• A necessidade da utopia – Editorial | O Estado de S. Paulo
A utopia bolsonariana não é a da democracia plena, mas a promessa de um mundo em que tudo se resolve pela vontade do líder
Há pouco mais de um século, em janeiro de 1919, o Estado publicou, neste espaço, um editorial em que defendia mais uma candidatura presidencial de Rui Barbosa, uma forma de protestar contra os arranjos oligárquicos e militaristas que degradavam a então jovem democracia republicana. Embora fosse político experiente, Rui Barbosa era, na ocasião, o que hoje se convencionou chamar de outsider, por ter sido o primeiro a fazer campanha eleitoral dirigindo-se aos eleitores, algo raro numa República que, embora nominalmente democrática, definia os presidentes nos salões do poder e depois os instalava no governo por meio do voto de cabresto e de fraudes nas listas de votação. Rui Barbosa perdeu a eleição para Epitácio Pessoa, que passou toda a campanha em Paris.
O editorial, ao cobrar que o voto deveria ser a expressão da vontade popular, e não o instrumento de um poder antidemocrático do qual as elites se serviam, salientava que “segrega-se da regularidade das soluções tradicionais o país em que os governos incorrigíveis teimam no erro e no crime, e em que povos, cansados de deitar nas urnas votos inúteis, desistem do direito de votar”. E mais: “Na nossa desgraçada República os governos, quase sem exceção, e o povo, quase em unanimidade, de há muito se haviam fixado neste sistema anormal de se viver - os governos contando com a covardia eterna do povo, e este simplesmente resignado”.
Passados cem anos, o País parece ainda prisioneiro de arranjo semelhante - mas o outsider, quanta diferença! Em vez de um Rui Barbosa, que no palanque fez os brasileiros verem a importância do exercício da cidadania e das políticas sociais, temos um Jair Bolsonaro, que representa os inconformados com a democracia.
Entre a campanha de 1919 e a campanha de 2019, a degringolada é evidente. Com raros intervalos nesse período, em que tivemos lideranças lúcidas e conscientes de seu papel no comando político do Brasil, a trajetória, de Rui Barbosa a Jair Bolsonaro, é a de um País em que a República parece ser quase um mal-entendido.
A utopia, essência da política e tão bem traduzida nas palavras de um Rui Barbosa, transforma-se em farsa quando enunciada por um Jair Bolsonaro. A utopia bolsonariana não é a da democracia plena, a da realização do potencial do País e a do aperfeiçoamento nacional, fruto de amplo debate democrático; é, ao contrário, a promessa de um mundo em que tudo se resolve pela vontade do líder, que se confunde com a do “povo”.
A pergunta, aludindo ao editorial de um século atrás, que fez referência aos governos que contam “com a covardia eterna do povo”, é: onde estão os democratas do Brasil? O que justifica a apatia dos amantes da liberdade ante tão flagrante assalto à República? Para encurtar: como fomos capazes de trocar Rui Barbosa por Jair Bolsonaro?
É preciso reavivar a utopia democrática. A política não pode se resumir à necedade bolsonarista ou à malícia lulopetista, ou ainda aos titubeios tucanos, ou à caradura do centrão. Em todos e em cada um desses casos, salvo honrosas exceções, prevalece o interesse paroquial e imediato, cuja fatura será paga, como sempre, pelas gerações seguintes. Mas nem sempre foi assim. Há exemplos na história - Rui Barbosa é apenas um deles - de líderes que procuraram instilar na população o sentimento de coletividade, do pertencimento verdadeiramente patriótico, e que olhavam não apenas para a resolução dos problemas do presente, mas para a semeadura do futuro.
Não é possível imaginar que tão poderosa mensagem - a da utopia de um amanhã melhor, construído não por um demagogo, mas pela vontade concertada de todos os cidadãos - não seja capaz de emocionar os brasileiros e fazê-los recobrar a esperança na democracia. Para que essa mensagem prevaleça, no entanto, é preciso que a elite nacional se apresente e valorize a cultura em vez da orgulhosa ignorância; a ciência em vez do obscurantismo militante; a articulação de consensos em vez da truculência política.
A democracia é um regime exigente porque demanda que cada um dos cidadãos assuma sua responsabilidade na construção da Nação. É o que pregava Rui Barbosa - que, mesmo derrotado, jamais deixou de acreditar em sua utopia.
