• Um entendimento a ser preservado em nome do país – Editorial | O Globo
Cordialidade no encontro entre Bolsonaro e governadores tem de ser a base para o enfrentamento da crise
A videoconferência realizada ontem entre Bolsonaro e governadores, mediada pelos presidentes da Câmara e Senado, Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, conseguiu interromper a escalada da crise política criada pela radicalização do presidente da República, assim que se viu limitado em suas ações pelo Legislativo e Judiciário, como ocorre na República.
Foi um progresso que pode ser decisivo, porque, sem entendimento entre governadores, prefeitos, Executivo federal e Legislativo, não é possível enfrentar as dificuldades que já desabam sobre a nação, atingindo, para começar, os mais vulneráveis na sociedade. Bolsonaro, cordato, se mostrou disposto a buscar este caminho.
Neste contexto, o clima de entendimento existente ontem na reunião conduzida pelo próprio Bolsonaro é um fato político importante, um marco nesses quase 17 meses do governo. O caixa de estados e municípios, sufocado pela queda de receitas provocada pela recessão já iniciada, precisa da ajuda de repasses da União para cobrir suas despesas, acrescidas pelos gastos adicionais causados pela epidemia da Covid-19. A maioria dos leitos ocupados pelas vítimas do Sars-CoV-2 é municipal e estadual.
O entendimento entre o presidente e o resto da Federação ocorreu em torno de alguns vetos no projeto de ajuda à Federação, destacando-se a supressão da permissão de aumentos salariais para servidores, um contrassenso no momento em que as contas públicas explodem devido ao crescimento dos gastos e queda das receitas. Como o Planalto desejava, os governadores deram seu apoio a um veto que tem ainda caráter de justiça social, por fazer com que o funcionalismo, com emprego garantido, ao menos contribua com o não recebimento de reajustes até o final do ano que vem, enquanto centenas de milhares de assalariados do setor privado estão ou serão desempregados ou começam a perder parte dos salários. Agora, os governadores precisam ajudar o governo na manutenção da medida no Congresso, contra interesses de corporações sindicais.
O êxito da reunião feita remotamente com todos os 27 governadores é dado pelo comportamento sereno de Bolsonaro e a cordialidade do seu maior adversário político atual, o governador de São Paulo, João Doria. Na última vídeoconferência dos dois, brigaram. Um dos quatro governadores a falar — além de Reinaldo Azambuja (MS), Renato Casagrande (ES) e Eduardo Leite (RS), este em uma pequena intervenção —, Doria foi rápido, cumprimentou o presidente pela forma com que ele conduzia o encontro e completou: “Nós precisamos, sim, estar unidos. Vamos em paz, presidente. Vamos pelo Brasil e vamos juntos”. Bolsonaro agradeceu as palavras ao “senhor governador” e deu-lhe os “parabéns” por essa posição. A imprevisibilidade presidencial é conhecida. Mas ele também obteve uma vitória política e deveria preservá-la. Sem um trabalho conjunto, o custo da crise será ainda mais elevado. O povo pagará boa parte do preço, junto com os políticos.
• Corrupção na saúde torna mais letal pandemia da Covid-19 no Rio – Editorial | O Globo
Doentes morrem em filas à espera de um leito de UTI, enquanto o orçamento do setor é saqueado
Os números da Covid-19 no Rio de Janeiro são desastrosos. Até ontem, o estado registrava 32.089 infectados e 3.412 mortos. No ranking da pandemia no Brasil, o Rio fica mal. É o segundo com maior número de mortes, atrás apenas de São Paulo. Mesmo assim, a incidência da doença é maior aqui do que lá (175,9 contra 152,1 por cem mil, na quarta-feira). O vírus também se revela mais letal em território fluminense (10,6% contra 7,5%). E não adianta culpar a falta de testes, já que a escassez de diagnósticos é generalizada.
Evidentemente, há fatores que contribuem para essa escalada de mortes no Rio, como a queda nos índices de isolamento e as condições socioeconômicas da população. Segundo o IBGE, 22,5% dos cariocas moram em favelas, onde a precária situação sanitária favorece a proliferação da doença. Bairros da Zona Oeste com baixos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) estão entre os que registram maior número de mortes. Mas, a esse cenário, construído ao longo de décadas de negligência do poder público, se junta a corrupção na saúde, criando um ambiente letal numa fase crítica da doença.
