sexta-feira, 22 de maio de 2020

Fernando Abrucio* - O que deu certo em outros países e o nosso pesadelo

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Bolsonaro e seu governo estão na contramão de tudo o que tem obtido bons resultados até agora no combate à pandemia da covid-19 e seus efeitos sobre a economia dos países

Uma crise tão gigantesca e imprevisível como a atual não tem solução simples nem fácil. Nenhum país tem uma varinha mágica para acabar instantaneamente com o novo coronavírus e fazer a economia voltar a todo vapor. E mais: todos os governantes estão aprendendo a lidar com a covid-19 em exercícios de tentativa e erro, levando em conta as especificidades do desenvolvimento da doença em cada nação. Não obstante, é possível encontrar cinco características básicas dos melhores governos no enfrentamento da pandemia. Isso é positivo e permite encontrar alguma luz no fim do túnel. A notícia ruim é que o presidente Bolsonaro está na contramão de tudo que dá certo no plano internacional.

A primeira característica dos governos mais bem-sucedidos no combate à covid-19 foi a combinação de ciência e humanismo. Seus líderes usaram evidências científicas para construir as políticas públicas, mesmo que haja diferenças entre as respostas dadas por tais países. Construíram mapas de incidência da doença, planejaram a compra de equipamentos de saúde, propuseram uma variedade de tipos de isolamento social, tudo isso com base em dados sistematicamente produzidos e acompanhados. Esses governantes não tiveram medo de falar verdades inconvenientes quando foi preciso, porque optaram por soluções racionais e não pelo pensamento mágico.

É verdade que não há conhecimento científico para lidar com várias incertezas da pandemia, porém, o que se sabe é o suficiente para evitar alguns erros e, sobretudo, não trilhar o caminho do irracionalismo. Os líderes mais exitosos tinham um plano básico de travessia da crise, estruturado nas evidências disponíveis, e não optaram pela mudança de ideias a cada semana, muito menos seguiram os humores das redes sociais.

Os líderes que tiveram melhor desempenho até agora não se nortearam apenas pela ciência. Eles tiveram no humanismo uma bússola central de suas ações, pois demonstraram um alto grau de empatia pelas pessoas atingidas pela doença e pela crise social derivada disso. Esse é um aspecto importante, porque líderes políticos efetivos não são meros tecnocratas. Por isso, tais governantes falaram constantemente com a população, elogiaram efusivamente os profissionais de saúde e fizeram muitas outras ações para mostrar que consideravam o combate à covid-19 o maior problema de seus países. Foram lideranças que transmitiram confiança para a sociedade, realçando que é necessário combinar a linguagem científica com a humanista para enfrentar grandes crises.

A capacidade de agregar os diferentes atores (governamentais e não governamentais) na luta contra a pandemia é uma segunda característica que aparece nos casos mais bem-sucedidos de enfrentamento da covid-19. Coordenação de esforços e busca de consensos com as instituições e grupos que tenham alguma incidência nas decisões coletivas foram essenciais. Em países federativos, como a Alemanha, a Argentina ou a Austrália, a liderança nacional conversou constantemente com os governantes locais, dando-lhes um papel estratégico, mas coordenando a ação de todos.

O resultado sempre foi catastrófico onde predominou a cizânia. O exemplo dos Estados Unidos seguiu essa linha. Trump tem brigado constantemente com os governadores e tem deixado de liderar o país em ponto centrais, no fundo passando a responsabilidade pelos problemas sanitários aos governos subnacionais. A imprensa americana chegou a dizer que o presidente estava estimulando um federalismo darwinista, uma competição predatória de todos contra todos. O problema é que, como disse o governador de Nova York, “as fronteiras estaduais significam muito pouco para o vírus.”

O combate aos efeitos econômicos da pandemia foi a terceira característica distintiva. A atuação se deu em dois fronts: a garantia de renda para os setores econômicos mais vulneráveis e a ajuda direta às empresas para que elas sobrevivam - afinal, não há capitalismo sem empresas. Esse é um dos pontos mais complicados, dado que não se sabe ainda o tamanho da depressão econômica que virá pela frente. De todo modo, é preciso lembrar duas coisas: que governos em várias partes do mundo continuam ampliando o volume do auxílio financeiro aos setores econômicos, sem vincular isso à volta das atividades normais, e que nenhum país bem-sucedido tinha uma grande desigualdade social.