• O esvaziamento dos partidos – Editorial | O Estado de S. Paulo
Perda de 1 milhão de filiados em dois anos é sintoma de um sistema partidário disfuncional
Em dois anos, os partidos políticos perderam 1 milhão de filiados, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Em março de 2018, as legendas tinham, ao todo, 16,6 milhões de filiados. Em março deste ano, eram 15,6 milhões de pessoas registradas em algum dos 32 partidos em funcionamento no País. Tal esvaziamento é mais um sintoma da disfuncionalidade do atual sistema partidário.
A significativa queda do número de filiados evidencia a dificuldade que as legendas têm para atrair e reter filiados. Nos últimos dois anos, em números absolutos, o PMDB foi o partido que mais perdeu filiados. Foram menos 268,7 mil registros no período. Mesmo com a queda, a sigla continua tendo o maior número de filiados entre todos os partidos. O PMDB tem hoje 2,1 milhões de filiados.
O segundo partido que mais perdeu filiados foi o PP (165,4 mil), seguido de PDT (131,4 mil), PTB (126,1 mil), DEM (120,7 mil), PT (110,9 mil) e PSDB (92,3 mil). Em número de filiados, o PT continua sendo o segundo maior partido (1,47 milhão), seguido de PSDB (1,36 milhão) e PP (1,27 milhão).
Nos últimos dois anos, o PSL, partido pelo qual o presidente Jair Bolsonaro foi eleito em 2018, teve um saldo positivo de filiados. Foram 116,7 mil membros a mais desde março de 2018, quando o então deputado se filiou ao partido presidido por Luciano Bivar (PE). No entanto, desde que o presidente Jair Bolsonaro deixou a sigla e anunciou a criação de um partido próprio, o Aliança pelo Brasil, o número de filiados ao PSL caiu. Hoje, o partido de Bivar tem 344,3 mil membros. Em outubro do ano passado, eram 349,2 mil.
Essa trajetória do número de filiados ao PSL mostra outra fragilidade dos partidos, muito além da questão quantitativa de filiados. Esse vai e vem de filiados ao PSL, que ocorre também em outros partidos, mostra que a adesão à legenda não representa compromisso com um conteúdo programático do partido, inexistente na maioria das vezes. É mero seguimento temporário, baseado no apoio igualmente temporário a um político. Ou seja, além da diminuição do número de filiados, constata-se um esvaziamento ideológico das legendas.
O quadro é dramático. Partidos não têm identidade programática, e filiação e desfiliação a uma legenda são frequentemente mera transferência de apoio a um candidato, sem indicar qualquer compromisso com uma causa partidária definida. Tal movimentação é estimulada pelo enorme número de partidos existentes – atualmente são 32 – e pelos muitos outros em formação. Segundo a Justiça Eleitoral, existem hoje 78 partidos em formação.
Com esse grande interesse por criar siglas, fica claro que ter uma legenda é um grande negócio. Recentemente, o Estado revelou que, em 2018, os partidos repassaram R$ 144 milhões a pessoas físicas, e R$ 12,4 milhões foram pagos a responsáveis administrativos dos diretórios nacionais ou estaduais das siglas.
Além da redução do número de filiados, há outro dado impressionante a respeito do baixo grau de comprometimento com as siglas. Realizado em 2017, levantamento do Movimento Transparência Partidária identificou que, de cada 10 mil filiados, apenas 34 faziam contribuições financeiras a uma legenda.
São muitos os sinais de que o sistema partidário é disfuncional. E tal disfuncionalidade não é obra do acaso. Há vários estímulos para tal cenário, como é o caso do financiamento público das legendas por meio do Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos (Fundo Partidário) e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (Fundo Eleitoral). Os partidos são entes privados e não há motivo para que o dinheiro do contribuinte financie suas atividades. Ao receber dinheiro público, as legendas ficam desobrigadas de ter identidade programática e filiados comprometidos ou de buscar doações.
Numa democracia representativa, é essencial a existência de partidos políticos que funcionem, representando de fato seus filiados e promovendo os necessários consensos e maiorias. Sempre adiada, a reforma do sistema político-eleitoral é da máxima importância.
• Um mercado arrasado – Editorial | O Estado de S. Paulo
Herança deste período de pandemia para o mercado de trabalho será dolorosa
A destruição de postos de trabalho e a corrosão da renda dos que conseguirem manter alguma ocupação remunerada durante a pandemia do novo coronavírus serão as mais devastadoras desde que algumas das principais instituições de pesquisa elaboram estatísticas confiáveis sobre o mercado de trabalho. E a herança desse período será também dolorosa: a superação da crise do emprego e da renda será lenta.