Enquanto pessoas morrem na fila de espera por um leito de UTI, os cofres do estado são saqueados em compras emergenciais suspeitas. A Polícia Civil e o Ministério Público investigam indícios de fraude na aquisição de mil respiradores, no valor de R$ 183 milhões. Apesar de o governo ter adiantado R$ 33 milhões, os aparelhos não chegaram. E fazem falta nos hospitais de campanha, que funcionam sem plena capacidade por falta de equipamentos.
No dia 13, a operação Mercadores do Caos prendeu o empresário Maurício Fontoura, controlador da Arc Fontoura, uma das fornecedoras investigadas. Estão encarcerados também dois ex-subsecretários de Saúde do Rio: Gabriell Neves e Gustavo Borges, que o sucedeu. Em meio ao escândalo, o então secretário, Edmar Santos, foi exonerado.
O Instituto Unir, que administra UPAs no Rio, também está sob investigação. A OS, que havia sido desqualificada para prestar serviços ao estado, foi reabilitada em março pelo governador Wilson Witzel, que desprezou pareceres técnicos contra a decisão. Segundo a operação Favorito, braço da Lava-Jato, o Unir teria como sócio oculto o empresário Mário Peixoto, que está preso.
São conhecidas as dificuldades para se enfrentar a maior pandemia da História em cem anos. Mas elas se tornam mais dramáticas diante de gestões ineptas e fraudulentas, em que o dinheiro público é roubado de forma deslavada, tornando-se ainda mais escasso para o atendimento aos doentes. Os números da Covid-19 no Rio são eloquentes para mostrar que a corrupção pode ser tão letal quanto um vírus para o qual não há vacina ou remédio.
• O relato da falsidade – Editorial | | O Estado de S. Paulo
Bolsonaro nada fez sobre o PLP 39/2020. Deixou o tempo passar, dando margem para que categorias obtivessem reajustes salariais. E ontem pediu apoio ao veto
Hipocrisia é sinônimo de falsidade e dissimulação. É forte e, muitas vezes, arriscado afirmar que alguém agiu de forma hipócrita. Tal afirmação envolve quase sempre um juízo sobre aspectos ocultos, de difícil comprovação. Há, no entanto, casos em que, pela simples conduta externa – sem necessidade de inquirir intenções –, se constata a olho nu a hipocrisia de um comportamento. É o que se pôde observar, nas últimas semanas, na conduta do presidente Jair Bolsonaro em relação ao Projeto de Lei Complementar (PLP) 39/2020. Após uma série de idas e vindas, Jair Bolsonaro teve a audácia de pedir, em reunião com os governadores realizada no dia 21 de maio, apoio para a manutenção do veto ao reajuste de algumas categorias do funcionalismo público. Ora, foi o próprio Bolsonaro que contribuiu para a farra dos reajustes em plena pandemia.
No dia 6 de maio, o Congresso aprovou o PLP 39/2020, que concedeu auxílio emergencial aos Estados e municípios e, em contrapartida, congelou os salários dos servidores públicos até dezembro de 2021. O congelamento foi bastante mitigado, no entanto, na redação final do projeto. Várias categorias profissionais foram excluídas da proibição de reajuste. Na versão original do projeto, enviada pelo governo ao Congresso, o congelamento garantia uma economia de R$ 130 bilhões para União, Estados e municípios. Depois das modificações feitas pelos parlamentares, a economia caiu para R$ 43 bilhões.
Conforme o Estado informou, durante a tramitação do projeto, o presidente Bolsonaro, contrariando as orientações da equipe econômica, deu aval para que o Congresso aumentasse a lista de categorias que poderiam ter reajuste até o fim de 2021. Tendo capitaneado o movimento para beneficiar as categorias, o líder do governo na Câmara, Major Vitor Hugo (PSL-GO), reconheceu que a articulação teve respaldo de Bolsonaro, com quem conversou duas vezes durante a votação. “Sou líder do governo e não líder de qualquer Ministério”, disse Major Vitor Hugo.
