-Folha de S. Paulo
Vida nas favelas: não é possível que continue assim
Até os sete anos, Carlos Jorge passava as tardes acorrentado ao pé da cama. Nada de circular pelas vielas da Quadra 12, favela localizada em Vergel do Lago, na periferia de Maceió (AL). Pela manhã frequentava a escola pública da favela. No contraturno, sua única companhia era o mesmo cadeado.
Este calvário durou até a mãe se enroscar com um novo companheiro. E o que parecia impossível aconteceu: tudo piorou. Surras diárias com abusos frequentes. Aos 17 anos, perdeu seu primeiro emprego e driblou amigos que praticavam pequenos furtos. Com os trocados da rescisão, decidiu mudar o mundo para melhor. Acolhido por uma vizinha com nome de santa, Maria Madalena, o menino, agora adolescente, iniciou sua marcha em busca da nova missão.
Eram 11h e eu caminhava pela Favela do Mundaú com Carlos Jorge, 15 anos depois da sua decisão de mudar o mundo. E estava inconformado com tudo o que via.
A Covid-19 ensaiava os primeiros passos para além do território chinês. Meus pensamentos não se conectavam com a doença, que parecia distante. A realidade imediata era mais grave. Meu único registro de algo semelhante remetia à visita que fiz anos antes à Cité Soleil, a maior favela de Porto Príncipe, capital do Haiti. Na época, saí de lá convencido de que a humanidade não havia dado certo. Como era possível pessoas viverem naquela condição a meros 40 minutos de voo da Flórida?
Aquele gosto amargo ameaçava se repetir, mas dessa vez no Brasil, em casa. Pelo menos ali havia Carlos Jorge, que virou uma potência. Hoje lidera a ONG Manda Ver, que atende centenas de crianças, jovens e adultos. Em parceria com a escola pública do bairro, conseguiu quadruplicar o número de alunos matriculados. E só não faz mais, por que lhe faltam recursos.
As favelas na região do Vergel do Lago —Mundaú, Sururu de Capote, Torre, Peixe e Muvuca— deveriam ser visitadas por todos, principalmente pela elite inerte deste país.
A maior parte da comunidade vive da cadeia produtiva do sururu, um tipo de marisco. Trabalho duro, que rende míseros R$ 0,50 por quilo.
Deixei a Favela do Mundaú com a cabeça fervendo. Ninguém pode se sentir rico no Brasil enquanto houver tanta pobreza por aí.
Poucas semanas se passaram desde a minha visita, e agora o Brasil se curva frente à pandemia. Os 7.000 cidadãos das favelas de Vergel do Lago já estão sem renda.
Hotéis à míngua e restaurantes fechados fizeram despencar o consumo do sururu. De lá já me chegam relatos de fome e desespero.
Não vou retomar a discussão sobre como evitar que a Covid-19 contagie de maneira exponencial o país. Quero aqui refletir sobre o futuro.
Foi necessária uma pandemia avassaladora para trazer o tema das favelas para as primeiras páginas, infelizmente ainda não pelas suas potências, mas pelas suas fragilidades.
A falta de estrutura básica e de uma mínima qualidade de vida em Vergel do Lago está longe de ser uma exclusividade alagoana. Esse tipo de exclusão cruel está presente em todos os estados brasileiros. Sem exceção.
Precisamos de soluções definitivas para questões como desigualdade, mobilidade social e criação de oportunidades —se não, mais uma vez eu repito, vamos colapsar. E aqui não só o SUS, mas o país inteiro.
Políticas de regularização fundiária, crédito, infraestrutura e o que mais se mostrar necessário para encontrarmos o caminho da cura para uma das maiores feridas que temos na nossa sociedade. Usar o urbanismo como a ciência que pensa, analisa e projeta tecidos urbanos.
Trazer para o debate o melhor da sociedade civil, academia, economistas, terceiro setor, autoridades, pensadores, lideranças religiosas, moradores das comunidades e a política. Sim, porque sem a política não há solução. Negar a política é interditar o diálogo democrático. Vejo a política como a arte de entender as pessoas e fazer com que elas se entendam.
Na esteira desse momento de fragilidade social que obrigou o país a olhar para a interdependência entre todos nós e, por consequência, para esse recorte da sociedade pouco atendido, compartilho caminhos para serem pensados e debatidos como parte de um projeto de políticas públicas que apontem soluções para as favelas Brasil afora.
É fundamental enquadrar o desafio urbano em três tipos de territórios. As capitais, que possuem capacidade técnica (e às vezes recursos), mas que, via de regra, têm grandes populações e planos ambiciosos e que dificilmente alcançam as metam estipuladas. As regiões metropolitanas, que muitas vezes não têm governança dedicada, planos de infraestrutura, transporte e saneamento. E as cidades médias e pequenas, na maioria carentes de economias fortes e de quadros técnicos capazes de planejar e executar uma boa gestão urbana.
