- Valor Econômico
Excesso de mercado pode gerar efeitos severos sobre o tecido social. Nessa hora, o Estado tem de ser melhor e não pior que o mercado
Recentemente, o “The New York Times” divulgou matéria tratando de tema que vem recebendo atenção também no Brasil: a venda de produtos de higiene em tempos de coronavírus. Alguns países, como os Estados Unidos, divulgaram medidas de acompanhamento e punição por aumento de preços de materiais como álcool-gel, luvas e máscaras. Com receio de sanções, plataformas como Amazon e Bay passaram a desativar contas de ofertantes que estavam praticando preços maiores que em períodos anteriores. O primeiro movimento do tipo foi visto no Brasil quando a OAB/CE solicitou que o governo federal congele os preços de produtos.
Medidas assim parecem uma solução fácil, mas na verdade não mitigam e muitas vezes até agravam o problema. Em uma economia de mercado, o padrão utilizado para lidar com a alocação de um bem escasso é o preço. O critério é simples: adquire o bem quem estiver disposto a pagar mais. Evidentemente, em uma crise de saúde de tamanhas proporções, esse critério parece - e muitas vezes é - perverso. Mas simplesmente congelar os preços ou impedir vendas não elimina o problema original: há mais demanda do que oferta.
Há sérias dúvidas, portanto, se cortar fornecedores e congelar preços é o caminho. O mesmo vale para o confisco de produtos, já observado em alguns Estados. Tais medidas podem inclusive piorar a crise. Nos casos de interrupção de fornecedores e confisco, o problema é óbvio: a oferta do produto diminui ainda mais. Eliminar completamente o mecanismo de oferta e demanda não tem se mostrado eficiente.
O resultado das medidas adotadas no caso Amazon foi indesejado: o vendedor tem uma demanda reprimida e grande quantidade de produto disponível, mas é impedido de vender o material. Já o congelamento, para além de não endereçar o problema da oferta escassa, pode também piorá-lo.
É que o mecanismo de oferta e demanda opera de forma que, se a procura por um determinado produto aumenta, aumenta também o incentivo para que ele seja fabricado. Boa parte desse incentivo para aumento de produção passa por uma fase inicial de escassez, em que o valor do produto na prateleira sobe. Se os preços são congelados, o mecanismo pode falhar, afinal o produtor não verifica o benefício em aumentar a oferta ao mercado.
Uma série de iniciativas por parte de entes variados do governo tem sido noticiada, iniciativas essas que fogem - e expressamente afastam - a solução de congelamento. A Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) emitiu nota técnica sobre o tema, com o objetivo de “disseminar um guia interpretativo de atuação de eventual abusividade dos aumentos de preços de determinados produtos e serviços”. O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) noticiou a abertura de procedimento para averiguar se empresas estão “aumentando os preços e lucros de forma arbitrária e abusiva”.
Evidente que a sinalização para o setor privado de que o poder público está atento a possíveis movimentos abusivos e não será tolerante com ilicitudes é meritória. Porém é provável que investigações como essas, pela sua própria natureza, levem algum tempo a serem concluídas. Não é simples apurar em concreto a abusividade de condutas, exatamente porque essa análise, para ser bem feita, exige muitos cuidados das autoridades. Como a própria Senacon expõe, é preciso identificar o produto, delinear o mercado e a concorrência, entender a cadeia produtiva, e só então avaliar a racionalidade econômica da prática.
Tempo é um recurso escasso no contexto de pandemia. Agir com rapidez é essencial. Por isso, por meritórias que sejam as ações e por mais que possam impactar de maneira determinante o setor privado, elas não resolverão por completo o problema central: a falta de produtos essenciais para a correta proteção dos profissionais de saúde lidando com o coronavírus.
Se é verdade que congelamento e tabelamento apresentam problemas de efetividade, é também verdade que a lei de oferta e demanda não é uma lei da física e muito menos está escrita em pedra. Em situações de crise humanitária, em que o ajuste entre oferta e demanda pode demorar - ou sequer acontecer - não é insensato explorar medidas que transgridam as leis do mercado, ainda que temporariamente. Mas é preciso fazê-lo de modo inteligente: privilegiar desvios de oferta para hospitais, permitir ao Estado exercer seu poder de compra por meio de licitações mais abrangentes, estimular o uso de substitutos próximos ao produto com a demanda inflada, ou estimular que plantas originalmente destinadas a fabricar um dado produto passem a fabricar outros são alguns exemplos.
Na França, essa última solução não dependeu do incentivo estatal: a Louis Vuitton determinou que todas as suas plantas de perfumaria passem a produzir álcool gel. Em 72 horas a empresa conseguiu articular o desvio de produção, aprovar o produto final junto aos órgãos sanitários e colocá-lo à disposição do sistema público de saúde. A produção será por tempo indeterminado. No Brasil, algo semelhante ocorreu com a Ambev, que se comprometeu a produzir 500 mil unidades de álcool gel em plantas no estado do Rio de Janeiro. No Reino Unido, por sua vez, o governo solicitou a empresas de automóveis que passem a fabricar respiradores, pedido que foi prontamente atendido por grupos como Land Rover, Rolls Royce e 4.
Qualquer que seja a solução adotada, primeiro é preciso compreender se há escassez e, principalmente, o porquê. Precisamos evitar o ciclo vicioso da escassez, que pode começar por uma estratégia de congelamento de preços, acirrando o problema. Em seguida, pensar soluções criativas que, como dito, provavelmente se afastam da defesa dogmática da “lei natural” dos mercados.
Não é só quando os mercados falham que intervenções do Estado se justificam. Às vezes o excesso de mercado pode gerar efeitos severos sobre o tecido social. Essa constatação não é nova, nem na teoria, nem na prática, mas ressurge sempre que algo comum a toda humanidade vem à tona, nesse caso, o nosso instinto de autopreservação. Mas nessa hora o Estado precisa ser melhor, e não pior que o mercado.
*Vinicius Marques de Carvalho é sócio da VMCA, professor de Direito Comercial da USP e ex-presidente do Cade.
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