Ação entre amigos – Editorial | Folha de S. Paulo
Governo poupa militares do ajuste fiscal e destina à área 28% dos investimentos
O balanço das contas do governo federal de 2019 surpreendeu até mesmo os responsáveis pelo controle do gasto público no Tesouro Nacional. De repente, em dezembro, brotou uma despesa imprevista de cerca de R$ 10 bilhões.
Era o dinheiro do aumento de capital de três empresas estatais, na maior parte para a Emgepron, firma ligada à Marinha e dedicada a construir navios, que recebeu R$ 7,6 bilhões em uma canetada.
O valor equivale a todo investimento federal em obras e equipamentos dos ministérios da Saúde e da Educação, por exemplo.
Dadas as peculiaridades da contabilidade pública, tal despesa não toma o lugar de outra, pois não se sujeita ao limite constitucional do chamado teto de gastos.
De qualquer modo, o déficit público acabou maior. Além do mais, essa decisão inopinada e em quase nada transparente desmoraliza a alardeada política de privatização do governo de Jair Bolsonaro, pífia em sua morosidade e inoperância.
O aumento do capital da Emgepron é, no entanto, coerente com uma das linhas de força do governo: o poder militar. Quase um terço dos ministérios é comandado por oficiais da ativa ou da reserva das Forças Armadas, até porque, em sua carreira, Bolsonaro não cultivou relações com outros grupos de quadros técnicos ou profissionais, além de ter sido na prática um líder sindical da categoria.
Governo e Congresso se acertaram a fim de permitir que militares se aposentem em condições privilegiadas (com o equivalente de salários e reajustes integrais da ativa). Este governo também se prontificou a conceder generosos reajustes para os soldos, em particular para o alto oficialato.
O aumento de capital da Emgepron foi R$ 4 bilhões além do previsto para o ano, liberalidade facilitada pela entrada dos recursos do leilão dos campos de petróleo.
Assim, o Ministério da Defesa ficou com mais de 28% do total dos recursos federais destinados a investimentos. A despesa com pessoal militar, civil, aposentados e suas pensões vai aumentar; já consomem pelo menos 26% do gasto total com servidores.
O esforço para o necessário ajuste das contas públicas não tem sido distribuído de modo mais equânime. Subsídios diversos continuam intocados, por exemplo. Não é aceitável que também a despesa militar seja poupada de contribuir para essa emergência nacional.
É argumentável que o equipamento militar brasileiro pode estar sendo sucateado. Mas também este é o caso da infraestrutura física e social, de estradas a hospitais. Ainda mais neste momento de escassez aguda de recursos, é preciso repensar e explicar com transparência as prioridades.
Folia agigantada – Editorial | Folha de S. Paulo
Diante do maior Carnaval de sua história, São Paulo precisa cuidar da organização
São Paulo prepara-se para ser palco do maior Carnaval de rua de sua história. Pela primeira vez, a cidade, que já foi apelidada de “túmulo do samba”, terá desfiles em todas as suas 32 subprefeituras.
Também em número de blocos, a folia promete expansão inédita. Os números são preliminares, mas as 490 agremiações do ano passado deverão ser largamente suplantadas —o aumento previsto é de 70%.
Novas atrações também animarão a festa, como o famoso Galo da Madrugada, de Pernambuco.
Levantamentos preliminares sugerem que a capital paulista poderá ser o principal destino turístico do país durante os festejos, suplantando Rio de Janeiro e Salvador. Com isso, projeta-se aumento da circulação de dinheiro, em favor de hotéis, bares, comércio etc.
No cenário animador, um certo clima de ufanismo parece contagiar quadros da prefeitura, que tem em seus membros um carnavalesco conhecido —o secretário de Cultura, Alê Youssef, fundador do bloco Acadêmicos do Baixo Augusta.
Youssef, que representa uma face mais progressista do governo municipal, vê no Carnaval também um meio de manifestação política —que, aliás, se potencializa em ano eleitoral. O secretário já declarou que pretende fazer com que a festa seja um contraponto a ameaças à liberdade de expressão.
A expansão do Carnaval de rua é um fenômeno que se observa há anos em diversas cidades. No Rio, por exemplo, os blocos começaram a reconquistar as ruas a partir da primeira década do século. O retorno do que seria um tipo mais autêntico de comemoração provocou simpatias e elogios da população e de cronistas da festa.
