- Folha de S. Paulo
Sem a liberdade de perguntar, investigar e ensaiar respostas, resta-nos o senso comum e a opinião do mais forte
Sem pesquisa acadêmica, não saberíamos como classificar Bolsonaro na história universal da infâmia política. Não saberíamos dimensionar qualquer perversão moral, diagnosticar distúrbio psíquico, detectar raízes ideológicas ou mensurar impacto econômico de suas cruas intuições. Nem de qualquer outro personagem que interesse. Nem Lula, nem FHC; nem JK, nem GV.
Não ousaríamos pensar o impensável. Tal como fizeram os que inventaram a separação entre Igreja e Estado, os direitos da cidadania, a proibição da tortura, o voto feminino, a permissão do divórcio.
Nem pensaríamos o impensado. Como os que tiveram a ideia da constituição jurídica do mercado, do direito de propriedade, das relações de trabalho, da proteção do ambiente, da educação e da saúde públicas e universais.
As investidas do governo federal contra a liberdade acadêmica eram promessas de campanha.
Ao longo de 2019, vimos o presidente estimular a denúncia de professores “doutrinadores”; afirmar que universidade pública não faz pesquisa (quando 95% da pesquisa brasileira vem de lá); que estudantes que protestam são “idiotas úteis”; demitir diretor do Inpe em razão dos números sobre desmatamento (Ricardo Galvão foi escolhido um dos cientistas de 2019 pela revista Nature).
Enquanto isso, relatório da organização internacional de apoio a cientistas Scholars at Risk deu destaque à deterioração do ambiente acadêmico no Brasil. Vimos também seu ministro afirmar que autonomia universitária virou soberania para plantar maconha e fazer balbúrdia; contingenciar recursos a universidades e e liberá-los tardiamente, impedindo gasto racional e tempestivo.
Vimos o MEC cortar bolsas a pesquisadores de todo país; rejeitar pedido de apoio para congresso com base explícita em motivo ideológico; predeterminar, sem critério, o número de pesquisadores que pode viajar a trabalho.
A liberdade acadêmica não é só um direito individual de “aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber”, como prevê a Constituição de 1988 (art. 206). Para Jonathan Cole, professor da Universidade Columbia, é um “indicador chave da democracia liberal”. A página 1 da cartilha do autocrata manda atacá-la.
A liberdade acadêmica se realiza somente por meio de um complexo edifício institucional que assegura a professores, pesquisadores e cientistas a estabilidade, a proteção contra represálias, recursos para pesquisa e, claro, um sistema transparente de controle de qualidade pelos seus pares. Não há lugar em que isso possa se realizar com tanta plenitude quanto na universidade pública. Ali está uma das reservas de sanidade, pluralismo e inteligência no país.
Sem a liberdade de perguntar, investigar e ensaiar respostas, resta-nos o senso comum e a opinião do mais forte.
Não teríamos defesa contra tantas teses estapafúrdias à venda: nazismo de esquerda; a Terra plana; africanos escravizados voluntariamente; ditadura militar não teve tortura como política de Estado; vacinas são plano de bilionários para reduzir população mundial.
Ou contra teses empíricas desonestas que inspiram a política pública: quanto menos as crianças se informam sobre sexualidade, mais protegidas da exploração sexual; quanto mais armados, mais seguros estamos; quanto mais a polícia puder matar, brutalizar e encarcerar, menor a criminalidade; quanto menos Estado, mais liberdade.
Ou aquelas teses que já fazem nossa fama lá fora: quanto mais desmatamos, mais enriquecemos; quanto mais se evita o tema da homossexualidade, menos homossexuais; quanto mais disciplina militar e professores vigiados na escola, melhor desempenho na educação.
A ciência social e econômica mostra que é possível combater exploração sexual, promover segurança, reduzir criminalidade, produzir riqueza, boa educação e liberdade. Mas em vez de consultar o fígado ou os dogmas, ela pesquisa. Testa hipóteses no mundo real. Aponta caminhos mais trabalhosos, porém mais eficientes.
Sem essa liberdade, emburrecemos todos. Empobrecemos também. A miséria espiritual e material é o que fica.
*Conrado Hübner Mendes, professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.
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