- Folha de S. Paulo
É fácil saber contra quem panelas batem e hashtags sobem, difícil é coordenar protestos
Cloroquinistas desfilaram de carro, e AI-cinquistas aglomeraram-se à roda do presidente, que tossia. É imponderável se sobreviverão à epidemia e ao desgoverno Bolsonaro, mas é certo que se creem invulneráveis ao vírus e às leis. O primeiro tem sido mais eficaz que as segundas em enquadrá-los.
O inusitado é duplo: são manifestações de rua em tempo de confinamento e usam técnica democrática contra a democracia.
Intriga pouco a sintonia entre AI-cinquistas e seu eleito. Discursos e ações de Bolsonaro ao longo de suas carreiras, a exitosa de político e a gorada de militar, testemunham, cristalinos, a devoção por ideias, líderes e métodos da ditadura. Quem votou nele concordou ou encheu os ouvidos de cera. O presidente horroriza, mas não surpreende.
Intrigante é a ausência de manifestação concertada dos contrários. O sentimento antigoverno de cerca de metade dos brasileiros não gerou grandes protestos de rua antes da Covid-19.
Os organizadores habituais de protestos nos últimos anos são de três campos, que ora ocupam a rua sozinhos, ora em pares e, excepcionalmente (em 2013), em trio. O autonomista, de movimentos sociais recentes em torno de identidades sexuais, liberação de costumes e direitos sociais, tem pouca representatividade, com predomínio de ativistas saídos de um estrato da elite social —jovem, branco, cosmopolita, altamente educado. É antibolsonarista, mas carece de capilaridade.
Quem é representativo e sempre levou gente à rua é a esquerda socialista, campo de muitos movimentos em torno de direitos do trabalho e da redistribuição. Anda, porém, em crise. Durante os governos petistas, vários líderes seus viraram formuladores ou administradores de políticas. Tanta gestão secou o ímpeto de mobilização.
Pós-Dilma, veio um duplo baque. Uns foram atrás de emprego fora da política. Outros viram-se penalizados financeiramente, com a mudança da legislação sindical. Esse campo, então, tem as razões para contestar o governo, mas carece dos meios para orquestrar grandes eventos.
O terceiro campo é colcha de muitos retalhos antipetistas: movimentos de defesa da propriedade, por segurança, redução da intervenção do Estado na economia e na vida privada, costumes tradicionais, combate à corrupção. Aqui a equação é inversa: abundam recursos, mas há menos motivos.
Sua facção liberal não saiu à rua por estar de acordo com a condução de economia. A ala conservadora viu-se atendida pelo foco moral de Damares e similares. Já a patota autoritária anda feliz da vida. São os AI-cinquistas da carreata de domingo passado. Sectários de Bolsonaro, aferram-se a mesmas crenças e métodos.
Não são esses os janeleiros. É fácil saber contra quem as panelas batem e as hashtags sobem, mas é difícil coordenar o protesto. Até aqui, líderes socialistas e autonomistas não chamaram a si o serviço.
Talvez porque quem também paneleia agora são os que panelaram contra Dilma. Arrepiados com o trote autoritário, tiraram de novo o inox do armário. Porém, lideranças liberais e conservadoras, que poderiam coordená-los, embora imersos nas panelas financeira e midiática, não fritaram Bolsonaro com o fogo alto que acenderam no “tchau, querida”.
E o farão? Parte dos líderes de movimentos liberais e conservadores são empresários ou com eles se conectam. E não estão sendo empurrados por essa sua base. Sondagem Datafolha aferiu que 65% dos empresários seguiam vendo no presidente um líder no começo do mês. No pós-Mandetta, escalaram a 70%. O andar de cima demora a cansar de Bolsonaro.
Assim, falta uma peça do quebra-cabeças dos bem sucedidos impeachments de Collor e Dilma: apoio amplo do empresariado. Pode ser que com a queda de Moro e o esvaziamento de Guedes o vento mude.
O mexe-mexe no governo pode encaixar a outra peça, o laço entre mobilização social e sistema político. Até aqui a frente de políticos abertamente contra Bolsonaro era de esquerda, o que limitava sua penetração social. Mesmo sua capilaridade nos movimentos autonomistas e socialistas era relativa, já que os primeiros desconfiam de instituições e os demais se dividiam entre seus pequenos partidos e o PT. Mas agora o PT se candidatou a liderá-los, ao abraçar o impeachment.
Contudo, a esquerda sozinha não fará verão. Quando o longo inverno do isolamento acabar, quem, deste lado, quiser lotar a rua contra o presidente vai ter que engolir o “eu avisei”, para persuadir líderes liberais e conservadores. Estes últimos, por sua vez, terão de engolir sapos —com barba ou sem— se quiserem salvar o Estado de Direito. Aliança abstrusa, mas, nestes tempos, o inverossímil adquiriu plausibilidade. O 1º de Maio será um ensaio dessa concertação, da CUT a Maia, de FHC a Lula.
Isso, claro, se até lá sobrevivermos à pandemia, como indivíduos e como democracia.
*Angela Alonso, professora de sociologia da USP e pesquisadora sênior do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.
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