- Folha de S. Paulo
O uso da violência interdita a constituição do negro como sujeito de direito
Os edifícios da democracia liberal norte-americana, assim como de nossa incompleta República, foram construídos sobre o holocausto indígena e da população negra, arrastada em grilhões a este continente.
O fim da escravidão não foi capaz de colocar termo ao racismo e à discriminação, assegurar a igualdade formal, criar condições mínimas de igualdade no plano político e econômico entre os que compõem essas nações, muito menos de reparar todo o mal que lhes foi infligido ao longo dos séculos.
Os avanços promovidos pela democracia têm se mostrado lentos e insuficientes, como apontam os mais diversos indicadores sociais e econômicos. Lá e cá, negros recebem menos educação, têm menos acesso a serviços e bens públicos. Consequentemente, suas oportunidades, remuneração, expectativa de vida e bem-estar ficam abaixo da dos brancos. A manutenção dessa subordinação econômica e social não são acidentais, mas sim constitutivas do “bom” funcionamento de sociedades hierárquicas e injustas e o conforto dos que as dominam.
O racismo que estrutura nossas sociedades legitima a exclusão das populações negras e indígenas dos espaços de poder, dos ambientes corporativos, das profissões mais valorizadas e mesmo da esfera cultural, assim como naturaliza suas presenças no trabalho doméstico, na limpeza pública, na construção civil, no campo e em tantas outras atividades menos rentáveis.
Essa estrutura hierárquica e de exclusão racial não funcionaria, no entanto, sem o emprego sistemático e cotidiano da violência do Estado. O uso deliberado da violência e do arbítrio por parte de agentes —que deveriam ter a função legal de proteger direitos— constitui uma forma pública de interdição do negro como sujeito de direito, deixando claro que a igualdade formal não será capaz de assegurar igualdade de fato. As mortes de George Floyd e João Pedro, como as de milhares de jovens negros todos os anos, fazem parte de uma perversa pedagogia da subordinação.
A pandemia, associada à ascensão de governos autocratas, que nem sequer disfarçam suas convicções racistas e desconsideração pela ideia de direitos humanos, têm conferido ainda mais visibilidade às consequências perversas da desigualdade sobre negros e outros grupos tradicionalmente discriminados.
É contra essas estruturas de exclusão e de subordinação, legitimadas pelo racismo e reforçadas pela violência do Estado, que milhares de jovens ao redor do mundo estão se insurgindo. Os ataques em Bruxelas à imagem do rei Leopoldo 2º, da Bélgica, responsável no século 19 pelo genocídio de mais de 10 milhões de africanos no Congo —tragicamente narrado por Joseph Conrad, em “Coração das Trevas”— são uma demonstração de que a primavera americana não veio apenas questionar o comportamento brutal da polícia de Minneapolis.
O grito por justiça que vem das ruas, ainda que abafado pelas máscaras e reprimido pela violência, é bem mais amplo e profundo. Mais do que uma postura não discriminatória passiva, esses jovens nos exigem a afirmação de um comportamento antirracista ativo, que provoque mudanças no modo com que a economia, a sociedade e o Estado funcionam.
Num momento em que nos vemos tragados pelo triunfo da boçalidade, a primavera americana inspira e impõe um enorme desafio ao projeto iluminista de democracia. Sem que nossas democracias sejam capazes de corrigir suas principais distorções, reconhecendo e incluindo grupos historicamente discriminados, dificilmente escaparemos a um destino miserável e distópico.
*Oscar Vilhena Vieira, professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
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