No dia seguinte à aprovação do projeto, Jair Bolsonaro recuou, afirmando que vetaria as exceções ao congelamento de salários do funcionalismo público. “Eu sigo a cartilha de Paulo Guedes na economia. Se ele acha que deve vetar, assim será feito”, disse o presidente da República no dia 7 de maio.
No entanto, ao longo das duas semanas seguintes, o presidente Bolsonaro nada fez em relação ao PLP 39/2020. Simplesmente deixou o tempo passar, dando margem para que várias categorias obtivessem reajustes salariais. Uma vez que o projeto de lei não tinha recebido a sanção presidencial, a proibição de reajuste não estava vigente. Por exemplo, no dia 13 de maio, as Polícias do Distrito Federal (DF) conseguiram aumento salarial de 8% a 25%, com pagamento retroativo desde janeiro deste ano. Várias Assembleias Legislativas estaduais, estimuladas pelo exemplo que vinha de cima, também aprovaram reajustes na folha de pagamento do funcionalismo.
Caso o PLP 39/2020 tivesse sido sancionado logo em seguida à aprovação no Congresso, com o devido veto, corporações públicas não obteriam tão facilmente novos ganhos salariais durante a pandemia do novo coronavírus. A conivência com o oportunismo de setores do funcionalismo não foi óbice, no entanto, para que o presidente Jair Bolsonaro pedisse aos governadores, em reunião realizada no dia 21 de maio, apoio ao veto às exceções ao congelamento. “O que se pede apoio aos senhores é a manutenção de um veto muito importante”, disse Jair Bolsonaro. Sem dúvida, é necessário o veto, garantindo que os salários do funcionalismo fiquem congelados até dezembro de 2021. Precisamente porque o veto é importante, ele não poderia ter sido postergado.
Com frequência, Jair Bolsonaro queixa-se do que ele considera ser uma redução de seus poderes presidenciais. No entanto, quando o poder é apenas dele – cabe ao presidente da República sancionar ou vetar os projetos de lei aprovados pelo Congresso –, Jair Bolsonaro tem uma estranha dificuldade para agir. É urgente sancionar o PLP 39/2020, vetando tudo o que seja irresponsável e imoral. Dar aumento de salário na pandemia é imoral.
• Aos camisas pardas, a lei – Editorial | O Estado de S. Paulo
Há limites que não devem ser ultrapassados impunemente numa democracia
Já passa da hora de os ataques contra as instituições democráticas e seus representantes receberem a devida reprimenda do Estado. Este tipo de comportamento nefasto, ora escamoteado sob o manto sagrado da liberdade de expressão, ora praticado em plena luz do dia, sem qualquer tipo de freio moral ou retórico, não pode vicejar no País. Há limites que não devem ser ultrapassados impunemente em uma democracia.
O Ministério Público de São Paulo (MP-SP) deixou isso claro ao denunciar dois dos camisas pardas do bolsonarismo que ameaçaram o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). Identificados, Antonio Carlos Bronzeri e Jurandir Pereira Alencar foram denunciados pelos crimes de ameaça, injúria e difamação, com pedido de aumento de pena por terem sido tais crimes praticados contra funcionário público e na presença de várias pessoas. No dia 2 de maio, Bronzeri e Alencar participaram de ato na frente do condomínio onde mora o ministro Alexandre de Moraes, na capital paulista. A baderna durou cerca de duas horas e só foi interrompida pela chegada da Polícia Militar, que prendeu os dois brucutus. A denúncia contra eles foi acolhida pela Justiça paulista.
O ministro Alexandre de Moraes foi alçado à condição de vilão pelos camisas pardas do bolsonarismo após proferir decisão liminar que impediu a nomeação de Alexandre Ramagem como diretor-geral da Polícia Federal (PF). Moraes frustrou a vontade de Jair Bolsonaro de ter à frente da PF alguém com quem ele tenha “afinidade” e para ligar a qualquer hora do dia e requisitar sabe-se lá o quê.