A taxa de desocupação, por exemplo, que vinha caindo desde o fim do ano passado, tendo ficado em 11,6% no trimestre móvel encerrado em fevereiro, poderá chegar a 17,8% ao longo do ano, de acordo com o Boletim Macro de abril divulgado pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre-FGV). Quanto à renda, até o primeiro trimestre deste ano se projetava uma recuperação de 1% em relação a 2019. A pandemia alterou completamente a tendência. Na média do ano, a queda real poderá alcançar 8,58% na comparação com 2019. Em valores, a renda efetiva média fechará o ano em R$ 2.206 por mês, ante R$ 2.413 em 2019.
Além de corroer emprego e renda, a pandemia da covid-19 está corroendo as informações básicas sobre o mercado de trabalho que poderiam estar oferecendo balizas mais seguras e confiáveis para a elaboração de políticas públicas destinadas a amparar prioritariamente os mais desprotegidos.
O Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) da Secretaria do Trabalho do Ministério da Economia, normalmente divulgado na terceira semana de cada mês com dados precisos sobre o mercado formal, isto é, com os números de trabalhadores com registro em carteira, não era divulgado desde janeiro por causa de mudanças na sua metodologia. A crise sanitária que começou a se agravar em março ampliou enormemente o problema, pois empresas e escritórios de contabilidade responsáveis pelo envio de dados ao governo reduziram drasticamente suas atividades, gerando o risco de subnotificação.
A realização da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) Contínua do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), bem mais ampla, pois inclui também o mercado informal e registra os casos de subutilização da mão de obra, enfrenta problemas típicos desse período. Durante a pandemia, as visitas domiciliares não podem ser realizadas. Sua realização por telefone trará imperfeições e distorções.
Estudos e projeções mostram um quadro dramático. A combinação de redução do número de empregados e de queda da renda efetiva média terá um impacto notável sobre a massa de rendimentos efetivos do trabalho. A redução prevista para o ano é de 14,4%, segundo o boletim do Ibre-FGV. O número final de 2020 ficará 3,2% abaixo do menor nível registrado desde o início da série, em 2012.
A perda não será homogênea. Situações pessoais, condições de trabalho, posição da empresa empregadora no mercado no período de recuperação - que, embora não se saiba quando, certamente virá - são fatores que naturalmente diferenciam as condições de alguns trabalhadores em relação às de outros. Mas as políticas públicas também podem gerar consequências não homogêneas.
A Política de Proteção de Empregos, por exemplo, citada pelo estudo, está voltada para o mercado formal, pois permite a possibilidade de suspensão de contratos de trabalho ou a redução dos salários, com a correspondente redução de jornada. Prevê-se que até 70% dos trabalhadores de empresas privadas estejam incluídos nessa política nos próximos meses. Isso pode chegar a até 30 milhões de trabalhadores, nas estimativas do governo. Proporcionalmente, salários mais baixos estão mais protegidos do que os mais altos.
O mercado de trabalho informal, cujas atividades são, em tese, mais resilientes que o formal às medidas de isolamento social - pois não estão sujeitas a controle mais rigoroso pelo poder público -, é afetado diretamente pela redução da circulação de pessoas e não tem políticas de compensação de renda tão eficazes como as destinadas ao mercado formal.
• Apostas de Bolsonaro – Editorial | Folha de S. Paulo
Presidente põe sua sobrevivência acima dos interesses do país em meio a pandemia
Incapaz de governar, Jair Bolsonaro se movimentou freneticamente nas últimas semanas para tentar romper o isolamento político e evitar que seu mandato seja abreviado. Tudo que conseguiu até aqui foi aumentar o fosso ao seu redor.
Ao ensaiar uma aproximação com partidos do chamado centrão, oferecendo cargos em troca de apoio no Congresso, desagradou os seguidores que ainda acreditavam em sua disposição de manter distância da política tradicional.
Logo depois, quando se juntou ao comício golpista realizado em frente ao quartel-general do Exército em Brasília, incitou fanáticos que pregam contra as instituições democráticas e constrangeu a ala militar de seu governo, que se mantém fiel à Constituição.
Ao permitir o anúncio prematuro de um plano de recuperação da economia após a recessão causada pelo coronavírus, o presidente minou a credibilidade de seu ministro da Economia, Paulo Guedes, que torce o nariz para a ideia.
Por fim, após fornecer a Sergio Moro os motivos que ele usou para justificar seu rompimento com o governo, Bolsonaro viu o ex-juiz da Operação Lava Jato se transformar em seu adversário e lhe imputar crimes de responsabilidade.
No caótico pronunciamento em que rebateu as acusações, o chefe do Executivo sugeriu não ver nada errado em suas interações com a Polícia Federal —oferecendo combustível para investigações que em breve terão início.