Com o tempo, contudo, a outra face do crescimento da folia foi-se mostrando problemática —a insuficiência de banheiros públicos, o aumento de furtos, o trânsito interrompido, as áreas protegidas ocupadas por blocos não autorizados e o excesso de barulho.
A Prefeitura de São Paulo afirma que reestruturou o planejamento do evento com vistas a diminuir os transtornos. Ao longo de 37 reuniões, os trajetos passaram pelo crivo de diversos órgãos, como CET, SPTrans (responsável pelos ônibus), polícia e GCM (Guarda Civil Metropolitana). Medidas em outras áreas também foram anunciadas.
Cabe às autoridades, agora, fazer com que a propalada reorganização saia do papel e garanta à cidade e a seus moradores um padrão aceitável de funcionamento.
Degradação política é pano de fundo das milícias – Editorial | O Globo
Candidato ex-presidiário e miliciano precisa enfrentar dura reação da sociedade e das instituições
Há diversos sintomas da persistente e longa degradação da política carioca e fluminense. Não parece ser o caso de vincular-se de forma direta a crise na formação de quadros políticos à fusão entre os estados do Rio e da Guanabara. Os políticos fluminenses teriam intoxicado a vida pública do outro lado da Baía. Mas foi na região do Estado da Guanabara que também floresceram cepas do populismo de direita e de esquerda — Chagas Freitas e Leonel Brizola. Também foi com base no Rio que se expandiu o esquema de corrupção de Sérgio Cabral, herdando e ampliando os anteriores. O resultado está à frente de todos: estatais capturadas por corporações sem qualquer compromisso com a qualidade dos serviços que prestam à população; câmaras legislativas a serviço desses grupos, e uma máquina burocrática destroçada, sob o controle dessas diversas forças do atraso.
Neste ambiente propício à degradação de padrões civilizados de convívio social e político, os bicheiros, pintados como simpáticos e protetores das comunidades pobres, se converteram em chefões mafiosos, conectados até com o exterior, usando como escudo o apoio paternalista a escolas de samba, uma paixão popular.
O aparelho de segurança foi contaminado — de que o noticiário sobre o assassinato de Marielle Franco é prova contundente —, e temos, para agravar este processo de degradação institucional, a intenção de um ex-presidiário condenado por chefiar milícias, Jerônimo Guimarães Filho, o Jerominho, de se candidatar a prefeito do Rio. Ex-policial, ex-vereador, ele é filiado ao Partido da Mulher Brasileira (PMB).
Ora, por que não ser prefeito, diante do que se vê na política carioca e fluminense? O ex-presidiário demonstra racionalidade. Ele próprio já foi parlamentar.
Mas espera-se que organismos de Estado ainda íntegros barrem mais este avanço do crime organizado sobre as instituições.
Pode ser um momento de inflexão neste processo de apodrecimento social e político por que passa o Rio de Janeiro há tempos — mas não só no estado e na cidade, símbolo do Brasil para o turismo mundial.
Um sinal de esperança em que esta metástase em segmentos das máquinas do estado e do município, e na representação política, possa ser interrompida é o apoio do governador Wilson Witzel a investigações, pela polícia e pelo Ministério Público, de grupos de milicianos. É vital reprimi-los, porque também atuam dentro área de segurança pública.
Não é aceitável a passividade que existe diante de uma sopa indigesta em que fermentam bandidos disfarçados de políticos e de policiais, numa mistura condimentada por manipuladores da fé religiosa de milhões de pobres e mal instruídos.
Mesmo que o projeto político de Jerominho seja barrado na Justiça ou pelo seu partido, a ameaça continua.
Leniência da prefeitura com desordem prejudica a cidade – Editorial | O Globo
Calçadas repletas de moradores de rua e ambulantes por toda parte desgastam imagem do Rio
O Rio é uma cidade celebrada por suas belezas, mas admirá-las está cada vez mais difícil, tamanha a quantidade de interferências no cenário urbano. Independentemente do lugar onde se esteja, o que costuma saltar aos olhos é a desordem, como mostrou reportagem do GLOBO publicada ontem.
Não deveria ser assim numa cidade que tem vocação inequívoca para o turismo — aliás, mais do que isso, já que sua economia depende em boa parte dessa atividade para garantir a ocupação de hotéis, bares, restaurantes etc, o que significa gerar empregos e renda. Além disso, moradores pagam um Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) que sofreu escalada na administração do prefeito Marcelo Crivella, o que deveria levar à melhoria dos serviços. Mas a prefeitura não está em sintonia com cariocas e turistas.