Bom exemplo também deu o Ministério Público do Distrito Federal (MP-DF) ao propor Ação Civil Pública a fim de desmantelar o acampamento da milícia “300 pelo Brasil”, que reúne outro grupo de camisas pardas no entorno da Praça dos Três Poderes. A ação foi proposta após uma das milicianas, a tal “Sara Winter”, confirmar a existência de armas de fogo no local. A Justiça do Distrito Federal, no entanto, negou o pedido do Parquet. Ao fazê-lo, o juiz Paulo Afonso Cavichioli impediu que a Polícia Militar fizesse diligências para busca e apreensão de armas de fogo ilegais, uma temeridade. O magistrado aludiu à “liberdade de pensamento, locomoção e reunião” para fundamentar sua decisão. Ele ignora, porém, que a Lei Maior determina em seu art. 5.º, XVII, que “é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar”.
Ao barrar a nomeação do amigo da família Bolsonaro, o ministro Alexandre de Moraes fez tão somente o que lhe cabia como um dos 11 guardiões da Constituição: tornou sem efeito um ato administrativo com claríssimo desvio de finalidade. Em defesa da Constituição também agiram os membros do Ministério Público de São Paulo e do Distrito Federal. Pena que a Justiça agiu na direção correta em São Paulo e mostrou uma perigosa tolerância com as ameaças em Brasília.
Também na capital federal, uma operação da Polícia Civil prendeu dois camisas pardas suspeitos de ameaçar de morte juízes, promotores e procuradores do DF. Célio Evangelista Ferreira e Rodrigo Ferreira foram presos num condomínio de luxo às margens do Lago Sul porque, segundo acusa o MP-DF, enviaram e-mails para as autoridades ameaçando matá-las “em legítima defesa de si e da Pátria”.
Não se pode desconsiderar que tais atos violentos não são espontâneos, mas estimulados por palavras e ações do presidente da República. O comportamento insultuoso de Bolsonaro em relação aos outros Poderes é a senha para que seus camisas pardas avancem sobre as instituições com tamanho destemor. Para os brucutus, a “Constituição” que vale é a que dá na veneta de seu líder. O texto promulgado pelos representantes do povo em 1988 lhes causa grave urticária.
Se Bolsonaro não dá exemplo aviltando os limites constitucionais a que está sujeito no cargo, quem, entre seus apoiadores, haverá de lhes dar o devido valor? Então, se aquele a quem têm por “mito” não é capaz de ensinar a seus defensores como se comportar numa democracia, que os rigores da lei penal, então, lhes sirvam como educação moral e cívica.
• O vírus nos cofres públicos – Editorial | O Estado de S. Paulo
Arrecadação de abril já mostra os efeitos fiscais da covid-19
Com o pior resultado em 13 anos, a arrecadação federal mostrou em abril os primeiros impactos da crise provocada pelo surto de coronavírus. O governo da União recolheu R$ 101,15 bilhões, 28,95% menos que um ano antes, descontada a inflação. Foi o menor valor para o mês na série registrada a partir de 2007. A receita foi prejudicada pela nova redução da atividade econômica, ainda no início, e por facilidades fiscais concedidas a contribuintes. Em relação a março a queda foi de 7,52%. Esses números são o prenúncio de um ano excepcionalmente ruim para as contas públicas e de enormes problemas de ajuste no próximo ano. Mas esses problemas só estarão na agenda, nos próximos meses, se o toma lá dá cá com os apoiadores do presidente Jair Bolsonaro permitir manter algum compromisso com a seriedade fiscal.
Os efeitos da nova crise são menos visíveis quando se consideram os valores acumulados nos primeiros quatro meses. No ano, a arrecadação chegou a R$ 502,29 bilhões. Foi o pior desempenho para o período desde 2017, mas a queda em relação aos meses de janeiro a abril de 2019 ficou em 7,45%. Embora considerável, essa redução é muito menos assustadora que a observada a partir de abril. Apesar disso, os sinais de problemas já eram claros no primeiro trimestre.
