tem resultado numa estrada de riscos que sobrecarregam os freios democráticos. Desenvolvimento econômico, bem-estar social, liberdade política, nada disso se fará sem coordenação e cooperação, num sistema destinado à fragmentação e à dispersão. Ambientes de soma zero são assim: deixam todos descontentes e semeiam o canibalismo político. Até que se perceba que todos perdem, todos já perderam de fato.
A pacificação política não é arco-íris pós-tempestades, nem resultado óbvio do crescimento econômico. No longo prazo, o crescimento efêmero pode até agravar conflitos e tornar a comprometer economia. Ilude-se quem acredita que o mundo vive mais um trivial ciclo político ou econômico. Há mudança econômica estrutural, exclusão social e contestação planetária à democracia, com abalos políticos evidentes; basta ter olhos de ver.
No Brasil, setores que estiveram juntos na oposição ao regime autoritário e na transição democrática vivem hoje em discórdia, sob um risco comum. Há miopia e mesquinhez eleitoral. E pouca responsabilidade. A esfera democrática - ou pelo menos a sua defesa - não será assegurada sem realinhamentos políticos e a construção um arco de alianças cuja abrangência se dê do centro democrático liberal à esquerda igualmente democrática e progressista, aberto a quem mais aderir ao trinômio “democracia, políticas públicas e equilíbrio fiscal”.
Já não há Ulysses, Tancredo, tampouco há Nelson Mandela brasileiro - redentor ou mito, não importa. O processo construirá novas referências, mas não cabe idealizá-las. Antes, a sociedade política terá que se recompor e caminhar com aquilo que possui: cidadãos que à parte dos partidos se indagam sobre os riscos à democracia; que calculando perdas fundamentais convencem-se a forçar lideranças de que sentarem-se em torno de mesma mesa é o melhor a fazer - até para que ninguém se aventure a virá-la.
*Carlos Melo é cientista político e professor do Insper
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