Em meio ao abandono generalizado, pode parecer normal um morador de rua usar o chafariz da Praça Mahatma Gandhi, na Cinelândia, para escovar os dentes. Mas nada há de natural nisso. Não se vê cena semelhante em outras metrópoles. A população de rua é um problema que o Rio não consegue resolver, ou ao menos equacionar. Expõe a falta de uma política habitacional, mas também as falhas nos serviços de assistência da prefeitura para enfrentar a questão. É mais fácil deixar tudo como está.
Em Copacabana e no Leme, a população de rua constitui a principal queixa dos moradores. Na Avenida Atlântica, próximo à Princesa Isabel, um posto de gasolina desativado virou dormitório improvisado de um lado e estacionamento irregular do outro. Tudo isso em frente a uma das praias mais famosas do mundo.
A quantidade de ambulantes nas ruas também contribui para acentuar o clima de desordem urbana. “Estamos chamando o calçadão da orla de Copacabana de praça de alimentação, de tão lotado que está de camelôs”, ironiza o presidente da Sociedade Amigos de Copacabana, Horácio Magalhães. Não é só lá. Na Avenida Rio Branco, centro financeiro da capital, ambulantes ocupam as áreas públicas junto aos trilhos do VLT. Segundo comerciantes, essa situação de anomia tem papel importante na crise que afeta o setor.
Acrescente-se a isso praças e canteiros malconservados, esculturas e mobiliário urbano pichados, estacionamentos irregulares, e se tem um quadro em cores vivas da leniência da prefeitura com a desordem. Um caminho perigoso para uma cidade que tem na imagem um de seus patrimônios.
O desafio é reindustrializar – Editorial | O Estado de S. Paulo
Se quiser mesmo consertar a economia brasileira e reencontrar o caminho do firme crescimento, o governo terá de promover a reindustrialização do País. A produção industrial encolheu 1,1% em 2019, depois de dois anos de expansão. O parque industrial brasileiro ainda é um dos nove ou dez maiores do mundo, mas está enfraquecido, atrasado e sem poder de competição depois de uma longa crise iniciada bem antes da última recessão. Houve um tombo de 18% entre o ponto mais alto da série histórica, atingido no trimestre encerrado em maio de 2011, e os três meses finais do ano passado. Olhando de baixo para cima, tem-se uma noção mais clara do esforço necessário para retornar ao topo. O volume produzido terá de crescer 21,9% sobre a base do último fim de ano para chegar de volta ao pico histórico.
Finda a recessão, o produto industrial cresceu 2,5% em 2017 e 1% em 2018 e voltou a cair no primeiro ano de mandato do presidente Jair Bolsonaro. Só em março será conhecido o primeiro cálculo do Produto Interno Bruto (PIB) de 2019. As estimativas correntes têm apontado um crescimento entre 1,1% e 1,2%. O número oficial, de toda forma, refletirá o péssimo desempenho da indústria, já refletido na recuperação muito lenta do emprego, marcada pela informalidade e pela expansão de precárias ocupações por conta própria.
O desastre da mineração, sempre lembrado quando se comentam os números da indústria, explica apenas uma pequena parte do novo desastre. Houve queda na produção de bens de capital e bens intermediários e expansão de 1,1% na de bens de consumo. O exame mais detalhado mostra recuos em 16 dos 26 ramos de atividades cobertos pela pesquisa, em 40 dos 79 grupos e em 54,2% dos 805 produtos incluídos no levantamento regular.
Em todos os trimestres de 2019 o desempenho foi pior que o de um ano antes. Esse tipo de resultado ocorreu desde os três meses finais de 2018. Mas o novo governo nada fez, durante a maior parte de seu primeiro ano, para tentar pelo menos conter o declínio da indústria. Os primeiros estímulos só foram aplicados a partir de setembro, embora os números da produção e os dados do emprego fossem muito ruins.
Evitar mais um voo de galinha foi a justificativa repetida por muitos integrantes do Executivo, quando se tentou chamar sua atenção para o problema. Mas essa desculpa deixou de valer quando se tornou indisfarçável a necessidade urgente de algum incentivo. O acesso a recursos do Fundo de Garantia (FGTS), iniciado em setembro, acabou sendo prorrogado em novas condições.
Se as projeções do mercado estiverem certas, a produção industrial crescerá 2,21% em 2020 e 2,50% em cada um dos três anos seguintes. O resultado será um crescimento acumulado de 7,4% em 2020, 2021 e 2022, fim do atual mandato presidencial. No primeiro ano do mandato seguinte a indústria produzirá 2,50% a mais. Faltará quase metade do caminho para o retorno ao pico de 2011, se se tratar apenas de recompor o volume produzido.