Em fevereiro e em março os valores mensais da arrecadação já foram menores que os de um ano antes. A economia já estava mal, antes da nova crise, e isso se refletia na receita tributária. O ano começou com a indústria em marcha lenta e com o desemprego ainda acima de 12% da força de trabalho. O pouco empenho em reativar a economia no primeiro ano de mandato do presidente Jair Bolsonaro deixou uma herança muito ruim para 2020. Restrições sociais implantadas na reação inicial à covid-19 agravaram um quadro econômico já muito insatisfatório.
O governo enfrentou os novos problemas com aumento de gastos e alívio de obrigações fiscais. Procurou-se, com várias medidas, proporcionar algum fôlego às empresas, principalmente às micro, pequenas e médias, e preservar empregos. O Banco Central (BC) procurou atuar paralelamente ao Tesouro, ampliando o volume de recursos disponíveis para o setor bancário e estimulando a concessão de mais empréstimos. Os primeiros movimentos de resposta à crise ocorreram em março.
Desonerações já vigoravam no começo do ano, como heranças de políticas implantadas bem antes da covid-19. A essas facilidades se acrescentaram aquelas decididas a partir dos efeitos iniciais da pandemia. No ano, as desonerações produziram renúncia fiscal acumulada de R$ 34,99 bilhões. Um ano antes o valor havia chegado a R$ 32,16 bilhões. Comparados os meses de abril, as facilidades passaram de R$ 8,08 bilhões para R$ 9,96 bilhões, em valores corrigidos.
Em abril, a perda de receita foi causada em parte pela baixa da atividade e em parte pelo adiamento na liquidação de tributos. A redução da atividade resultou em queda de R$ 4,21 bilhões no recolhimento de tributos, segundo o chefe do Centro de Estudos Tributários da Receita Federal, Claudemir Malaquias. A maior parte da redução é atribuível a pagamentos adiados, a desonerações e a compensações tributárias.
Os efeitos diretos da contração econômica, isto é, do menor consumo, da menor produção e do menor volume de serviços intermediários, como transporte e armazenamento, devem ser mais visíveis nos dados fiscais de maio. A esses fatores deverão somar-se, no balanço geral, os gastos com apoio a trabalhadores e a empresas.
O resultado final dependerá da evolução efetiva da atividade econômica. O Produto Interno Bruto (PIB) será 4,7% menor que o de 2019, segundo recente estimativa oficial. O secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, já admitiu o risco de queda superior a 5%. Essa hipótese está alinhada à mediana das projeções do mercado. Por enquanto, a estimativa oficial indica um déficit primário (sem os juros) de uns R$ 600 bilhões. Uma reabertura precipitada, com repique da epidemia, poderá resultar em cifras econômicas muito piores.
• Atraso conivente – Editorial | Folha de S. Paulo
Com demora no veto de Bolsonaro, estados dão reajustes estapafúrdios a servidor
A calamidade sanitária e econômica ocasionada pela Covid-19 não parece sensibilizar políticos e autoridades, a começar pelo presidente Jair Bolsonaro, para a necessidade de direcionar os novos gastos públicos a quem mais precisa.
Enquanto milhões de empregos se perdem, salários são cortados e empresas vão à falência, o presidente, parlamentares e governadores abriram brechas para reajustes estapafúrdios de vencimentos do funcionalismo —que já goza de estabilidade e remuneração em geral superior à dos trabalhadores da iniciativa privada.
O congelamento de salários de servidores deveria ser uma contrapartida básica ao programa de socorro financeiro federal aos estados e municípios, que envolverá aproximadamente R$ 125 bilhões a serem obtidos por meio da expansão do endividamento.
Negociada entre o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), a suspensão de aumentos para o funcionalismo até 2021 valeria para todas as categorias, com economia estimada em R$ 130 bilhões no período.
Ocorre que Bolsonaro minou o acordo, desautorizando seu ministro, ao patrocinar exceções. A permissividade acabou por levar o texto aprovado pelo Congresso em 6 de maio a excluir do congelamento uma ampla gama de categorias.
Diante do vexame para Guedes e da repercussão negativa, Bolsonaro prometeu vetar a possibilidade de reajustes, mas voltou novamente atrás e disse que só tomaria a decisão após conversar com os governadores —o que só veio a ocorrer nesta quinta-feira (21).
