País tem pior dia da pandemia entre apologia ao arbítrio e o império da mentira
Este texto é escrito no aniversário do golpe militar de 1964, e será lido no Dia da Mentira. Essa mudança no calendário ocorre no momento em que vivemos o agravamento da pandemia do novo coronavírus submetidos, de um lado, à apologia do arbítrio e, de outro, ao império da mentira como política de Estado.
Eis por que o País passou o dia prendendo o fôlego já curto, imaginando se o pronunciamento de rádio e TV de Jair Bolsonaro seria para espalhar fake news sobre a pandemia e mandar as pessoas saírem às ruas ou para louvar a ditadura. Ou ambas as coisas.
Mas o que se viu e ouviu foi um presidente assustado recuar de todas as bravatas recentes e fazer apenas menção à ajuda das Forças Armadas no combate à pandemia, sem revisionismo histórico.
Bolsonaro pela primeira vez colocou a defesa da vida à frente da dos empregos. Procurou mostrar empatia sincera enquanto lia um teleprompter com expressão e olhos contraídos.
O suspense que antecedeu o pronunciamento era extensivo a ministros, que não sabiam qual seria o tom da fala. Não por acaso. O presidente começou o aniversário do golpe na toada do confronto e da mentira: reuniu sua claque de blogueiros e youtubers fanáticos para interromper e hostilizar os jornalistas na frente do Palácio da Alvorada. Desta vez, no entanto, a imprensa virou as costas e foi embora. Deixou o presidente nu: solitário e cercado de acólitos, o que tem sido a marca de seu governo em 2020.
A OMS também teve de parar tudo que está fazendo para desmentir a versão, depois remendada por Bolsonaro no pronunciamento, de que tinha reconhecido a necessidade de as pessoas trabalharem para “ganhar o pão”.
O recuo repentino de Bolsonaro mostra que ele está ciente de que vem minguando em todas as pesquisas realizadas, inclusive as medições de sua influência nas redes sociais.
Estudo diário feito pela consultora de imagem Olga Curado com base nas redes mostra que há “dois governos” na percepção da população: um “prudente”, simbolizado pelo ministro Luiz Mandetta (Saúde), e outro visto como “irresponsável" e “autoritário”, representado por Bolsonaro.
A incapacidade de lidar com essa diluição da própria imagem e a tendência a ouvir um grupo liderado pelos filhos para tomar decisões vinham ditando a aposta no confronto. “Não há estratégia. Ele age instintivamente, orientado por pessoas rasas, que pensam em consonância com ele. É tática de orelha de livro”, disse Olga Curado, que assessorou presidentes da República e candidatos à Presidência nos últimos 20 anos, à coluna.
O pronunciamento de ontem foi uma tentativa de inflexão nos vários “dias da mentira” e de se aproximar do governo de Mandetta e Paulo Guedes e se afastar dos conselhos dos três filhos, sobretudo de Carlos, o czar da comunicação, e Eduardo, o tradutor que não sabe inglês e cunhou o apelido definitivo do clã: “Família Buraco”.
Bolsonaro reconheceu que não há remédio de eficácia comprovada contra a covid-19, disse que o vírus é uma “realidade” (e não “gripezinha”) e lamentou a perda de vidas, sem o “paciência, acontece” que despejou em entrevista na última sexta.
O barulho ensurdecedor das panelas nas janelas do Brasil durante a fala, no entanto, mostra que a confiança numa mudança sincera de propósito vai depender de ações nos próximos dias.
A missão do governo é fazer a renda de R$ 600 aos mais necessitados, já aprovada no Congresso, chegar às pessoas, algo para que ainda não há data nem formato. É coordenar esforços com governadores e prefeitos e conduzir o País numa única direção para atravessar uma crise que não é possível determinar que duração terá, mas que não pode ser enfrentada com o autoritarismo dos idos de março nem narrativa de Primeiro de Abril.
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