Indiferente aos perigos criados pela estrepitosa separação, que tende a alijar parte relevante de seu apoio na opinião pública, o presidente tratou o ministro mais popular de sua administração como mentiroso, desleal e oportunista.
Bolsonaro aprecia o confronto e a confusão, mas nunca fez aposta tão arriscada. Que o faça quando o país se defronta com uma epidemia devastadora e seu impacto brutal na economia é prova suficiente da irresponsabilidade com que exerce suas funções.
Ao tumultuar o ambiente político, seu comportamento suga energias que deveriam estar concentradas no combate à calamidade, como se fosse tolerável subordinar os interesses do país ao instinto de sobrevivência do mandatário.
Cabe ao Supremo Tribunal Federal e ao Congresso autorizar as investigações necessárias para esclarecer as acusações feitas ao presidente e aplicar as medidas que suas conclusões exigirem. Cabe à sociedade confiar na capacidade de suas instituições de exercer esse papel com o devido rigor.
Às autoridades na linha de frente do combate ao coronavírus, que Bolsonaro sabota sistematicamente, cabe persistir nos esforços —a melhor resposta que podem oferecer aos desatinos do mandatário.
• Ajuda condicionada – Editorial | Folha de S. Paulo
Socorro federal a estados deve ao menos exigir suspensão de reajustes salariais
Estudo recém-divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) apresenta dados alarmantes a respeito de políticas de pessoal perdulárias conduzidas pelos governos estaduais.
Com base em estatísticas de 24 estados e do Distrito Federal, o trabalho estima que as remunerações médias dos servidores desses entes federativos cresceram 93% acima da inflação entre 2004 e 2018 —e, em alguns casos, os reajustes prosseguiram no período de crise orçamentária a partir de 2014.
Tais informações precisam ser consideradas na formulação de planos de socorro financeiro em debate no Congresso e no Executivo federal. Se a ajuda da União é sem dúvida imprescindível neste momento de calamidade, cumpre limitá-la e condicioná-la.
Nisso falha o texto já aprovado pela Câmara dos Deputados, que o Senado tem o dever de aprimorar.
A versão atual prevê compensação total a governos estaduais e municipais para a queda da arrecadação de ICMS e ISS, por seis meses, ao custo estimado de R$ 93 bilhões. Tal valor não é fixo, contudo, e pode restar ao final uma conta bem maior para a União.
A garantia irrestrita permite que governadores e prefeitos sejam lenientes e concedam incentivos tributários sem arcar com as consequências. A definição prévia de um montante, além de um prazo menor, seria mais apropriada.
Mais importante, é preciso exigir contrapartidas. Não há contradição entre disponibilizar o necessário ao combate à pandemia e aperfeiçoar a gestão orçamentária. Mais recursos para saneamento, saúde, educação e segurança também salvarão vidas a longo prazo.
O ideal seria avançar em reformas que permitam uma melhor administração da folha de pagamento, abrindo a possibilidade de redução de jornada e salários do funcionalismo, além de reformulação das carreiras e de salários de entrada. O exemplo do Rio Grande do Sul, que conseguiu avançar nessa agenda, merece atenção.
Não parece viável uma mudança dessa envergadura agora. Mas no mínimo, como se mostra provável, o Senado deverá proibir aumento de salários e proventos por dois anos. Tal vedação deve abranger inclusive as gratificações e progressões automáticas, que vão inflando a folha de forma vegetativa.
Trata-se de providência básica para que o amparo federal não termine por encorajar demandas das poderosas corporações estatais.
• Bolsonaro tenta aliança de alto risco com Centrão – Editorial | O Globo
Presidente escolhe se aproximar de líderes partidários que estão em investigações sobre corrupção
Jair Bolsonaro é vítima dos próprios erros e contradições. Tendo passado 28 anos no Legislativo e transitado por nove partidos, elegeu-se à Presidência com o discurso da antipolítica e a promessa de realizar um governo à equidistância do Parlamento e dos canais institucionais disponíveis no modelo da democracia liberal.
Em 16 meses de governo, a completar nesta semana, Bolsonaro apostou no conflito permanente com o Congresso e o Judiciário. E transformou a Presidência naquilo que, hoje, é reconhecido como o principal vetor de instabilidades na República, depois da pandemia do novo coronavírus.
Nesse período mudou 36% do ministério, reflexo direto da conversão do Palácio do Planalto em usina de crises. As duas últimas aconteceram no intervalo de apenas oito dias, exclusivamente por sua iniciativa. Resultaram nas demissões dos ministros Luiz Henrique Mandetta, da Saúde, e de Sergio Moro, da Justiça e Segurança Pública.
