- O Globo
Brasil do bem torce pela imperiosa recuperação de Aldir Blanc
Spoiler: o texto não trata dos loucos de Brasília.
Dias atrás a filha Isabel fez saber aos amigos que seu pai, essa centrífuga multitalento chamada Aldir Blanc, estava internado em estado grave num hospital do Rio, com Covid-19. Desde então, um eclético Brasil do bem torce pela imperiosa recuperação desse músico e pensador que ensinou o país a cantar “O bêbado e a equilibrista”.
Toda contribuição extemporânea para fazer Aldir relembrar tempos melhores é válida. Então aqui vai o relato de uma reunião impromptu de quase 30 anos atrás, ocorrida em seu apartamento da Rua Garibaldi, no bairro carioca da Tijuca, com elenco formidável e sem campainha funcionando. Além do anfitrião involuntário, participaram, entre outros, o roteirista mineiro Alcione Araújo, o diretor teatral Aderbal Freire-Filho, o também ator Dudu Sandroni, e, último a chegar com a assessora Carla Rodrigues, Betinho, a locomotiva da convocatória.
A indignação do país naquele final de 1993 não tinha mais o colorido descompromissado dos caras-pintadas da era Collor. Era uma nação à procura de si mesma. Unânime apenas em torno da figura franzina porém poderosa de Betinho (Herbert José de Souza), que se tornara apessoa mais admirada do Brasil por ter idealizado e materializado o impossível — uma bem-sucedida Campanha Nacional Contra a Fome.
Naquela reunião de outubro de 1993 Betinho pretendia formatar mais um de seus projetos urgentes urgentíssimos: a organização de um “Auto de Natal” capaz de sacudir o Rio de Janeiro e contaminar o resto do país. O texto da obra seria reproduzido sob forma de folheto e distribuído em todos os estados para ser encenado com coloridos, sotaques e recursos regionais. O roteiro original ficaria a cargo de Alcione, Aderbal cuidaria da encenação, a música só poderia ser de Aldir Blanc, e Dudu Sandroni garantiria a viabilidade da coisa. A partir do título — “Auto de Natal” — era começar do zero.
Betinho iniciou os trabalhos contando que chegou a telefonar para Chico Buarque pedindo que escrevesse a obra, mas Chico estava atolado até a sobrancelha na finalização do disco “Paratodos”. “Desenvolvi a teoria de que você só chama o Chico em caso de catástrofe — guerra mundial, falência do Rio etc.”, explicou.
Seguiu-se então um livre pensar maravilhosamente desvairado, no qual o local da encenação ora oscilava entre o Teatro Municipal e o Maracanã, ora migrava para o Sambódromo. “Poderia ser em forma de samba, que é a ópera brasileira, um auto de Natal em forma de desfile, com alas variadas...”, animou-se Aderbal. Alcione, por seu lado, levantou a ideia de cada escola de samba encenar uma etapa do nascimento de Cristo. Alguém mais sugeriu um cenário ainda fresco na memória carioca, pela infâmia: apresentar o auto na Candelária, palco da chacina de seis meninos de rua e dois adultos praticada por policiais em julho 1993.
Quem menos falava era Aldir, preocupado com a praticidade de tudo aquilo e por estar capenga da perna esquerda devido ao acidente de carro que triturara seu fêmur. Insistiu muito para que a música tivesse pelo menos uma base harmônica, uma levada fácil de ser exportada para outros estados.
Depois de decretar que aquilo estava virando o “Auto da loucura” — “o Dudu é o mais normal, o Aldir é um louco, Alcione é outro, e Aderbal já tem prontuário”—, Betinho conseguiu extrair o desenho final que acabou se tornando realidade: um mesão armado na Avenida Rio Branco mantendo a ideia da Ceia, com patrocínio da Brahma, Antarctica, ou quem mais quisesse. “A Rio Branco é nossa avenida cívica, liga a Candelária à Cinelândia”, explicou, imaginando “um festão dançante, compartilhado. Quem tem, dá. Quem não tem, recebe”.
Aldir afirmou que não se oporia se Ricardo Amaral quisesse trazer caviar. E acrescentou: “Se o mesão ficar cheio, vamos saber que Brasil é este: vai ser tudo roubado ou compartilhado?”
A noitada foi longa no apartamento do músico, como tantas outras na vida daqueles brasileiros. Aldir havia acabado de se tornar avô de um casal de gêmeos, e os dois berços ainda reinavam na sala, entre uma máquina de costura Elgin e uma mesa de pingue-pongue transformada em tábua de passar roupa. Jornais empilhados, discos de 33 rotações, um exemplar de “Casseta & Planeta” com fotomontagem do presidente Itamar Franco de baby-doll, “Lúcia McCartney”, de Rubem Fonseca, aberto numa poltrona, um par de violões, uma máquina de fax... outros tempos.
Fique bom logo, Aldir Blanc!
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