Mais que evitar o risco de derrubada do veto pelos congressistas, o adiamento da decisão se mostrou propício para agradar a base de apoio bolsonarista. Nesse meio tempo, Distrito Federal, Amapá, Rondônia e Roraima foram autorizados pelo Congresso a elevar salários de policiais e bombeiros.
Ao todo, pelo menos oito estados concederam aumentos para diversas categorias. Ainda que algumas dessas benesses possam ter sido negociadas antes, é inconcebível elevar despesas com folha de pagamento enquanto o país luta contra a pandemia.
Impressiona como a pressão de servidores continua a encontrar guarida no mundo político. Longe de se tratar de uma pauta popular, o que se vê de fato é um aprisionamento do Estado por corporações privilegiadas e influentes.
De todo modo, que haja o veto mais uma vez anunciado por Bolsonaro, a fim de evitar um desastre maior. O funcionalismo de todos os Poderes precisa dar sua cota de sacrifício —bem menor que a do restante da população, diga-se— neste momento de crise profunda.
• Da Cultura à sinecura – Editorial | Folha de S. Paulo
Novo cargo concedido a Regina Duarte é acinte que reflete loteamento do setor
Foi fugaz e turbulento o casamento da atriz Regina Duarte com o governo Jair Bolsonaro. Na quarta-feira (20), menos de três meses após assumir a Secretaria Especial da Cultura, a artista deixou o cargo.
As partes se esforçaram para mostrar que o divórcio não ocorreu de forma litigiosa. Em vídeo gravado ao lado do presidente, uma esfuziante Regina anunciou que passará a comandar a Cinemateca Brasileira —numa vergonhosa concessão de sinecura vendida ao público como saída honrosa.
Com a saída da atriz, acentua-se a barafunda que se instalou desde o início do ano passado na gestão federal do setor, palco de tumulto administrativo, infâmia ideológica e trocas de comando sucessivas.
Rebaixada de ministério a secretaria, a Cultura primeiro esteve vinculada à pasta da Cidadania. Depois, foi instalada no inexpressivo Ministério do Turismo. Em março, com Regina Duarte, já contava a passagem de quatro titulares —após uma alusão grotesca ao nazismo ter derrubado o diretor teatral Roberto Alvim.
Vista inicialmente como uma esperança de apaziguamento entre o governo e a comunidade artística, a atriz logo demonstrou falta de capacidade para a função. Terminou engolfada pela guerrilha bolsonarista e por intervenções externas.
Mais uma vez, a autonomia prometida por Bolsonaro revelou-se um embuste, e Regina teve liberdade mínima para nomeações.
Protagonizou ainda episódios constrangedores, como a desastrosa entrevista à CNN Brasil, quando mostrou nostalgia pelo ufanismo dos tempos ditatoriais, e a omissão diante de mortes de nomes importantes das artes nacionais.
Seja pelo histórico recente, seja pela aversão bolsonarista às artes e à educação, pouco se pode esperar do sucessor de Regina. O ataque à cultura, de todo modo, não se dá apenas no topo, e se espraia para os órgãos ligados à secretaria.
Estes, hoje, servem de abrigo a apaniguados do presidente, caso da Fundação Nacional de Artes, são veículo de torpe tentativa de revisionismo histórico, como a Fundação Palmares, ou empregam pessoas sem qualquer qualificação na área, a exemplo do que ocorre no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
Instituições de Estado vão, assim, sendo minadas pelo aparelhamento ideológico e pela ignorância orgulhosa. A direita faz, de modo desavergonhado, o que acusava a esquerda de fazer.
• Sob pressão, Xi Jinping enfrenta enormes desafios – Editorial | O Valor Econômico
Brasil tem pouco a ganhar com o alinhamento automático com EUA ou China
O Congresso Nacional do Povo da China faz hoje sua primeira reunião após a irrupção do coronavírus em Wuhan, em meio a sinais de radicalização política de Xi Jinping, o líder que mais reúne poderes no país desde Mao Tse tung. Após décadas de crescimento vertiginoso, a economia chinesa caiu 6,8% no primeiro trimestre e ainda não encontrou novo ritmo, que provavelmente será bem mais vagaroso do que antes. Xi Jinping enfrenta seus maiores desafios desde que assumiu o poder em 2012. As suspeitas de que houve acobertamento do surgimento do novo vírus e de que a cúpula do PC chinês demorou a reagir tornaram-se disseminadas, dentro e fora do país. E Donald Trump, presidente dos EUA, renovou sua ofensiva em várias frentes contra Pequim.