Mas o problema é muito mais complicado. Além das perdas de produção, a indústria acumulou em muitos anos – pelo menos desde 2012 – um enorme atraso em termos de tecnologia, de inovação e, portanto, de competitividade. Isso é visível no comércio exterior. Em 2000 as vendas de manufaturados corresponderam a 59% do valor exportado. Em 2009 a proporção estava reduzida a 44%. A partir daí a participação foi sempre inferior a 40%, exceto em 2016, quando esse número foi registrado. Em 2019 a parcela dos manufaturados caiu para 35%, a menor taxa desde o ano 2000.
De vez em quando algum membro do governo fala de produtividade e competitividade, mas sem apresentar mais que vagas intenções e ideias. A expressão política industrial é evitada como blasfêmia. O discurso é geralmente um recitativo com tinturas de liberalismo econômico e nenhuma referência clara a planos, metas e instrumentos. Diante disso, até as modestas projeções de crescimento industrial conhecidas chegam a parecer otimistas.
Outra década perdida – Editorial | O Estado de S. Paulo
O decênio terminado no ano passado foi o pior para a economia brasileira desde o início do século passado. No período iniciado em 2010 e terminado em 2019, o crescimento anual médio do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro foi de apenas 1,39%. É significativamente menor do que a média anual de 1,75% do decênio iniciado em 1990.
“A década (sic) de 2010 foi a pior para o crescimento do PIB entre as 12 analisadas”, observa o autor do estudo, o economista Roberto Macedo, da Universidade de São Paulo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda no governo Fernando Henrique Cardoso. Macedo considera década o período iniciado com ano terminado em zero e encerrado com ano terminado em nove.
Quando colocadas num gráfico, como na reportagem publicada pelo Estado, as médias decenais de crescimento anual do PIB deixam nítido o péssimo desempenho da economia brasileira no período 2010-19. Em 10 dos 12 decênios avaliados no estudo de Macedo o crescimento médio anual foi igual ou superior a 3%. Em quatro (os iniciados em 1920, 1950, 1960 e 1970) o crescimento foi igual ou superior a 6% ao ano. Nesse longo período de 120 anos, o Brasil conseguiu superar as principais barreiras do subdesenvolvimento, chegou a impressionar o restante do mundo com a rapidez de expansão de sua economia, viu a renda per capita crescer celeremente, com a consequente redução dos índices de pobreza e de deficiência de alimentação. Decerto problemas sociais e econômicos, alguns agudos, persistem e continuam a desafiar o poder público e a exigir providências eficazes e responsáveis das autoridades.
A interrupção do ritmo expressivo de crescimento no último decênio resultou na piora de alguns importantes indicadores sociais, como nível de emprego e renda, no desânimo do setor produtivo, na retração dos investimentos e no aumento da desesperança de muitas famílias.
Há um ônus social que levará tempo para ser resgatado. “Essa estagnação prejudicou muito as gerações recentes”, observou o economista Roberto Macedo. “Percebi que nas gerações passadas havia muita ascensão social, isto é, o status social dos filhos superava o dos pais. Hoje, isso se inverteu, com os filhos tendo dificuldade de até mesmo manter o status social dos pais.”
O fracasso dos planos de estabilização insistentemente tentados pelo governo José Sarney na segunda metade dos anos 1980 não foi suficiente para demover o governo do presidente Fernando Collor, eleito em 1989 e empossado em março de 1990, de tentar um novo grande lance contra a inflação descontrolada. O malogro também do plano de Collor fez o PIB encolher 4,3% em 1990, o que puxou a média da década 1981-1990 para 1,31%. Por isso esse período é conhecido como a década perdida. O resultado médio dessa década é muito próximo do apurado para o decênio 2010-2019.
Os problemas dos últimos dez anos são a herança maldita deixada pelo governo da presidente Dilma Rousseff. Eleita em 2010 e reeleita em 2014, Dilma ficou na Presidência durante pouco mais de cinco anos. Tantos foram seus erros políticos e desmandos administrativo-financeiros que teve seu mandato cassado no dia 31 de agosto de 2016. O mandato foi concluído pelo vice-presidente eleito em sua chapa, Michel Temer.
Já se passaram mais de três anos desde o afastamento de Dilma, mas o Brasil ainda não se recuperou do desastre causado por sua política econômica, e que teve como pior momento a recessão que se iniciou no fim de 2014 e se estendeu até o início de 2017.