Nas mudanças na Saúde, na Justiça e Segurança Pública, em meio a uma pandemia de consequências sem precedentes para 212 milhões de brasileiros, as motivações por ele confessadas foram todas de natureza pessoal. Ou seja, não houve uma “causa” pública, com lastro nas boas práticas administrativas, como prevê a Constituição que todo presidente jura defender ao tomar posse.
Bolsonaro, agora, tenta uma guinada política. Depois de se confinar na retórica extremista da antipolítica, e se tornar caso raro de presidente sem partido e sem base minimamente relevante no Congresso, negocia a construção de uma base parlamentar, franqueando o governo a lideranças políticas notórias pela administração de redes clientelistas.
É legítimo, mas suas escolhas são passíveis de questionamento. A começar pela preferência pela aliança com um grupo de líderes partidários onde quase todos estiveram ou ainda estão no centro de investigações sobre corrupção. Foram beneficiários do mensalão e dos desvios nos contratos da Petrobras nos governos de Lula e Dilma Rousseff.
Trata-se de um conjunto de partidos cujo objetivo é a garantia de vantagens governamentais, via cargos e privilégios orçamentários, para manutenção das respectivas redes patrimoniais e clientelistas.
O prognóstico sobre alianças com esse núcleo de partidos, conhecido como Centrão, é o de que Bolsonaro tende a cair nos braços do fisiologismo e clientelismo, que ele diz condenar. Mais ainda agora com receio de um impedimento pela sucessão de possíveis delitos de que foi acusado pelo ex-ministro e juiz Sergio Moro.
É filme visto e revisto com Fernando Collor, Dilma Rousseff e Michel Temer, cujo final é bem conhecido: governo paralisado, Congresso interditado na agenda das reformas — cruciais ao pós-pandemia —, e com sequelas que tendem a agravar um ciclo de dificuldades econômicas que já perdura por uma década.
• A estabilidade da economia está em jogo na crise do presidente – Editorial | O Globo
A depender das concessões de Bolsonaro para sobreviver, o país voltará a viver a história de sempre
Somam-se às avarias políticas sofridas pelo presidente Bolsonaro com a saída de Sergio Moro do seu ministério os danos que podem ocorrer na economia. Mas se as primeiras recairão apenas sobre o presidente, família e grupo, equívocos cometidos na política econômica, determinados, por exemplo, pela busca de apoio no Congresso por um Bolsonaro enfraquecido, desabarão sobre a população, principalmente aparcela mais pobre, esmagada pela recessão que se inicia em decorrência da crise do coronavírus. Mas ninguém escapa do descontrole econômico.
Em condições normais, o governo estaria preparando um plano pós-Covid-19, de que constaria a retomada de reformas necessárias coma finalidade de darem as condições de se retornar ao final do ano passado, quando alguns indicadores apontavam para a possibilidade de uma tendência de retomada do crescimento ganhar tração.
A agenda já existe, mas foi paralisada pelo crise do coronavírus: PEC Emergencial, para conter o crescimento de gastos públicos obrigatórios; reforma administrativa, visando a dar eficiência à máquina burocrática; reforma tributária. De fato não havia sentido tocar esta pauta quando se tratava, e ainda se trata, de abrir o Tesouro para que dinheiro público evite uma depressão econômica, uma tragédia social e um grande desastre na saúde. A contabilização dessas despesas extraordinárias no “Orçamento de Guerra” ajudará a gestão da volta à normalidade, por separar as despesas, com obediência ao teto constitucional de gastos, que impede seu crescimento acima da inflação. Criado por proposta de emenda constitucional no governo Temer em 2016, este limite serve de freio à tendência atávica de elevação das despesas públicas.
O Brasil deverá sair da crise do coronavírus com uma dívida pública na faixa dos 90% do PIB, um aumento de cerca de 15 pontos percentuais em relação ao ano passado. Um endividamento muito elevado. Já era o maior no bloco das nações emergentes. Vai ser necessário continuar a conter pressões populistas por mais gastos. Será possível, com os arranjos políticos de Bolsonaro no Congresso para sobreviver?
Outra ameaça de idêntica característica—mais despesa s—é o “Plano Pró-Brasil ”, nascido no grupo de generais do governo. É o plano de sempre, de vários governos, criado para retomar ou acelerar o crescimento. No passado, já se chamou PND (ditadura militar) e PAC (PT/ Lula e Dilma), entre outros nomes. Ma sé o mesmo. O Estado banca investimentos executados pela iniciativa privada, vem um ciclo de euforia seguida por inflação, baixo crescimento e recessão. É o que está em jogo na crise política do governo Bolsonaro.
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