A partir do momento em que decidiram atacar o contágio e isolar 60 milhões de habitantes, da província de Hubei, o centro de irradiação do novo vírus, os burocratas chineses mobilizaram meios que só uma ditadura proporciona, mas conseguiram eliminar a ameaça - em sua primeira onda, pelo menos. Mas o handicap político encontra-se antes da tomada de decisão. Xi Jinping ficou sumido até 10 de fevereiro. O médico que no fim de dezembro alertara para a gravidade de um novo e letal vírus foi punido e morreu.
Apenas em 23 de janeiro a quarentena foi decretada - mais de um mês depois de sua detecção e mais de 20 dias após as primeiras mortes. A China teria seguido o instinto das ditaduras de partido único: más notícias não são bem-vindas e ações decisivas dependem de poucas pessoas na cúpula do poder.
A demora, negligência e, em alguns casos, incompetência na reação de vários países desenvolvidos, EUA à frente, por comparação, deram um atestado de excelência à resposta chinesa, agora em xeque. A ascensão de Xi Jinping trouxe aumento da repressão a dissidentes e censura intensificada na internet.
Provocados de todas as maneiras por Trump, os burocratas chineses mostraram que sabem dar versões delirantes sobre o coronavírus. Trump saiu-se com a história de que o vírus fugiu por acidente de um laboratório de Wuhan e o governo chinês teria acobertado o fato, impedindo uma reação tempestiva dos demais países. Os chineses reagiram com o inacreditável argumento de que soldados americanos foram os primeiros a espalhá-los.
Há dúvidas se as 4.634 mortes causadas pelo vírus começaram a abalar o prestígio político de Xi. O tema é sensível. Quando a Austrália pediu investigação sobre a origem do coronavírus, Pequim reagiu suspendendo importações de carne de quatro frigoríficos (um da JBS) e colocando tarifas punitivas sobre a cevada do país. Os diplomatas chineses foram instruídos a abandonar a habitual serenidade para revidar, de forma pouco cortês, quem ponha em dúvida a versão oficial. Onde puderam, lembraram que certos países dependem muito do comércio e do investimento chinês. Nada muito diferente do que os EUA fizeram por décadas.
A reação natural de burocratas do PC sob pressão é aumentar a repressão e clamar contra o inimigo externo. Trump é a caricatura perfeita e age sem parar para deter o avanço econômico da China, ameaçando até mesmo romper relações diplomáticas. Há pouco, os EUA fizeram manobras militares no Mar do Sul da China e apertaram o cerco contra a Huawei para impedi-la de fornecer a tecnologia 5G. Às vésperas da reunião do Congresso, tambores de guerra foram ouvidos em Pequim. Há a ameaça de implantação da lei de segurança nacional chinesa na rebelde Hong Kong.
Impulsionar a retomada da economia é outro desafio nada trivial de Xi. A burocracia reluta, com razão, em mais intervenções massivas de crédito, como nas crises de 2008 e 2014. Elas são cada vez mais custosas, ineficientes e apenas adiam a resposta aos desequilíbrios existentes. Os estímulos virão de novo via investimentos em infraestrutura, mas sem a magnitude do passado. Xi disse que pretende “a vitória final do socialismo sobre o capitalismo”. A China abandonou o primeiro e não assumiu plenamente o segundo - ainda é um enigma.
China e EUA agora engalfinham-se sobre temas econômicos e políticos sensíveis, fechando o espaço diplomático para posições independentes. A subserviência do governo Bolsonaro a Trump é patética. Satisfazer-se em ser mero fornecedor de matérias primas para um grande comprador imperial é voltar ao colonialismo. Irrelevante na geopolítica global, o Brasil tem pouco a ganhar com o alinhamento automático com qualquer um dos dois.
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