O pífio crescimento do PIB de 1,1% em 2017 e em 2018, e que deve ter se repetido em 2019 – e contribuiu de maneira decisiva para o mau desempenho entre 2010 e 2019 –, mostra como é difícil para o País superar as consequências da aventura lulopetista.
Há sinais animadores no horizonte, mas ainda há muito a consertar para estabelecer as bases para o crescimento mais rápido e consistente.
Coronavírus, a China e o mundo – Editorial | O Estado de S. Paulo
O Banco Popular da China (PBoC, o banco central do país) atribuiu a “fatores irracionais”, que incluíram um forte movimento de vendas provocado por um “efeito manada”, a queda de 7,72% do principal índice da bolsa de valores de Xangai na segunda-feira passada, depois do longo feriado do ano novo lunar chinês. O governo de Pequim, de sua parte, acusou o governo dos Estados Unidos de “espalhar pânico” por ter evacuado funcionários americanos de sua representação diplomática em Wuhan – centro da epidemia de coronavírus, que já matou mais de 300 pessoas e chegou a duas dezenas de países – e proibido a entrada de turistas chineses no país.
Há algum exagero nesse tipo de reação. Para tentar contê-lo, o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, disse que, apesar da declaração de emergência global por conta do coronavírus, não há razão para que os países tomem medidas “desnecessárias” que interfiram no fluxo internacional de pessoas e de bens. As decisões dos governos, recomendou, devem ser “consistentes e baseadas em evidências”.
Há evidências, e se acumulam a cada dia, de que a economia chinesa, em primeiro lugar, e a mundial, logo em seguida, sofrerão o impacto do avanço do coronavírus. Por ter no mercado chinês o principal destino de suas exportações, o Brasil será, de algum modo afetado por tudo o que acontecer na China.
A rápida decisão do banco central chinês de cortar as taxas de juros de operações de recompra reversa e ampliar a liquidez do sistema bancário por meio da injeção de 1,2 trilhão de yuans (o equivalente a US$ 173 bilhões) mostra que as autoridades de Pequim tentam, com os instrumentos disponíveis, conter o quanto antes o impacto do coronavírus sobre a economia e sobre a vida dos chineses. A construção, em dez dias, de um hospital com mil leitos em Wuhan para atender os infectados pelo vírus é, além da demonstração da capacidade operacional do governo chinês, a tentativa prática mais evidente das autoridades de tentar acalmar uma população que praticamente sumiu das ruas e das lojas.
Desde 31 de dezembro, quanto foi emitido o alerta sobre o vírus, as famílias que moram nas cidades afetadas designam apenas um de seus membros para fazer as compras indispensáveis. Parte das empresas que transformaram a China na maior potência exportadora do planeta interrompeu temporariamente suas atividades. Ainda não se sabe o tamanho da conta dessa paralisação para o PIB chinês. Mas uma parte da economia do país está sendo corroída. As autoridades chinesas estão revendo para baixo suas projeções para o crescimento do PIB neste ano – estima-se que, em 2019, o PIB chinês cresceu 6,1%, o pior resultado em 29 anos. Empresas privadas de consultoria já calculam uma expansão pouco superior a 5% em 2020.
Além da notória queda do consumo nas cidades afetadas, outros sinais vão se somando para conformar um quadro de desaceleração da atividade econômica na China. Há indicações de que a demanda por petróleo recuou cerca de 20% nos primeiros dias do ano. A maior refinaria da Ásia, a estatal Sinopec, está reduzindo suas operações em 12% neste mês, segundo a agência Reuters. Em janeiro, índices de atividade da indústria atingiram seu ponto mais baixo em cinco meses. As novas encomendas e a produção crescem bem mais devagar do que nos meses anteriores.
Para complicar, no domingo passado, as autoridades chinesas informaram a detecção de um surto de gripe aviária H5N1 na província de Hunan. Ações da maior exportadora brasileira de frangos tiveram alta imediata e expressiva.
Impactos mais duradouros e mais amplos da epidemia de coronavírus poderão ser sentidos pelo comércio global. A Organização Mundial do Comércio (OMC) poderá rever para baixo suas estimativas para 2020, disse seu diretor-geral, Roberto Azevêdo. Isso será ruim para a economia brasileira.