As famílias, em geral, optam pelas favelas pelo baixo custo e pela proximidade das áreas centrais. Assim, para evitar maior adensamento, precisamos e devemos estimular a oferta de imóveis residenciais acessíveis nas áreas mais assistidas das grandes cidades. Morar bem é morar perto. Não faz sentido pensarmos apenas em projetos distantes dos centros urbanos, como a maioria das iniciativas do Minha Casa, Minha Vida, que, mesmo funcionando para gerar empregos durante as obras, acabam se convertendo em moradias desplugadas do dia a dia das cidades. Vamos precisar recompactar as cidades, remodelar imóveis degradados.
Somado a isso, seria necessário desmontar os diferentes gargalos que estrangulam e dificultam a produção residencial: licenciamento vagaroso, mecanismos de especulação nas áreas centrais, excesso de burocracia, insegurança jurídica, desinformação fundiária e por aí em diante.
O incentivo poderia vir através de programas de zoneamento inclusivo. O desenvolvimento imobiliário viria acompanhado de percentuais de unidades sociais por bairro, retribuindo os empreendedores com contrapartidas. Desta forma produziríamos um processo orgânico de “desadensamento” populacional das favelas, o que tornaria bem menos complexo o processo de urbanização dessas comunidades.
A democratização do acesso à arquitetura e à engenharia deveria ser uma forte aliada, podendo gerar programas para melhorias habitacionais, começando por uma parte quase sempre esquecida: a casa das pessoas. Arrumar a casa é fundamental para dar direitos básicos e dignidade.
Da porta para fora, serão necessários investimentos em infraestrutura , lazer, educação e cultura nas favelas. Há modelos desenvolvidos e testados por países que enfrentaram nossos mesmos desafios.
Além de água, esgoto e internet de alta velocidade, o Estado construiu uma infinidade de aparelhos urbanos como praças, vilas olímpicas, bibliotecas, espaços comunitários e, principalmente, a transformação das escolas públicas em ambientes de excelência. A escola como epicentro da comunidade.
Deveríamos também repensar um novo modelo de propriedade nas favelas, quem sabe de propriedade compartilhada da terra, como um fundo imobiliário das comunidades, o que estreitaria os laços e evitaria o avanço desmedido de grileiros e milícias. Nos EUA por exemplo, existem os “Community Land Trusts”, que são modos de proteger populações contra a especulação imobiliária gananciosa.
Sei que muitas dessas iniciativas competem aos municípios por força constitucional. Mas o governo federal deveria criar um Pacto pelas Cidades Brasileiras.
A vida mudou, e vai mudar ainda mais depois desta pandemia. E está cada vez mais evidente que o morar, as comunidades e os bairros terão de se transformar. Que a dinâmica da vida que nos trouxe até aqui não será mais a mesma, e que essa transformação passa fortemente pela ressignificação das nossas cidades.
Elas são únicas e preciosas, e nossa cultura é favorável à vida em coletividade, mas a segregação tem sido cada vez mais intransponível.
Não podemos romantizar a vida em favelas, precisamos reconhecer que foi assim até hoje, mas precisamos entender definitivamente que não é possível continuar assim.
Sem ingenuidade, é fato que necessitamos de prosperidade para sermos capazes de conceber e implantar algo transformador. Mas precisamos de projetos, pensar grande, um plano maior.
Com nossa força solidária, sem abrir mão das orientações da OMS, seguindo a ciência, e nos protegendo da ignorância, apesar de todo o sofrimento fruto dessa pandemia, vamos passar por ela.
Até lá, vou seguir conectando, construindo pontes, ligando o capital ao empreendedor social, amplificando a cultura de doação e informando como posso.
É fundamental acertar as velas e rumar na direção correta, na busca por um país mais eficiente e mais afetivo. Mas enquanto a roleta social for a grande definidora das chances que cada um terá na vida, enquanto não resgatarmos a mobilidade social e o direito de sonhar, jamais seremos o país que queremos e podemos ser.
*Luciano Huck, apresentador de TV e empresário
Um comentário:
Creio que Luciano Huck é o possível candidato a presidente que neste momento fala com mais força sobre o tema de nossa DESIGUALDADE. Não tenho visto nada parecido nem em Ciro Gomes.
E olhe que Luciano fala apenas nas favelas. Hoje, no Brasil, favelado é um privilegiado. O "chão" do Brasil-Favela, essa obra prima de nossa burguesia genocida, são os "moradores de rua" e a "cracolândia".
Também pensei nisso que Luciano pensou. A crise gerada pelo coronavírus tem uma coisa boa. Nossa classe dominante genocida vai tomar consciência do tamanho do crime que ela cometeu nos últimos 500 anos. Vai tomar consciência do tamanho do problema. Que ou será resolvido por ela, classe dominante, ou teremos aqui uma revolução social, clássica. O Brasil foi o último país do mundo a libertar os escravos. Pode ser que seja o último país do mundo a experimentar uma REVOLUÇÃO SOCIAL.
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