Destaca-se, ainda, outro elemento que explica os bons resultados em determinados países: a constituição de uma equipe governamental que tratou a crise gerada pela pandemia como um problema intersetorial. Esses governos procuraram, com maior ou menor sucesso, elaborar ações para diversos setores afetados, como educação, transportes, cultura e outros, e não apenas para a saúde e a economia, buscando criar uma congruência de decisões entre as várias áreas afetadas. Obviamente que os maiores problemas são as mortes das pessoas acometidas pela doença, bem como o desemprego e a falência das empresas. Mas, por exemplo, a perda de meses de aulas pelas crianças e jovens também exigirá um enorme esforço social para ser revertida.

A última característica ainda está em construção pelos governos, sendo um elemento que precisa de um tempo maior para ser avaliado. Mesmo assim, é possível distinguir os países que souberam planejar medidas para o dia seguinte da pandemia, com base em evidências e análises que têm levado em conta a realidade do país, inclusive tendo planos para a possibilidade de uma segunda ou terceira onda do vírus. Planejamento e acompanhamento contínuos serão necessários, além de manter o diálogo com os atores envolvidos, para garantir a eficácia da implementação das medidas.

O Brasil está longe, no momento, de ter o governo dos sonhos. Estamos mais próximos da hora do pesadelo. É isso que se conclui ao se comparar o que foi feito em outros países com aquilo que tem sido feito pelo presidente Bolsonaro. Em primeiro lugar, porque o bolsonarismo não consegue combinar ciência com humanismo. Pior do que isso: menospreza ambos os critérios.

As decisões do Ministério da Saúde são cada vez mais influenciadas pelo medo de desagradar o “chefe”. Se o presidente acredita que a cloroquina deve ser entregue a todos os brasileiros, que assim se faça, mesmo que não haja nenhuma comprovação científica cabal do uso desse protocolo. A proposta de isolamento vertical vai na mesma linha: qual é a evidência científica que justifica tal modelo? Num país tão desigual como o Brasil e que demograficamente tem um número grande de idosos morando com seus familiares em comunidades mais carentes, como se monta um isolamento vertical?

Quanto ao humanismo, Bolsonaro só o considera para a sua família, amigos e seguidores. Ele não demonstrou até agora nenhuma empatia pelos mortos e seus familiares. Poderia fazer uma grande homenagem aos que estão na ponta dessa verdadeira guerra, mas seu séquito bolsonarista agrediu enfermeiros em recente manifestação. Quando houver cem mil vidas perdidas, haverá algum pronunciamento presidencial? Com certeza, há muita gente sofrendo com a crise econômica. Como de costume, o bolsonarismo quer a divisão do país, já que se beneficia dela. Fomentar a polarização, nem que seja sobre cadáveres, eis o lema de Bolsonaro.

A liderança presidencial não optou no Brasil pelo diálogo e negociação com os atores sociais. Bolsonaro só tem alimentado o confronto com todos. Governadores, prefeitos, STF, Congresso, movimentos sociais, todos são inimigos do bolsonarismo, de modo que as ações contra a pandemia se tornam extremamente descoordenadas, reduzindo a eficiência governamental. Depois de tanta briga, com quem o presidente vai governar?

No front econômico, o presidente e sua equipe econômica queriam ter aprovado uma ajuda de R$ 200, mas graças ao Congresso se evitou essa vergonha internacional. Além disso, o processo de ajuda tem sido atribulado, de modo que as pessoas mais necessitadas se colocam em risco em grandes filas, numa humilhação que não deveria existir num país em que há direitos de cidadãos. Em relação ao auxílio às empresas, claramente ele tem sido insuficiente. Novamente, o objetivo é claro: aumentar o caos social para que todos apoiem uma abertura econômica que pode ser a antessala de um agravamento da pandemia.

Esperar uma equipe ministerial que tenha uma ação intersetorial e planeje com cuidado o dia seguinte da pandemia é algo irrealista no atual governo. Todos são meros seguidores do irracionalismo do presidente e não conseguem se contrapor às maiores atrocidades que ele tem feito. Na verdade, quem se coloca contra o errado é demitido. Meu velho amigo Oliveiros Ferreira dizia que um bom governo se conhece pela entourage presidencial, ou seja, quem assessora e aconselha o governante. Assim, temos um problema: Bolsonaro só ouve os filhos e eles só pensam em radicalismo e em salvar a própria pele.

Dadas as caraterísticas da liderança presidencial e de seu governo, o Brasil terá um caminho muito atribulado pela frente. O pior de tudo é que, mesmo com milhares de mortes, Bolsonaro não aprenderá com a experiência internacional, porque ele nunca muda suas ideias. Ele só dobra a aposta no seu radicalismo que tem produzido um pesadelo sem fim para a grande maioria dos brasileiros.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getúlio Vargas

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