Juros do crédito não cedem, apesar da queda da Selic – Editorial | Valor Econômico
O arsenal de instrumentos para reduzir o custo do crédito é amplo, mas a resistência dos bancos parece igualmente grande
Tudo indica que o Copom vai novamente diminuir o juro básico na reunião desta semana, a primeira do ano. A estimativa predominante é que a Selic vai recuar dos atuais 4,5% ao ano para 4,25%. O novo corte dos juros vai renovar a pressão para o barateamento do custo do crédito, o que não aconteceu de modo significativo até agora, apesar da redução do custo de captação dos bancos e de diversas medidas tomadas pelo Banco Central (BC) com esse objetivo.
O balanço do crédito em 2019 mostrou, ao contrário, que os bancos até ampliaram os spreads praticados e não repassaram para os clientes toda a economia obtida com a queda da Selic. Enquanto o juro básico recuou de 6,5% para 4,5% ao longo de 2019, a taxa média do crédito passou de 23,2% em dezembro de 2018 para 23% em dezembro passado. O spread geral das taxas de juros das concessões de empréstimos situou-se em 18,4 ponto percentual, com elevação de 1,4 ponto no ano.
Em seu comunicado à imprensa, o BC destacou a redução do custo do crédito pessoal não consignado, do cheque especial e do cartão rotativo regular. Ainda assim, algumas dessas linhas estão em patamares estratosféricos na comparação com a taxa básica, apesar de o BC ter travado verdadeira guerra com os bancos para a redução dos seus juros.
Uma delas é a taxa do cheque especial, que caiu para 302,5% ao ano em dezembro, um recuo de 10,1 pontos percentuais em relação à cobrada em dezembro de 2018. Depois de ver que as seguidas reclamações a respeito das taxas do cheque especial não produziam reação do lado dos bancos, o BC impôs, no começo deste ano, um teto de 8% ao mês para os juros dessa linha, o que levará a taxa anual para cerca de 150%, metade da praticada atualmente. Como compensação para o que foi chamado de “tabelamento dos juros”, os bancos foram autorizados a cobrar tarifa dos clientes que quiserem ter a linha de crédito disponível. A maioria das instituições financeiras, porém, abriu mão da tarifa extra.
Outro campeão em juros altos é o crédito rotativo do cartão, que chegou a 318,9% ao ano em dezembro, bem acima dos 284,4% de igual mês de 2018. Desde abril de 2017, o BC proíbe que o cliente fique mais de 30 dias nessa linha, determinando que os bancos ofereçam alternativa de parcelamento após esse prazo. Apesar de conhecerem como ninguém o cliente do cartão de crédito, os bancos sempre alegaram não saber quando serão pagos para justificar o juro alto do rotativo cartão.
Uma das justificativas dos bancos para manter spreads amplos é a necessidade de se prevenir contra eventuais calotes. No entanto, a inadimplência média ficou em 1,9% nos últimos três meses do ano, ligeiramente acima do 1,7% de dezembro de 2018. Em resposta a essa velha reclamação, entrou em vigor neste ano o cadastro positivo, que ajudará as instituições financeiras a fazerem uma melhor avaliação do risco de calote de um cliente. No entanto, o cadastro começou a funcionar apenas neste mês e ainda coleta apenas informações do sistema bancário. O cadastro positivo existe na verdade desde 2011, mas só agora entrou em prática dada a resistência dos bancos em compartilhar informações, a falta de esclarecimento de grupos de consumidores e algumas dificuldades legais.
A experiência com o cadastro positivo, que levou quase dez anos para começar a vigorar, embora ainda nem produza resultados, não é um bom prenúncio para o open banking, outra inovação com a qual se conta para aumentar a concorrência entre os bancos e baratear o custo do crédito. O projeto do open banking ficou em consulta pública até sexta-feira e, nem bem as propostas começaram a ser avaliadas, já há bancos e fintechs reclamando que o cronograma de implementação proposto é apertado. A intenção é que esteja implantado até o fim de 2021. O desafio seria técnico, segundo fontes ouvidas pelo Valor (31/1), relacionado a questões de governança do modelo de custo das operações e a padronização da tecnologia pela qual se faz a troca de informações (APIs).
Recentemente o Banco Central também informou cogitar a possibilidade de se usar imóvel como garantia para se tomar recursos mais baratos, o que passaria pela criação de uma central de garantias imobiliárias (Valor 30/1). Uma garantia sólida superaria qualquer argumento de subir os juros para cobrir o risco de inadimplência. O arsenal de instrumentos para reduzir o custo do crédito é amplo, mas a resistência dos bancos parece igualmente grande.
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